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Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

origem

Não sabes que podes chorar, que podes falhar, que podes dizer coisas de que te arrependas e que os pedidos de desculpa não te enferrujam. Não te perdoas os erros e esse será provavelmente o maior de todos. Tentar não falhar é o melhor que se pode fazer. Esse muro que não me impede só corta a tua luz. Não tens de ser perfeito, impoluto ou imaculado. Podes ser assim tal qual como és, às vezes imbecil, um bocado estúpido, um estropício e tudo o mais que te chamo quando falho também.

Gosto de ti à mesma, digo em tom de brincadeira. Gosto de ti, digo com toda a seriedade.

As palavras valem o que valem, ambos sabemos. Servem de rampa à magia, de almofada em consolo ou de rastilho às divisões. Os silêncios que te encontro e os teus olhos às escuras dizem perdão. Tuas mãos atrevidas dizem distâncias que precisam encurtar. Certos são os meus dois braços abertos para te acolherem em qualquer maré, sem lugar a gratidão. Repito até perceberes, a amizade não se agradece. Os amigos não se abandonam, ecoas tu de dentro de mim. Quero-te, mas não quero nada em troca. Abraço-te, dou-te colo e guardo as velas para um dia mais bonito. A minha mão estendida leva-te ao teu lugar. Apeado não te deixo. Sozinho não ficarás. 

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A simplicidade do som da chuva a cair ritmada no quintal para dizer "bom dia" diz mais do que mil textos, promessas, planos idílicos para que nunca se mexeu uma palha que os fizesse concretizar. Só um sorriso e um cão. Assim, simples, honesto, como quem abre escancarada a janela de casa para que possas espreitar, entrar pela porta se quiseres. Sem mentiras, subterfúgios, juras ou desvios.

É, as relações humanas deviam ser menos idealizadas e mais analisadas sob a luz do materialismo. Sobretudo, simplificadas. Triadas sob o jugo fácil de quem nos faz bem, ou não.

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Com cheiro a Trás-os-Montes, a aguardente, a pedra fria, aos riachos e campos verdes que povoam os meus sonhos, e a saudade.

 

Tenho dentro do meu peito dois moinhos a moer, um anda, o outro desanda, e assim é o bem-querer.

Tenho dentro do meu peito um alambique de aguardente p'ra destilar as saudades, ai as saudades, quando de ti estou ausente.

Costumava usar a saudade como uma pauta objectiva de avaliação sentimental, mas até isso questiono. Sinto muito a tua falta, mas não é saudade o que sinto. Onde estava alguma coisa cheia, por vezes invasiva, que ocupava tudo em redor, hoje não está, mas está tudo bem.

Descobri que onde te tinha a ti cabem outros universos, porventura mais bonitos, mais interessantes, mais honestos, mais descomplicados. Reparei que o medo que me travava as aproximações destes outros mundos tinha o teu nome, e quando o soube fiz jus à pessoa destemida que me orgulho de ser e mergulhei, em apneia e a toda a velocidade. Foi o melhor que podia ter feito, estou (mais) feliz. Descobri que outros lábios são mais ternos, que no tempo que açambarcavas, de dia e de noite, cabem aventuras, cabem ligações de aço, cabem descobertas com cheiro a maresia, cabem planos e lições e labirintos. Descobri que outros olhos vêem em mim o que me espantou que tivesses visto, desbravei caminhos que me eram alheios e insuspeitos. Como todas as viagens, esta mudou-me, organizou muitas coisas num caos delicioso. 

Tendo dado luz verde para retomarmos o melhor que tínhamos, continuo a auscultar o teu silêncio, com capa dura de indiferença, que já deixou de me magoar. Serás sempre muito importante para mim, hei-de gostar estupidamente de ti para sempre, só já esgotaste as hipóteses de ser o centro de alguma coisa na minha vida. É preciso dizer que falhaste miseravelmente enquanto amigo. Eu disse-te há meses que ia ser exactamente assim, porque só podia ser assim.

Quando voltarmos a encontrar-nos, quem conhecias já estará longe. Espero encontrar também outro de ti, mais maduro e seguro, de quem venha a poder ter saudades. 💙

Mestre, meu mestre querido!

Coração do meu corpo intelectual e inteiro!

Vida da origem da minha inspiração!

Mestre, que é feito de ti nesta forma de vida?

 

Não cuidaste se morrerias, se viverias, nem de ti nem de nada.

Alma abstracta e visual até aos ossos,

Atenção maravilhosa ao mundo exterior sempre múltiplo,

Refúgio das saudades de todos os deuses antigos,

Espírito humano da terra materna,

Flor acima do dilúvio da inteligência subjectiva...

 

Mestre, meu mestre!

Na angústia sensacionista de todos os dias sentidos,

Na mágoa quotidiana das matemáticas de ser,

Eu, escravo de tudo como um pó de todos os ventos,

Ergo as mãos para ti, que estás longe, tão longe de mim!

