Às vezes duvido que seja uma pessoa inteira. Sou antes duas metades, em permanente tensão, no fio da navalha, em oscilação compassada. Sou a céptica, ultra-racional, organizada, maníaca da limpeza e da arrumação, com gostos minimalistas. Sou também a criativa, espontânea, artística, que tira da cartola profundezas cósmicas e dá pedradas em todos os charcos. Sou da ciência e da arte, metade racionalidade e objectividade, a outra metade sonho e poesia. Quando me entorno para um dos lados submerjo com despudor, quase com desrespeito pelo outro lado. Depois tento equilibrar e lá me sumo para o lado oposto. A vertigem da queda é onde estou. Sou a personificação de todas as contradições, acto contínuo entre extremos opostos. Sou a mais meiga e doce ou a mais gélida e implacável das criaturas. Sou a indecisão em pessoa e a mais obstinada, que nunca volta atrás nas decisões que toma. Sou a calma e ponderada que analisa exaustivamente todos os prós e cada um dos contras, mas tem razões impulsivas que não sabe controlar. Sou a analítica, que tem sempre razão porque valida todos os dados e confirma todas as informações, e aquela a quem o instinto faz o diagnóstico completo só com base na intuição e dá ainda mais e mais fiável informação. Toda eu sou pela luz e vida, pelos inícios e fazeduras, desprezo a morte e o remorso, o arrependimento e o que já passou. Mas também sou fã da escuridão, da ausência, da penumbra silenciosa. Sou a lógica e o bom senso, a calma e a temperança, até a chama se atear e me fazer explodir em cacos, festim de paixões em brasa. Sei exactamente quem sou. Não sou é fácil de definir.
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Adultério é uma palavra violenta e desnecessária como comprova “A Letra Escarlate” (“The Scarlet Letter” no original) de Nathaniel Hawthorne, que significa violação da fidelidade conjugal.
Deve ser defeito da minha mentalidade pouco progressista, mas faz-me espécie como alguém pode contratualizar algo que, à partida, é motivado por sentimentos. Ou seja, como se pode contratualizar o amor ou mesmo o afecto? Não compreendo e recuso-me a contratualizar uma promessa que não sei, e ninguém sabe, se será cumprida. Mas novamente admito que possa ser um problema do meu entendimento e até admito que possa vir a mudar de ideias.
A fidelidade é uma obrigação dos cônjuges. Não sou jurista, mas suponho que a quebra de uma destas condições contratuais possa ser fundamento para a denúncia unilateral do contrato. E pronto, podia ser tão simples quanto isto. Só que não é. A carga moral da infidelidade é pesadíssima, e como temos vindo a constatar entre o choque e a impunidade, com um diferencial muito grande entre géneros.
A meu ver, as relações sentimentais e sexuais não são matéria passível de estarem sujeitas a interferências externas. Cada qual deve fazer o que bem entender sem dar satisfações a partes não interessadas. Aliás, enquanto avaliação moral a fazer nestas matérias só defendo a verdade, até porque defendo a verdade acima de tudo. Se não houver mentiras nem segredos, nada a esconder, e ninguém se magoar, o que é que a justiça, a moral, a religião, a sociedade têm a ver com isso? [Podia discorrer sobre o tema, sendo previsível que o tema virasse para a apologia da poligamia e do poliamor, mas deixo para outra ocasião.]
Quem somos nós, qualquer um de nós, para limitar a liberdade dos outros?
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Hoje deu-me uma enorme vontade de chorar, não me perguntes porquê. Alguma coisa estará a desmoronar, talvez. Mudei a rota. Enchi o peito de valentia destilada e marchei até ao nosso banco. Chamei nomes feios a quem lá estava, só porque sim, ou então porque queria mesmo era ver a memória de nós dois, em deslumbramento um com o outro, a deixar fugir beijos tão honestos, de mãos dadas e conversa líquida, eu colada aos teus olhos e à tua barba, tu agarrado a uma fantasia em que eu era protagonista. Tenho vontade de chorar. Fomos poesia. Nunca mais nos vou ver assim, tão puros e novos a estrear, com aquele brilho nos olhos de quem acabou de ganhar o euromilhões mas em melhor, com o tempo a parar à nossa volta, como nos filmes, com a banda sonora a adormecer-nos os sonhos. Como sei que sonhaste, porque eu sonhei também, tantas vezes. Tudo mudou. Os teus olhos não se deixam ver por mim e eu não choro, mesmo sem saber o que me quer este vazio pegajoso que persiste.
