Lembro-me de andar na escola primária, 3ª ou 4ª classe. Estávamos no Inverno, talvez Novembro ou Dezembro. O trabalho de casa era fazer uma redacção sobre o nosso feriado preferido. Inevitavelmente, uns 25 dos 30 meninos escreveram sobre o Natal, a paz, a família, os doces, as prendas, as férias da escola. Eu escrevi sobre o 25 de Abril. Escrevi sobre fotografias que tinha visto de cravos nas espingardas e de soldados amigos do povo, que ganharam aos mauzões que prejudicavam as pessoas. Juro por tudo que nunca, até hoje, ninguém da minha família tentou influenciar as minhas opções políticas (ou religiosas, for that matter), nunca fui brainwashed para pensar assim ou assado. O que naquela altura sabia sobre o 25 de Abril era o que via na televisão a preto e branco da sala e o que me iam respondendo às muitas perguntas. Lembro-me de ouvir os meus avós falarem do "antes do 25 de Abril", de quando tinham para o jantar de três um ovo e uma sardinha, tomavam banho num alguidar e viviam por favor na casa duma irmã. Lembro-me das dezenas de cartas guardadas no armário da sala da minha avó, trocadas entre os meus pais quando namoravam, ele no ultramar, ela a trabalhar em lojas da Baixa desde os 13 anos, em que se falava da guerra e do regime e se sonhava com um futuro. Lembro-me de acreditar que éramos vencedores de qualquer coisa, que o 25 de Abril tinha sido um triunfo dos bons sobre os maus, da justiça, e que dali em diante nunca mais nos íamos deixar espezinhar, que quando alguma coisa estivesse mal só tínhamos de falar e defender os nossos direitos.
Hoje sinto-me defraudada pelas expectativas que tinha aos 8 anos. Não percebo para onde foi a memória colectiva deste país que se encolhe e resigna aos maiores insultos e parece-me que o povo que imaginei a fazer a revolução de abril está todo esclerosado e entrevado e que os seus filhos e netos já nasceram cheios de artroses e são (somos) um monte de incapazes que só reagem ao futebol. Cada um de nós agarrado a uma desculpa de coitadinho, à rasca, pobrezinho. Sinto que somos uma cambada de sacos de porrada, de todas as gerações. Coitadinhos dos reformados que têm pensões microscópicas, coitadinhos dos trabalhadores que são explorados, coitadinhos dos estudantes que não vão arranjar emprego, coitadinhas das criancinhas que não têm futuro. Os grandes e mauzões tiram-nos o dinheiro do almoço e a gente só sabe é chorar. Caramba, pá! Recuso-me a ser coitadinha! Recuso-me a encolher-me na cadeira sem fazer ondas, a rezar para que o FMI não me tire o subsídio, recuso-me a comer e calar, recuso-me a ver o meu trabalho ser desvalorizado e os meus impostos entregues aos bancos e às Donas Brancas de Wall Street. Recuso-me a ser condenada pela austeridade, pela crise e pelo medo. Não tenho medo, nem de trabalhar e muito menos de lutar pelo meu país, pelos direitos do meu povo, pela saúde dos avós e pela educação dos filhos. Somos pobres, mas somos muitos, somos bem-formados e temos livre-arbítrio! Sejamos da esquerda ou da direita, somos todos pessoas, temos direitos e temos deveres, temos voz, e tanto quanto vejo daqui, estamos todos na merda. Que tal, para variar, tirar o rabo do sofá, ir fazer pela vida e sair da merda? Para a rua gritar, às urnas votar, agarrar na trouxa e bazar, seja qual for a melhor forma de nos fazermos à vida. Em 1974 fez-se a mais bela revolução do mundo. Em 2011 nada nos impede de voltar a acreditar.
O 25 de Abril continua a ser o meu feriado preferido. Mas todos os dias do calendário são igualmente valiosos e cada um deles merece ser vivido com dignidade, liberdade e consciência. E enquanto tiver palavras, ninguém me pode calar!
25 de Abril sempre! O povo unido jamais será vencido!