 

Meu mestre e meu guia!

A quem nenhuma coisa feriu, nem doeu, nem perturbou,

Seguro como um sol fazendo o seu dia involuntariamente,

Natural como um dia mostrando tudo,

Meu mestre, meu coração não aprendeu a tua serenidade.

Meu coração não aprendeu nada.

Meu coração não é nada,

Meu coração está perdido.

 

Mestre, só seria como tu se tivesse sido tu.

Que triste a grande hora alegre em que primeiro te ouvi!

Depois tudo é cansaço neste mundo subjectivado,

Tudo é esforço neste mundo onde se querem coisas,

Tudo é mentira neste mundo onde se pensam coisas,

Tudo é outra coisa neste mundo onde tudo se sente.

Depois, tenho sido como um mendigo deixado ao relento

Pela indiferença de toda a vila.

Depois, tenho sido como as ervas arrancadas,

Deixadas aos molhos em alinhamentos sem sentido.

Depois, tenho sido eu, sim eu, por minha desgraça,

E eu, por minha desgraça, não sou eu nem outro nem ninguém

Depois, mas porque é que ensinaste a clareza da vista,

Se não me podias ensinar a ter a alma com que a ver clara?

Porque é que me chamaste para o alto dos montes

 

Se eu, criança das cidades do vale, não sabia respirar?

Porque é que me deste a tua alma se eu não sabia que fazer dela

Como quem está carregado de ouro num deserto,

Ou canta com voz divina entre ruínas?

Porque é que me acordaste para a sensação e a nova alma,

Se eu não saberei sentir, se a minha alma é de sempre a minha?

 

Prouvera ao Deus ignoto que eu ficasse sempre aquele

Poeta decadente, estupidamente pretensioso,

Que poderia ao menos vir a agradar,

E não surgisse em mim a pavorosa ciência de ver.

Para que me tornaste eu? Deixasses-me ser humano!

 

Feliz o homem marçano,

Que tem a sua tarefa quotidiana normal, tão leve ainda que pesada.

Que tem a sua vida usual,

Para quem o prazer é prazer e o recreio é recreio.

Que dorme sono,

Que come comida,

Que bebe bebida, e por isso tem alegria.

 

A calma que tinhas, deste-ma, e foi-me inquietação.

Libertaste-me, mas o destino humano é ser escravo.

Acordaste-me, mas o sentido de ser humano é dormir.

 
 
15-4-1928

Uma das insuspeitas dificuldades na vida de um introvertido é ter de lidar com pessoas extremamente extrovertidas, comunicativas, que metem conversa por tudo e por nada. A cada uma destas interacções, o introvertido vai ficando cada vez mais cansado, sem energia, esgotado.
Sabem aquele pessoal que trabalha no atendimento ao público e consegue estar sempre a sorrir e gerar empatia em três tempos? São o máximo, não é? Não. Para mim não. Aliás, prefiro mil vezes, por exemplo, ir àquelas lojas enormes em que se precisares de ajuda em alguma coisa tens de andar à procura de um funcionário do que ir a sítios onde, assim que entras, alguém se dirige a ti e pergunta se pode ajudar. Não, não quero ajuda, quero estar aqui a olhar e a dialogar comigo mesma sem ser perturbada nem observada!
Eu sou a pessoa mais introvertida do Universo e confesso a grande dificuldade que tenho diariamente.
Tenho uma chefe que podia ser apenas o cúmulo da extroversão, mas é muito mais do que o que posso narrar aqui e ainda acresce que tem uma fobia ao silêncio. Não consegue ficar calada, em circunstância alguma, o silêncio é-lhe verdadeiramente desconfortável, interpreta como outra coisa qualquer (desânimo, fatiga, mau feitio, sei lá) e, portanto, o normal é, se mais ninguém fala, tratar de preencher esse "vazio" (que para mim é essencial é sabe tão bem).
Quando tenho de passar um dia inteiro só com a chefe, é certo é sabido, chego ao final do dia com a cabeça feita em água. É óbvio que sei que não é por mal, não é defeito, é feitio, mas a sério que ultrapassa todos os limites possíveis. Chega mesmo ao cúmulo de, não tendo mais assunto para falar, ir revelando estórias pessoais e íntimas, nomeadamente que dizem respeito apenas a outras pessoas! Claro que, assim, a vontade de dizer o que quer que seja é cada vez menor...
Preciso de privacidade, sossego, recato e em calhando até isolamento. Não tem mal nenhum, fico em óptima companhia.