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O espanto, em vez de ser apaziguado com a falta de cinética, é depurado. A peneira da memória não é traiçoeira, é sim essencial para remover as insignificâncias que poluem a clareza de raciocínio. Os momentos chave de qualquer história de relevo pessoal não ficam entaramelados na névoa amarga, vão-se cimentando na matéria prima do que somos.
[Mudar de rota talvez ajudasse, mas não preciso do Largo do Regedor para pensar diariamente naquele fim de tarde, no abraço, nos beijos de que fugi, nas festas que me fizeste nos braços, na suavidade insuperável da tua voz, dos teus lábios, cuja memória perdura e ecoa em ondas, de prazer e de saudade, esses lábios, beijos de nuvens.]
[Mudar de vida talvez me mudasse, mas o coração lá ficou no túnel desde aquele dia, pendurado num segredo anunciado, as tuas mãos que pertencem às minhas mãos, a poesia de que és feito entranhada em mim, essa força incorruptível que desprezei com punhais apontados a mim.]
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Escrevi uma vez, ironizando, que “as mulheres são todas putas, e o pior que os homens podem ser é filhos da puta”. Contudo, pondo a ironia de parte, é uma frase que reflecte bem a dualidade de critérios em vigor na sociedade portuguesa (e obviamente não só, mas fiquemos por aqui, para já). Quem diz dualidade de critérios diz também diferenças sociais, diferenças no salário, no acesso a oportunidades de trabalho e de liderança, na carga de responsabilidades sociais e domésticas e até no compasso moral da sociedade. Já alguma coisa mudou nas últimas décadas, mas muito mais falta mudar. As mulheres têm de parar de vir em segundo lugar. E têm de parar de ter medo de serem feministas como se isso fosse uma coisa má. Tem de haver responsabilização e a paridade tem de estar na agenda de todos os partidos políticos democráticos. Os tabus e os preconceitos têm de ser derrubados, a bem ou a mal. O Estado tem de ser o primeiro a dar o exemplo, mas como se vê, não é o que acontece.
Uma mulher, perseguida e agredida pelo seu ex-amante e pelo seu ex-marido, viu a sentença dos dois ser resumida a multas e pena suspensa, com as seguintes patéticas “justificações”:
“O adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem. Sociedades existem em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte. Na Bíblia, podemos ler que a mulher adúltera deve ser punida com a morte."
Ficamos, portanto, a saber que:
a honra e a dignidade do homem são mais valiosas do que a honra e a dignidade (e a integridade física) da mulher;
o adultério é um crime mais grave do que perseguição, rapto, ameaças e agressões violentas (só que não está escrito na Lei);
foi a "deslealdade e imoralidade sexual" da vítima, e o facto da sociedade condenar fortemente o adultério da mulher que levam à compreensão da violência exercida pelo "homem traído, vexado e humilhado pela mulher";
os crimes passionais, quando cometidos por homens contra as mulheres, ainda têm uma margem de tolerância extra;
que ter sido perseguida, ameaçada e levado com uma moca com pregos não foi assim tão mau, porque noutro sítio podia ter sido apedrejada até à morte;
a Bíblia é uma fonte de jurisprudência;
há juízes bem conservados, que saíram do século XV e ainda estão em exercício de funções.
É inaceitável que o poder judicial perpetue as injustiças e violência contra as mulheres. Este juíz do Tribunal da Relação do Porto conseguiu não só colocar a culpa do lado da vítima, ou encontrar num caso extraconjugal a justificação para atenuar a pena criminal de dois agressores, como ainda colocou muita gente a beliscar-se para ter a certeza de que acordou em 2017. Além da urticária e asco profundo, isto causa-me uma série de dúvidas que gostaria mesmo de ver respondidas.
Com que direito se arrastam textos religiosos para ilustrar ou justificar um acórdão da justiça num estado supostamente laico? Como é que um juiz pode exibir, sem pingo de vergonha na cara, o seu fétido machismo e trazê-lo para a justiça, afectando directamente a vida de outras pessoas?
