Abre os olhos são seis da tarde De um dia que já passou Acordei dentro de um corpo dormente Tão igual ao que se deitou
Hoje eu não sou Transparente tão ausente Já esqueci tudo o que lembrei Hoje eu não sou Quase nada alma apagada E tenho tanto que ainda não dei
Saio de casa passo apressado Mas não sei bem para onde vou Sigo a calçada, mas está desfocada Tanta gente que aqui já passou
Hoje eu não sou Quase morto controlo remoto Sou boneco à tua mercê Hoje eu não sou De joelhos bola de espelhos Dá-me luz mas nunca me vê
Hoje eu não sou Hoje eu não estou Sou um fantasma de um desejo Sou só uma boca sem teu beijo Hoje eu não sou Hoje eu não estou Sou uma chaga sempre aberta E o teu abraço só aperta onde eu não sou
Ponho dois pratos na mesa um retrato Em que sorris para quem o tirou Faço as perguntas dou as respostas Tu já foste eu ainda aqui estou
Hoje eu não sou Já deitado farol apagado Quarto escuro não sei de quem Hoje eu não sou Uma prece só reconhece A tua voz e a de mais ninguém
Hoje eu não sou Hoje eu não estou Sou um fantasma de um desejo Sou só uma boca sem teu beijo Hoje eu não sou Hoje eu não estou Sou uma chaga sempre aberta E o teu abraço só aperta onde eu não sou
O teu abraço só aperta onde eu não estou
Onde estás No escuro eu não te vejo Tudo me faz Lembrar de ti mas não te tenho
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Há anos, muito antes de ter aprendido uma lição que custa a aprender, que nem sempre temos a importância para os outros que lhes damos na nossa vida, que nem todas as amizades são recíprocas, fiz um avião de papel com este poema, coloquei-lhe um beijo por companhia e atirei-o sobre o Tejo.
Hoje faz mais sentido do que nos outros dias. Hoje sem avião de papel, só silêncios e nevoeiro sobre a tua serra, frio húmido entranhado nos ossos, omnipresente, a fazer doer como as ausências e a arder como a tristeza. Gosto-te, aqui ao longe, discretamente para não te ofender ou incomodar. Gosto-te. E tenho sido feliz, por nunca ter seguido os trilhos que me quiseram destinar. O meu trilho, não mudo por ninguém, nem mesmo por ele ou por ti. Não me atravesso no caminho de ninguém nem permito que me desviem do meu. E sei que não sei mentir.
POEMA PRIMEIRO
... Gosto-te. E desta certeza se abre a manhã como uma imensa rosa de desejo indestrutível. O futuro é o próximo minuto, para além da infatigável religião dos meus versos, em cuja luz me acendo, feliz e nu. O meu sorriso conhece a bondade dos animais, o poder frágil das corolas, e repete o nome feminino dos arcanjos de peitos redondos, perfumados pelas giestas dos caminhos do céu. Gosto-te. Amarrado pelos meus braços de beduíno do sol, pobre senhor dos desertos, profeta da distância que há dentro das palavras, onde se alongam sombras e o sofrimento se estende até à orla da mais inquieta serenidade. Gosto-te. E tenho sido feliz, por nunca ter seguido os trilhos que me quiseram destinar. Aqui e ali me pergunto, despudoradamente. E sei que não sei mentir. É por isso, que recolho na face a luz imprescindível ao orgulho dos peixes e dos frutos. Gosto-te. Na-na-na, na-ô... Na-na-na, na-ô... na-nô... Canta o espírito do caminho, canta para mim e canta para ti, eleva o coração das grandes árvores, coração de seiva e de coragem, sangue fresco e verde, apaixonado e doce, de tanto contemplar o perfil das tardes. Gosto-te. Mas "longe" é uma palavra húmida, grávida, onde os sinos da erva tocam para convocar as sílabas. E, ao procurar-te, tremo apenas de ternura para que nem mesmo a inteligente brisa da manhã possa dar por mim. Mais discreto que isto é impossível.