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Participei no 12.º Concurso Literário da Papel D'Arroz editora, sob o mote "até que a vida nos separe", com o texto "Estória de um Amor que não cabia na palavra". Para ler, é seguir o link. :)
De que valem os contratos se o coração fica cego, não consegue ler ou tão pouco obedecer?! De que servem as anilhas se em vez de laços que unem são amarras que prendem?
Liberdade é não ter donos nem amos, é não amar por obrigação, é não tolher sentimentos bonitos porque o papel diz que se é propriedade de alguém. Não sou de ninguém senão minha e dou-me a quem queira se me souber aceitar.
Se não é nada do que parece, não deixes que pareça, porra!
O azul em braçadas
Acolhe os vôos ovais
Prevaricadores
Habitantes das marés
Pensativas rotas altivas
Dos que permanecem
Insistem nos verões certos
De areia pelas mãos vazias
Do Sol a lamber a pele com força
Das fugazes paixões estivais
Recolhem as manhãs frias
Nos bolsos vestígios cansados
De conchas, fogueiras, cervejas
Ébrios beijos ao luar
Sombras de risos espaçados
Pendurados
No lugar da cacimba
A ocasional estrela-do-mar
UMA CRIATURA
Sei de uma criatura antiga e formidável,
Que a si mesma devora os membros e as entranhas
Com a sofreguidão da fome insaciável.
Habita juntamente os vales e as montanhas;
E no mar, que se rasga, à maneira de abismo,
Espreguiça-se toda em convulsões estranhas.
Traz impresso na fronte o obscuro despotismo;
Cada olhar que despede, acerbo e mavioso,
Parece uma expansão de amor e de egoísmo.
Friamente contempla o desespero e o gozo,
Gosta de colibri, como gosta de verme,
E cinge ao coração o belo e o monstruoso.
Para ela o chacal é, como a rola, inerme;
E caminha na terra imperturbável, como
Pelo vasto areal um vasto paquiderme.
Na árvore que rebenta o seu primeiro gomo
Vem a folha, que lento e lento se desdobra,
Depois a flor, depois o suspirado pomo.
Pois essa criatura está em toda a obra:
Cresta o seio da flor e corrompe-lhe o fruto;
E é nesse destruir que as suas forças dobra.
Ama de igual amor o poluto e o impoluto;
Começa e recomeça uma perpétua lida,
E sorrindo obedece ao divino estatuto.
Tu dirás que é a morte; eu direi que é a vida.
Assis, Machado de, 1839-1908
O Almada & outros poemas / Machado de Assis – São Paulo
Globo, 1997, - (obras completas de Machado de Assis) p.126.
Dói-me o Rossio todo. A cada passo, cem mil vidas ali escolhidas. Em cada pedra da calçada, uma miséria. Cada memória é uma vida.
Desde a plataforma do metro ao topo das escadas, do banco de pedra ao D. Maria, do Largo à estação de comboios. Doem os primeiros beijos, e também doem os segundos. Os olhos verdes, os castanhos e os azuis, o joelho no chão, o convite que recusei. Dói todos os dias, à ida, à chegada, e sempre sem hora marcada. Doem as varandas por serem cúmplices, pois se não me impediram!... Testemunhas ausentes, caladas, de todo o enredo condensado em tantos actos, iguais sem nada em comum.
Podia ser uma curta, toda filmada ali. Cenário perfeito, a chuva, o drama, tapetes lilases. Doem os olhares dos taxistas e dos turistas, dos amigos habituais e inimigos pontuais. Dói o sem-abrigo que favoreço com os trocos que me destroçam. Também me dói a Rua do Ouro, a Rua da Prata, os Restauradores que serviram para fingir que se restaurou o que permaneceu na mesma, a Praça do Comércio e a Av. Ribeira das Naus. Dói-me a Praça da Figueira, dói-me o Largo do Intendente em que aos poucos as dores vão sendo reparadas, entre beijos novos e abraços antigos com cheiro a casa. Dói-me o Largo de São Domingos, em que sempre recordo entre uma e outra ginja um pedido de casamento à chuva, continuamente negado. Doem-me os encontros perfeitos, todos, a vigia de Dom Pedro IV, altivo e seguro, e os enredos que escorrem apartados até ao Cais das Colunas, até Santa Apolónia, comigo espalhada um pouco por todos os barcos ao largo, em fuga até à margem mais que certa onde posso esconder-me atrás do rio.
Dói-me tudo até ao Cais do Sodré, cais do meu fim.