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Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

origem

Sabes que não quebras. Se ainda nada te partiu, depois de tantos embates, cortes, ataques no escuro, golpes de catana e explosões de vulcões no teu peito, se os venenos passam por ti como refrescos, não quebrarás. Querias fazer uma metáfora com cacos e estilhaços, mas essa figura de estilo não cumpre com a honestidade que é fronteira, porque nada se quebrou em ti. Não quebras porque o que há é e será sempre inquebrável. Não são cacos. É titânio. Com algumas mossas de tanto bater no mesmo sítio, com sintomas de rejeição de próteses porque de repente te surge um pedaço a mais, grande, incontornável, que ocupa um espaço só seu e empurrou para o lado o que estava em excesso. Como nas cirurgias, a adaptação não é imediata. Tens de reaprender a levantar-te, a caminhar, a deitar. Vês o mundo de uma perspectiva diferente, porque ficaste maior. Tens dores. São dores fortes, mas tu és mais, aguentas com ajuda de um ou outro opiáceo nos momentos insuportáveis. Também ficaste dormente num ou outro pedaço, que esse enxerto cortou uns nervos. Leva tempo, a adaptação. Leva tempo a sarar o corte e a cicatriz fica como lembrete externo do pedaço alheio que te invadiu e tomou conta de ti. O titânio é frio, mas não é um monstro. Dói, mas melhorou muito a tua vida. Ainda te raspa o coração, ainda se atravessa nas costelas e não te permite respirar, ainda te faz pensar muitas vezes que sem ele terias sido poupada a tanta dor. Mas agora já é tarde. Remover um pedaço que já é parte de ti é inconcebível. Nos dias como hoje, em que dói tê-lo ali estagnado e imóvel, só a comprimir o peito em jeito de ausência, tentas afogar as mágoas no fundo da garrafa ou na poesia desconexa, sabendo de antemão que as putas sabem nadar e não dão tréguas. Vomitas palavras sem cuidado, deixas sair o que te corrói sem prestar atenção à forma. A solidão amiga leva-te em ombros e embala-te o sono e esperas que, desta vez, não se solte o nome errado, que é tão certo, a meio do sonho.

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