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Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

origem

"Sou ridículo" constatou ele já prestes a iniciar uma viagem igual a tantas, um regresso a casa repetido tantas vezes, embalado pela ondulação da maré. Nunca com uma percepção tão clara do próprio absurdo. Em casa, à sua espera, estava a pessoa mais fantástica que conhecia, a quem amava sem limites, que podia definir como lar, que habitava intimamente, que partilhava consigo cama, mesa, planos, risos e segredos. Tinha acabado de despedir-se com beijos nos lábios e sorrisos sinceros, sempre espantados com a sorte, de uma mulher fascinante, que admirava tanto, que o encantava como serpente hipnotizada por uma flauta mágica, tesouro ofertado pelo acaso. E, idiota, com imerecida fortuna dupla guardada no coração, continuava a deixar-se cair, lamentando a ausência de outra, complicada, difícil, problemática, inconstante, que o dispensava em indiferença ou o afastava com espigões nos pés. Ridículo, sabia bem que ela não queria realmente saber dele, que o usara para preencher vazios que não havia sido ele a causar. Ridículo, por saber desde o primeiro instante que aquela mulher, com o seu discurso assertivo, com os fascínios que lhe confessara e com tantas diferenças na expressão dos mesmos exactos pensamentos, só podia trazer-lhe mais um nó no coração. Resistiu, como sempre faz quando reconhece de imediato uma alma que é parte de si. A imagem do seu inverso complementar reflectida no espelho ofende como um embrião no útero, como uma colonização de um espaço privado que não se está preparado para partilhar. Recusou, rejeitou e, como sempre, acabou por não conseguir lutar contra as evidências. A partir do momento em que se torna impossível passa a ser o que mais se deseja. Era impossível, pelo menos quase sempre, a aliança no dedo anelar dela não deixava margem para enganos. Mas por vezes vislumbrava uma frecha de luz, quando ela se distraía e deixava escapar que gostava dele, ou que queria fugir com ele, ou soltava alguma expressão inesperada de afecto. Logo de seguida regressava o breu, amiúde tapava as frechas e tudo voltava a ser um novelo de suposições emaranhadas; ela corrigia-se, não sabia como gostava, ou quanto gostava, ou até quando gostaria. Frechas distraídas não iluminam uma vida. Sabia que era ele a companhia assídua desde que à distância, provavelmente não a única, provavelmente apenas uma muleta para a auto-estima dela. Sabia também que o que era impossível para si não parecia ser para outros. Consigo tudo era difícil, complicado, problemático e constrangedor. Mas com os outros todos fazia-se simples, as oportunidades surgiam, nenhum impedimento ou urgência interrompia coisa nenhuma. Os outros cabiam nas fotografias, nos destaques, tinham risos e elogios. Cláudio era mantido à parte, como um segredo, aparentemente insignificante. Sabia que só existia na vida dela enquanto houvesse tempos mortos e protagonistas ausentes. Tentava evitar questões, definições e comparações, sabia que qualquer coisa que se assemelhasse a pressão, na cabeça dela, era mote para mais uma fuga. Quanto mais ele a amava, mais ela se afastava. Contudo, às vezes perdia-se no embalo de conversas a meia luz com o coração pendurado no tecto e confessava poesias pontuadas com amor. Ela virava-lhe costas. Tantas, demasiadas vezes. Ele prometia ficar e ficava. Ela desejava com mais força cortar os laços do que dar-se um instante. A sua especialidade era fugir, desaparecer, calar. Virar costas só a quem nunca lhe virava costas a ela. Cláudio sabia de tudo isso, sabia todas as histórias do início ao fim. As mulheres da sua vida também sabiam tudo dele. A única coisa que Cláudio não sabia era como despir aquele amor impossível, pesado como chumbada no peito, de tão grande e asfixiante.

Um dia Cláudio despediu-se. Deixou tudo organizado, antecipou cada problema e questão e respondeu a todas as perguntas que considerou importantes. A ela deixou os livros, para que neles fosse encontrando pedaços dele. Morreu com a esperança de um dia, quando fosse já tarde demais, ela sentir falta dele. O contentamento desse arrependimento improvável em forma de vingança ornamentou o cadáver com um esboço de sorriso. Sob os dedos abertos que cobriam o lado esquerdo do peito, onde um coração vadio tinha batido com fulgor antes de ser abandonado, as cartas, cuidadosas e sem esquecer ninguém. A ela deixou escrito: "Foi sempre amor verdadeiro deste lado. Insustentável por ser tanto, transbordou por não ter por onde escoar."

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[Sérgio, esta é para ti. Muitos parabéns! Beijinhos verdes! 😊💚] 

And who by fire, who by water,

Who in the sunshine, who in the night time,

Who by high ordeal, who by common trial,

Who in your merry merry month of may,

Who by very slow decay,

And who shall I say is calling?

And who in her lonely slip, who by barbiturate,

Who in these realms of love, who by something blunt,

And who by avalanche, who by powder,

Who for his greed, who for his hunger,

And who shall I say is calling?

And who by brave assent, who by accident,

Who in solitude, who in this mirror,

Who by his lady's command, who by his own hand,

Who in mortal chains, who in power,

And who shall I say is calling?