Pergunta ainda mais premente: quando é que este anormal vai ser demitido?
Breaking rocks out here on the chain gang Breaking rocks and serving my time Breaking rocks out here on the chain gang Because they done convicted me of crime Hold it steady right there while I hit it Well reckon that ought to get it Been Working and working But I still got so terribly far to go
I commited crime Lord I needed Crime of being hungry and poor I left the grocery store man bleeding (breathing?) When they caught me robbing his store Hold it steady right there while I hit it Well reckon that ought to get it Been Working and working But I still got so terribly far to go
I heard the judge say five years On chain-gang you gonna go I heard the judge say five years labor I heard my old man scream "Lordy, no!" Hold it right there while I hit it Well reckon that ought to get it Been Working and working But I still got so terribly far to go
Gonna see my sweet honey bee Gonna break this chain off to run Gonna lay down somewhere shady Lord I sure am hot in the sun Hold it right there while I hit it Well reckon that ought to get it Been Workin' and workin' Been Workin' and slavin' An' Workin' and workin' But I still got so terribly far to go
Writers: Nat Adderley, Oscar Brown Jr, Archie Fairhurst
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A recordar até aprender.
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Falando de "um cidadão na rua, de corpo presente e voz activa" que mencionava ontem, foram convocadas várias manifestações em Portugal, nomeadamente uma "manifestação silenciosa", conceito em que não consigo rever-me.
De que serve uma manifestação silenciosa? Que propósito almeja alcançar? Além da sugestão de utilização de velas na manifestação agendada para o próximo dia 21 ser, no limite, de gosto duvidoso (chamas, incêndios...)... Quem se manifesta calado não tem nada a dizer?
Vou assistindo nas redes sociais a discussões perfeitamente estapafúrdias entre pessoas que considero inteligentes e íntegras, altamente politizadas e maduras, em que todo um tema tão fracturante, complexo, diluído em mil causas e consequências, parece ser simplificado ao ponto de se estar contra ou a favor do Governo. Esquerda ou direita? Quem não está contra está a favor?! Como é possível ser tão "clubista" que o raciocínio e espírito crítico sejam completamente cilindrados para dar lugar a uma posição extremada sem sustentação coerente?
Triste democracia esta, em que o eleitorado "pró-governo" se abstém de sair à rua em protesto ou revolta pelas 105 vítimas mortais dos incêndios em 2017, suas causas e exigência de soluções, para proteger uma solução governativa já de si bastante dúbia, para usar um eufemismo.
Triste democracia esta, em que a fatalidade das 105 vidas perdidas e tantas outras destroçadas são o impulso do vil aproveitamento político da base da oposição ao governo, como se os governos anteriores tivessem um pingo menos de culpabilidade pelas políticas ambientais e económicas desastrosas que levaram a cabo.
Triste sociedade civil que fica sem palavras de ordem para se manifestar, se confunde e digladia com pormenores tão pouco produtivos e simplistas como demitir ou não uma ministra.
Triste sociedade acrítica que consegue reduzir à bipolaridade um tema tão complexo e intricado, que arrasta tantos e tão profundos interesses, tantos e tão devastadores prejuízos..
A ingerência contínua do solo, da floresta, do ordenamento do território, dos meios de combate e de quantas mais causas houver para a devastação a que assistimos com os incêndios de 2017 não são temas bipolares!
Manifestemo-nos sim, todos (!), pelas nossas ideias e ideais, esteja quem estiver no governo ou na sua viabilização. Exijamos soluções e responsabilidades políticas a todos os que a têm (que por acaso são sempre os mesmos, rosas ou laranjas ou azuis, é difícil destrinçar) e a nós próprios, que temos os governos que fomos elegendo. Com voz ao rubro e corpo presente, sempre que os funcionários públicos eleitos permitam que o valor do lucro e do capital se sobreponha ao valor de vidas humanas. Porque é disso que tratamos. Se quiserem simplificar a culpa, apontemos então o dedo ao capitalismo! E já agora, aprendamos a ser parte activa da política, enquanto eleitores, enquanto cidadãos, enquanto mandantes dos nossos representantes!
