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Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

origem

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Quando era miúda, costumava dizer que não tinha terra. Quando todos os amigos e colegas iam "passar férias à terra", eu sentia que não tinha essa outra terra além daquela em que vivia (e vivo). Tanto pais como avós, todos do mesmo distrito, nunca tive esse património distante das raízes familiares. Sentia-me um bocado triste por não ter as histórias de regressos com conversas à volta do forno a lenha da cozinha, sobretudo triste por não ter as experiências da ruralidade dos animais, apaixonada que sou desde sempre por tudo quanto é bicho, do mato ou doméstico, por qualquer pardal ou lagartixa, burro ou perú, minhoca ou ratazana. Mas ao mesmo tempo sentia-me afortunada por não ter que esperar pelas férias para ter os avós por perto, os meus avós faziam parte da minha vida diária e apesar de disfuncional (não são todas um pouco?), a família não era uma entidade com camadas e fronteiras geográficas, era só aquele núcleo fundamental (porque laços de sangue são uma coisa diferente de família).
O gosto pelas viagens e passeios, muitas vezes sem destino definido, despontou muito cedo. Ansiava por aqueles dias de verão em que partíamos os cinco num automóvel, pelas estradas de Portugal, às vezes Espanha, sem nada marcado, ao sabor da aventura. Chegados a um cruzamento, o meu pai perguntava à minha mãe: "esquerda ou direita?". Que é como quem diz "Norte ou Sul"? Das inúmeras memórias e ensinamentos que o meu pai me deu de herança, essa é uma das melhores. Essa pequena rebeldia de ir para onde quiser ou me apetecer, sem regras ou planos definidos. Nunca sabíamos bem por onde iríamos estar, ou quantos dias íamos ficar. O limite óbvio era o orçamento, que nunca permitiu exuberância de nenhuma espécie. Outra coisa que aprendi com estas viagens foi que nem todas as pessoas gostam ou lidam bem com a ausência de estrutura, horários e planos. O meu avô e a minha mãe, se não estavam sentados para comer "à hora de almoço" ficavam com birra de fome. A minha avó, com muito mais resiliência, também, mas não resmungava, guardava-se para a birra de sono quando de noite ainda não tínhamos alojamento. Muitas, muitas foram as vezes em que almoçámos às quatro da tarde ou à meia noite ainda não fazíamos ideia de qual a residencial de beira de estrada onde podíamos dormir. Assim se faz uma aventureira, com muita descontracção e capacidade de lidar com imprevistos, muito mais fascinada pelos recantos curiosos das aldeias, pelos riachos ou searas, do que interessada nessas coisas mundanas e corriqueiras como comer e dormir.
Foi assim que conheci Portugal de lés a lés e parte de Espanha por dentro, com mil histórias caricatas, incidentes e tropelias para contar. Descobri que a cultura tem diversidades regionais imensas e fascinantes, aprendi que as pessoas não vivem todas com os mesmos confortos ou prioridades, e também aprendi que não importam as diferenças, a língua ou sotaque, a cor, o tamanho ou as roupas que vestem: as pessoas são essencialmente iguais. Nunca mais parei de viajar, tornou-se uma sede incontrolável de aprender, ver e viver na primeira pessoa. Mania burguesa, dirão (não sem razão) os meus camaradas mais puristas. Seguramente que é um privilégio burguês poder viajar para o estrangeiro várias vezes por ano. A seguir ao privilégio é também uma escolha consciente, que implica abdicar de muitas outras coisas que não valorizo tanto. Não planeio abdicar deste privilégio, enquanto o puder manter. Viajar traz-me riquezas que ninguém me pode tirar. Aprendi que um sorriso no olhar é capaz de ultrapassar qualquer barreira linguística e que o mundo, na sua aparente pequenez de distâncias encurtadas e da comunicação imediata, é tão grande quanto estivermos dispostos a ver mais longe.