Toda a gente sabe como é reconfortante estrear uns sapatos acabados de comprar. Coloca-se no pé e ficam lindos de morrer, ainda que ao princípio nos pareçam meio desconfortáveis, nos possam apertar um bocadinho e nos façam sentir desejosas que se moldem aos nossos pés e nos dêem um melhor andar. Mas é, nesta fase de habituação, que eles nos parecem mais bonitos, mais vistosos, que achamos que mais inveja causam nas outras mulheres (e como queremos, à força, sermos invejadas...).
Depois, há uma altura em que os sapatos já se moldaram aos nossos pés tanto o quanto se poderiam moldar. Nesta fase, em que já não nos parecem tão tcharan e alvo de cobiça, o que mais queremos é que nos dêem bom andar, que continuem bonitos e em bom estado mas que nos permitam andar, correr, dançar e usar os nossos pés com eles calçados.
Mas há, por fim, um altura em que já não suportamos a dor de pés. Que sentimos pena porque cristalizámos a imagem dos sapatos na montra da sapataria, porque tentámos tanto habituarmo-nos à biqueira estreita, à altura vertiginosa do salto e ainda assim nunca nos conseguimos sentir confortáveis com a porra dos sapatos calçados. E quando desistimos de forçar, viramo-los do avesso e verificamos que trouxemos o número abaixo e que, por mais que tentássemos, nunca nos serviriam convenientemente. A culpa não é do sapato nem da sapataria, a culpa foi da compra por impulso.
E aí temos duas hipóteses: ou insistimos e, para não chorarmos o dinheiro despendido, usamo-los tanto que os alargamos em demasia, gastamos a meia sola do salto e eles ficam absolutamente gastos e espatifados; ou firmemente anunciamos que "fica assim" e colocamo-los de lado, sem arrependimentos nem lamento.
Um dia, por mero acaso, pisando a mesma calçada onde outrora andámos com eles calçados avistamo-los nos pés de outra pessoa. Que, contente, passeia os seus sapatos que, para si, estão a estrear.
E não deixamos de achar genuinamente graça ao seu ar vaidoso, orgulhoso, com os seus sapatos nos pés. E sorrimos, desejando verdadeiramente que lhe continuem a servir, sem sentir lamento, nem inveja (embora a nova proprietária, que sempre calçou o número abaixo e cega pelo desejo que lhe cobicem os novos sapatos, acredite que sim) porque só nos vem à memória as bolhas, os calos, os dedos colados pelo aperto e a transpiração ao fim do dia, quando os descalçávamos, enfim. E, embora não deixemos de sentir pena que a nova proprietária se sinta indignada por passearmos na mesma calçada, que acredite que nós sentimos mesmo inveja por ela ter ficado com os sapatos que já foram calçados por nós, em boa verdade, já nada disso nos importa.
Porque os sapatos novos dela são velhos para nós pois, se lhe assentam bem a ela, a nós castravam-nos os pés, e porque, mais uma vez, sabemos que os sapatos não era bons nem maus: a questão é que não eram o nosso número.
E seguimos, sobranceiras, porque finalmente acertámos nuns sapatos do nosso número e estamos solidárias com o bem estar ortopédico da Cinderela, porque- cúmplices- partilhamos do mesmo alívio. E porque não nos importa os sapatos dos outros quando, com os nossos calçados, praticamente só não conseguimos voar.
Fundamentalmente porque, com a idade, ter os pés bem tratados, sem calosidades nem joanetes é coisa que vale milhões.
E seguimos, sobranceiras, porque finalmente acertámos nuns sapatos do nosso número e estamos solidárias com o bem estar ortopédico da Cinderela, porque- cúmplices- partilhamos do mesmo alívio. E porque não nos importa os sapatos dos outros quando, com os nossos calçados, praticamente só não conseguimos voar.
Fundamentalmente porque, com a idade, ter os pés bem tratados, sem calosidades nem joanetes é coisa que vale milhões.