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Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

origem

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Não tinha falsas modéstias, sabia que tinha uma cabeça interessante, um discurso cativante, rebelde e uma dose de poesia na alma que, nas raras ocasiões em que a revelava, não colhia indiferença.

Bicho-do-mato, arisca, bruta, conseguia afastar qualquer um antes de dar a hipótese de ser rejeitada. Não concebia que pudesse ser mais a outros olhos do que era aos seus próprios e sacudia com força quem ousasse aproximar-se. Quem não toca não magoa e esse parecia ser o segredo para não morrer de amor.
Não se reconhecia na imagem que devolvia o espelho, que evitava olhar de frente. As formas flácidas, as curvas esmorecidas, papos, borbulhas e cicatrizes atacavam de frente a miúda atrevida que queria ser, chamando a atenção de que afinal o tempo de ser miúda já passou e o atrevimento podia ser ridículo. Voltava costas e tentava esquecer-se do reflexo que lhe tolhia as ousadias.
Todos os dias odiava as suas contradições, enquanto ia aprendendo a amar-se. Queria mudar o mundo, mas não cabia nos moldes mundanos. Todos os dias corria atrás de um ideal que não sabia definir. Queria ser especial mas para ser invisível era preciso ser banal. Apontava as fugas de toda a gente, incapaz de se deter e se despir. Gabava-se de não temer nada mas soluçava o choro seco de quem lamenta existir. Queria ser leve, simples, fácil, mas era um vendaval surreal.

Sofia apagou-se um dia, com o coração em remendos e a alma em cacos.