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Assunto polémico e propenso a clivagens, por norma a opinião acerca de touradas não reconhece posições intermédias. Ética e humanamente, ou existe a constatação óbvia de que um "espectáculo" que se centra na tortura animal não pode ser outra coisa que não uma barbárie e a única coisa de espectacular que pode ter é a exibição de toda a ignorância, vaidade e falta de compaixão dos humanos que participam e colaboram nesta exibição abjecta pelos restantes seres vivos ou se faz activamente a apologia desta mesma ignorância - porque a passividade em situações de agressão só fortalece o agressor -, apoiando, assistindo ao vivo ou na televisão, lucrando com ela ou permitindo que continue a existir.

Os supostos argumentos que se filiam a favor da perpetuação desta prática são, todos eles, coxos e alheios a qualquer vestígio de validade científica ou cultural. É por isso mesmo interessante reflectir no aproveitamento político (ou ausência dele) do tema. Se à direita não espanta que os valores obtusos de que não se espera algum tipo de racionalidade se alinhem com o tradicionalismo, com os interesses económicos dos latifundiários, com a perpetuação do culto classista das elites e do acesso parcimonioso a certos eventos, à esquerda pedem-se responsabilidades sobre a colagem ao argumento da "tradição"*, que não tem outra finalidade que não a tentativa desesperada de manter eleitorado nas regiões em que a tourada tem forte implantação. O financiamento público desta "actividade cultural" é ultrajante e inaceitável e o assunto é fracturante o suficiente para determinar a perda ou o ganho de votos, quer em eleições legislativas quer autárquicas. A "esquerda" que tenta salvar o capitalismo não faz grande alarido porque sabe que os atentos recordarão a sua actuação no único município que geriram. A esquerda mais séria já não é levada a sério há bastante tempo quando o tema é a tourada. Atravancando os discursos até dos seus mais lúcidos representantes na defesa do indefensável, tentando segurar os cada vez mais escassos votos de barranquenhos e ribatejanos, ainda não percebeu que se neste tema vocalizar a razão e colocar a abolição das touradas nos seus programas (ou pelo menos, para não ter de se justificar uma clivagem tão brusca com a assumpção de um erro antigo, da abolição do financiamento público das touradas ou devoção de parte dos orçamento municipais para obras de conservação de praças de touros, que seria o mínimo aceitável), a fidelidade do seu eleitorado não só não abalará, como o balanço entre os votos que perdem e os que deixam de perder (como o desta que vos escreve) poderá ser positivo. [Esta é uma crítica antiga que faço ao PCP, uma das que motivou a minha demora na filiação, das que motivou o meu voto avesso ao partido muitas vezes e uma das que permaneceram o suficiente para engrossar os motivos de afastamento.] Claro que a abordagem tão claramente eleitoralista de uma esquerda que, se cumprisse com o seu papel, seria revolucionária, interventiva e resistente, independentemente dos assentos parlamentares, já é por si só motivo de desgaste e falta de confiança (não quero falar de vergonha para os ideais marxistas neste texto, mas a bem da clareza também não posso deixar de parte este apontamento). De referir ainda que, onde o PCP se encolhe e tenta passar pelos intervalos da chuva, os Verdes não se impõem como uma força política distinta que não são.

Não é preciso "pensar muito, muito, muito" para se sentir empatia com animais, mamíferos como nós, que sentem dor como nós, que são mutilados e espancados entes de entrarem numa arena para, ao som da ignorância e crueldade dos bichos cientes que deveríamos ser nós, serem espetados com ferros aguçados no lombo, desorientados, sangrados, quebrados, atacados. Contudo, não me peçam empatia para com os toureiros e forcados que ficam feridos, que ela não existe. Pelo contrário, assumo a vertente violenta presente em mim e confesso que sinto, sempre que ocorrem feridos na arena, uma pequena satisfação nessa espécie de vingança simbólica de todos os touros trucidados às mãos daqueles bandalhos. É que estes foram de livre vontade para a arena, foram fazer parte do que apelidam de espectáculo, foram representar o papel para que são pagos, de heróis cobertos de brilhantes e lantejoulas a afrontar pobres animais derrotados e indefesos. Onde os olhos de extrema direita de Assunção Cristas vêem "bailado", pessoas com um pouco mais de profundidade de raciocínio lógico (não falo sequer dos mínimos olímpicos para se ser humano) veêm desperdiçada uma excelente oportunidade política e humana de deixar o silêncio não envergonhar a espécie.

À esquerda parlamentar que defende as touradas como forma de expressão cultural e de identidade 'nacional' (termo que por si só me causa alguma urticária, como deveria causar a todos os comunistas) tenho a relembrar que outrora (ou em outros lugares) também eram ou são tradições aparentemente apreciadas por algumas fracções do povo os autos de fé, a queima de bruxas na fogueira, a queima de gatos na fogueira, o enforcamento de 'criminosos', as lutas de gladiadores, de cães e de galos, o apedrejamento de mulheres suspeitas de adultério, ou o lançamento de anões. Que hipocrisia, não?

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