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Aque nesta margem esquerda, a margem certa, a vida ocorre num universo paralelo em que o impossível desenrola-se perante os olhos muito abertos e queixos esquecidos. O insólito acontece a par e passo com o ritmo corriqueiro dos dias. Nada causa espanto, de tão espantoso que tudo é. Penso-me tantas vezes presa nas linhas de uma ficção, um qualquer conto da Alice Munro, só percebo que é real porque a paisagem é impossível de confundir. As coincidências são demasiado óbvias para que a realidade simplesmente exista porque sim. Os insólitos, o inexplicável, o sobrenatural que me pisca o olho a todo o instante e que teimo em renegar, como se as entrelinhas deste enredo tivessem saído da minha mente no seu estado mais perverso. É possível que seja só loucura, que se tenham esquecido de me sintonizar bem as antenas lá na fábrica onde montam as peças das pessoas. Somos todos demasiado inverosímeis, não achas?
Quando era criança (nunca fui, nasci já velhíssima) e estava muito mais próxima da verdade de todas as coisas e a cabeça fervilhava com teorias fantásticas e absurdas, tinha a certeza que vivia num mundo falso, com cenários montados para me estudarem os movimentos e lerem os pensamentos. Nada fazia sentido. Porque motivo estava eu presa no corpo de uma menina pequena, aquelas pessoas afáveis mas tão diferentes de mim a fazerem-se passar por família, vizinhos, amigos. Nunca me enganaram!
Nesta margem as coisas desaprendem-se com o tempo, o curso das águas e as rotações do planeta. Surreal é virar-te as costas quando te trago dentro de mim.
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Há menos de quatro meses escrevi este texto, imediatamente após a trágica (e evitável) noite dos incêndios em Pedrógão Grande que vitimaram 64 pessoas.
Lamentavelmente, hoje e após mais 36 vidas perdidas poderia escrever as mesmas palavras, não fossem as agravantes que são agora ainda mais visíveis e impossíveis de ignorar.
É certo que a mera demissão de governantes é manifestamente insuficiente para resolver o que quer que seja. Seria, contudo, o mínimo expectável como acto de decência perante mais uma calamidade. Como acto de humildade, de reconhecimento da incapacidade de ter feito melhor para evitar nova tragédia idêntica à de Pedrógão Grande em menos de quatro meses. As vítimas não serão ressuscitadas com demissões, mas merecem pelo menos esse respeito. Decretar dias de luto e estado de calamidade não chega. O aproveitamento político das tragédias é imoral em todos os casos, mas é igualmente inadmissível que se tratem estas situações dramáticas e completamente atípicas apenas como infelicidades inevitáveis e impossíveis de prever, fruto de condições climáticas da responsabilidade exclusiva da "mãe natureza". Mais do que (mas também) demissões, fazem falta explicações, responsabilização, planos de acção imediatos e planos de prevenção a curto e médio prazo, comunicação imparcial e transparente.
A reacção da sociedade civil, que raramente vai além das conversas de café e das partilhas de fotografias e frases feitas nas redes sociais, também está muito longe de chegar ou sequer fazer alguma diferença. Na Galiza morreram 4 pessoas e foram paradas universidades e convocadas manifestações em várias cidades. Há toda uma poética diferença entre ver 40.000 likes ou 40.000 pessoas nas ruas a exigir respostas e responsabilidades. Um like não é um voto ou um cidadão, é um mero clique. Um cidadão na rua, de corpo presente e voz activa, não deixa dúvidas de que é também um voto e de que é também uma pessoa, a exigir contas pelos seus e capaz de fazer frente ao poder instituído.
E nós, Portugal? Até quando vamos continuar a ser indignados nas redes sociais e abstencionistas nas urnas?
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Sobretudo nos detalhes.
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Há semanas difíceis e surreais, há semanas tristes e de oscilações drásticas ao jeito de montanhas russas... Esta foi uma delas. Em oito dias, postos de trabalho em risco, incerteza, um encontro com pessoas de quem gosto muitíssimo e que temi que culminasse em batatada, discussões e desconfianças e lamentos e dúvidas, emergências de hospitais, um pedido de casamento e o falecimento de um familiar. Porra. E o fim-de-semana já a acabar sem pré-aviso, além da chuva prevista para amanhã.