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Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

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Falando de "um cidadão na rua, de corpo presente e voz activa" que mencionava ontem, foram convocadas várias manifestações em Portugal, nomeadamente uma "manifestação silenciosa", conceito em que não consigo rever-me.

De que serve uma manifestação silenciosa? Que propósito almeja alcançar? Além da sugestão de utilização de velas na manifestação agendada para o próximo dia 21 ser, no limite, de gosto duvidoso (chamas, incêndios...)... Quem se manifesta calado não tem nada a dizer?

Vou assistindo nas redes sociais a discussões perfeitamente estapafúrdias entre pessoas que considero inteligentes e íntegras, altamente politizadas e maduras, em que todo um tema tão fracturante, complexo, diluído em mil causas e consequências, parece ser simplificado ao ponto de se estar contra ou a favor do Governo. Esquerda ou direita? Quem não está contra está a favor?! Como é possível ser tão "clubista" que o raciocínio e espírito crítico sejam completamente cilindrados para dar lugar a uma posição extremada sem sustentação coerente?

Triste democracia esta, em que o eleitorado "pró-governo" se abstém de sair à rua em protesto ou revolta pelas 105 vítimas mortais dos incêndios em 2017, suas causas e exigência de soluções, para proteger uma solução governativa já de si bastante dúbia, para usar um eufemismo.

Triste democracia esta, em que a fatalidade das 105 vidas perdidas e tantas outras destroçadas são o impulso do vil aproveitamento político da base da oposição ao governo, como se os governos anteriores tivessem um pingo menos de culpabilidade pelas políticas ambientais e económicas desastrosas que levaram a cabo.

Triste sociedade civil que fica sem palavras de ordem para se manifestar, se confunde e digladia com pormenores tão pouco produtivos e simplistas como demitir ou não uma ministra.

Triste sociedade acrítica que consegue reduzir à bipolaridade um tema tão complexo e intricado, que arrasta tantos e tão profundos interesses, tantos e tão devastadores prejuízos..

A ingerência contínua do solo, da floresta, do ordenamento do território, dos meios de combate e de quantas mais causas houver para a devastação a que assistimos com os incêndios de 2017 não são temas bipolares!

Manifestemo-nos sim, todos (!), pelas nossas ideias e ideais, esteja quem estiver no governo ou na sua viabilização. Exijamos soluções e responsabilidades políticas a todos os que a têm (que por acaso são sempre os mesmos, rosas ou laranjas ou azuis, é difícil destrinçar) e a nós próprios, que temos os governos que fomos elegendo. Com voz ao rubro e corpo presente, sempre que os funcionários públicos eleitos permitam que o valor do lucro e do capital se sobreponha ao valor de vidas humanas. Porque é disso que tratamos. Se quiserem simplificar a culpa, apontemos então o dedo ao capitalismo! E já agora, aprendamos a ser parte activa da política, enquanto eleitores, enquanto cidadãos, enquanto mandantes dos nossos representantes!

Aque nesta margem esquerda, a margem certa, a vida ocorre num universo paralelo em que o impossível desenrola-se perante os olhos muito abertos e queixos esquecidos. O insólito acontece a par e passo com o ritmo corriqueiro dos dias. Nada causa espanto, de tão espantoso que tudo é. Penso-me tantas vezes presa nas linhas de uma ficção, um qualquer conto da Alice Munro, só percebo que é real porque a paisagem é impossível de confundir. As coincidências são demasiado óbvias para que a realidade simplesmente exista porque sim. Os insólitos, o inexplicável, o sobrenatural que me pisca o olho a todo o instante e que teimo em renegar, como se as entrelinhas deste enredo tivessem saído da minha mente no seu estado mais perverso. É possível que seja só loucura, que se tenham esquecido de me sintonizar bem as antenas lá na fábrica onde montam as peças das pessoas. Somos todos demasiado inverosímeis, não achas?

Quando era criança (nunca fui, nasci já velhíssima) e estava muito mais próxima da verdade de todas as coisas e a cabeça fervilhava com teorias fantásticas e absurdas, tinha a certeza que vivia num mundo falso, com cenários montados para me estudarem os movimentos e lerem os pensamentos. Nada fazia sentido. Porque motivo estava eu presa no corpo de uma menina pequena, aquelas pessoas afáveis mas tão diferentes de mim a fazerem-se passar por família, vizinhos, amigos. Nunca me enganaram!

Nesta margem as coisas desaprendem-se com o tempo, o curso das águas e as rotações do planeta. Surreal é virar-te as costas quando te trago dentro de mim.

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