- diz (quase) assim a música.
Ouvir as mesmas canções é ter uma base de comunhão, de entendimento, quiçá de visão sobre uma série de aspectos. E é bom apanhar um murmúrio entoado no duche e fazer coro, pegar nas deixas e completar versos entre risos e uivos. É tão bom dançar em silêncio com a mesma banda sonora que não dá tréguas a ecoar em duas mentes sintonizadas na mesma estação, ondas médias ou curtas, inverno ou verão. Uma mão pousada na cintura, outra desleixada a deambular corpo acima, corpo abaixo. Como ímanes, dois animais que se pertencem, enganchados, bailando no ritmo que sabem de cor, suspiros e gemidos entredentes a marcar o compasso da sinfonia suprema sem maestro.
Partilhar com outra pessoa as nossas, tão nossas, canções, deixar escorregar uma gota atrevida e partilhá-la à janela com quem mora no silêncio invisível, do outro lado do coração, é todo um outro capítulo. É uma dádiva pessoal feita de adivinhas e silêncios, de empatias mudas e verborreias extensas. É abrir uma nesga da concha e soltar cavalos de batalha pela imaginação fora, sem coreografias ensaiadas. É fazer rebentar desejos de beijos como ervas daninhas na berma, persistentes, por muito que se tente arrancá-las pela raiz. São mãos que se tocam sem pele, tacto profundo, direito ao canto seguro onde enterramos segredos, sementes, sem medos.
[Quem me dera, meu bem, que te deixasses perder no olhar da Ventania. Quem me dera, amor, morrer para nascer de novo e te resgatar das labaredas que te gelaram, abraçar-te com toda a força e prometer que nunca te vou deixar cair, mais depressa cairia eu contigo do que soltar-te incerto no mar revolto. Enquanto eu estiver aqui, neste plano, não te faltará com quem ouvir a mesma canção ou espantar a solidão.]
Restolho - Mafalda Veiga
Geme o restolho, triste e solitário
a embalar a noite escura e fria
e a perder-se no olhar da ventania
que canta ao tom do velho campanário
Geme o restolho, preso de saudade
esquecido, enlouquecido, dominado
escondido entre as sombras do montado
sem forças e sem cor e sem vontade
Geme o restolho, a transpirar de chuva
nos campos que a ceifeira mutilou
dormindo em velhos sonhos que sonhou
na alma a mágoa enorme, intensa, aguda
Mas é preciso morrer e nascer de novo
semear no pó e voltar a colher
há que ser trigo, depois ser restolho
há que penar para aprender a viver
e a vida não é existir sem mais nada
a vida não é dia sim, dia não
é feita em cada entrega alucinada
p'ra receber daquilo que aumenta o coração
Geme o restolho, a transpirar de chuva
nos campos que a ceifeira mutilou
dormindo em velhos sonhos que sonhou
na alma a mágoa enorme, intensa, aguda
Mas é preciso morrer e nascer de novo
semear no pó e voltar a colher
há que ser trigo, depois ser restolho
há que penar para aprender a viver
e a vida não é existir sem mais nada
a vida não é dia sim, dia não
é feita em cada entrega alucinada
p'ra receber daquilo que aumenta o coração