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Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

origem

Quando um ex-militante do MRPP, dos tempos da clandestinidade, que até é teu progenitor, te diz, cheio de pinças e paninhos quentes, que se calhar prefere que não vás a uma audiência com o Presidente da Câmara, que até é das tuas cores políticas (maijomenos, até encontrares a porcaria do cartão, para o poderes devolver), porque tem medo que o comeces a tratar mal e a atacar discutir com o homem... E depois diz, já com todas as letras: "não te quero lá, que ainda tens um ataque de fúria e partes a tromba ao gajo!"

Alguma coisa estás a fazer bem.

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Todos os dias me admiro com a percepção da realidade que têm algumas elites, distantes da vida real da maioria das pessoas comuns. E todos os dias confirmo que a classe que gere as empresas que nos vão pagando os salários de miséria e explorando tanto quanto puderem (e permitirmos), tal como uma porção significativa dos decisores políticos, vive numa espécie de realidade alternativa, numa “bolha” de alheamento da realidade óbvia. Os mais vividos podem saber exactamente quão canalhas são e em que medida afectam as vidas dos outros, mas lamentavelmente, uma grande parte está mesmo perfeitamente a Leste da realidade dos trabalhadores (isto sou eu a ser boazinha, a acreditar que em vez de má índole é “só” ignorância, e a tentar, não sem esforço, colocar de parte o meu preconceito contra os ricos - reparem que nem digo burgueses). A alienação é fruto, desde logo, de um condicionamento social que marca as classes. Não tendo uma extensíssima experiência no mercado empresarial, já passei por dois ou três sítios em que o enquadramento se repetia, e por tudo o que oiço e vejo, permito-me a liberdade de tecer algumas considerações generalistas.

Os chefões (administradores e directores) das grandes empresas do sector privado fazem parte de uma espécie de meio fechado, ou têm uma rede de contactos que partilham em grande medida. Quase todos parecem conhecer-se dos tempos dos liceus particulares, ou dos tempos das universidades também particulares, ou do meio social que se estende um pouco mais devido a laços familiares e de amizades. Depois, claro, há toda a componente política. São quase todos das mesmas áreas políticas (direita ou direita), ou militaram nas mesmas “jotas”.

Este condicionamento social de que falo é inseparável da educação, desde logo. (Se parecer que estou novamente a atacar o ensino privado é porque estou.) Numa escola ou colégio privados não entram jovens das camadas sociais mais “desfavorecidas”, ou traduzindo por miúdos, não há pobres. Não significa que nas escolas públicas não andem putos de classe média ou betinhos endinheirados, que também os há, mas nas privadas não há, naturalmente, vislumbre da classe operária. Isto significa que desde muito jovens, as crianças dos colégios privados não têm contacto com os operários em pé de igualdade, onde a aprendizagem e socialização são basilares para a construção da personalidade e do carácter. Não esfolar joelhos com os filhos dos operários fabris e das suas empregadas domésticas, e não fazer os mesmos testes que eles, podem bem contribuir para a criação ou perpetuação de preconceitos e mitos. Pior, a sua realidade fica indelevelmente carente, por omissão, das outras realidades.

O resultado é que esta fina burguesia que nunca respirou fora da bolha não faz a mais pálida ideia sobre o que é ser pobre. Lá terão umas ideias vagas e generalistas, provavelmente erradas, mas no concreto desconhecem a dureza dos dias, de todos os dias. Não fazem ideia de que as famílias que têm de se sustentar com um salário mínimo, ou um subsídio de desemprego (quando o há) também gostavam de jantar fora nos restaurantes da moda, só que nem sequer conseguem comer carne ou peixe todos os dias. Não se lembram que às vezes o dinheiro falta para coisas tão fundamentais e que tomam por garantidas como a água canalizada ou as taxas moderadoras no Centro de Saúde. Não concebem que mesmo um casal sem filhos e com dois salários mínimos a entrar para o orçamento tem de pagar casa, o que leva uma grande parte do rendimento, os transportes de e para o trabalho, a água, a electricidade, o gás, a comida, e no fim disto tudo pode não sobrar rigorosamente nada. Se um dos elementos do casal tiver um problema súbito de saúde, pode ter de se aguentar ou pedir dinheiro emprestado. O patrão/chefe não sabe o que isso é, porque nunca lhe aconteceu a si nem aos seus próximos. Nunca viu no supermercado um idoso a contar os trocos e a ter de deixar um saco com duas maçãs para trás porque o dinheiro não chegava para tudo. Este patrão acha que já não ter salário ao dia 5 é só desgoverno, que "as pessoas" não querem é trabalhar, são preguiçosas e querem é viver de subsídios, acham que "os transportes públicos que temos até nem são nada maus", acham que a "classe média" tem imóveis de 600 mil euros para cima, que os jovens são uns aventureiros que emigram pelo espírito empreendedor (e jamais por necessidade), que são frugais e escolhem alugar umas casinhas pequenas e ter filhos tarde.

Uma boa parte da falta de noção da realidade pela elite que decide a vida de todos nós passa pela falta de confronto. Se nunca ninguém disser umas verdades óbvias na cara desta gente, os burguesinhos da bolha continuarão com as suas certezas sobre esse conceito místico (para eles) do “povo”, continuarão a achar coisas e, recordo, a decidir sobre as nossas vidas com base nesses “achismos”.

Tem de se lhes rebentar a bolha!

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