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Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

origem
 
Não posso adiar o amor para outro século 
não posso 
ainda que o grito sufoque na garganta 
ainda que o ódio estale e crepite e arda 
sob as montanhas cinzentas 
e montanhas cinzentas 

Não posso adiar este braço 
que é uma arma de dois gumes amor e ódio 

Não posso adiar 
ainda que a noite pese séculos sobre as costas 
e a aurora indecisa demore 
não posso adiar para outro século a minha vida 
nem o meu amor 
nem o meu grito de libertação 

Não posso adiar o coração.

UMA CRIATURA

 

Sei de uma criatura antiga e formidável,

Que a si mesma devora os membros e as entranhas

Com a sofreguidão da fome insaciável.

 

Habita juntamente os vales e as montanhas;

E no mar, que se rasga, à maneira de abismo,

Espreguiça-se toda em convulsões estranhas.

 

Traz impresso na fronte o obscuro despotismo;

Cada olhar que despede, acerbo e mavioso,

Parece uma expansão de amor e de egoísmo.

 

Friamente contempla o desespero e o gozo,

Gosta de colibri, como gosta de verme,

E cinge ao coração o belo e o monstruoso.

 

Para ela o chacal é, como a rola, inerme;

E caminha na terra imperturbável, como

Pelo vasto areal um vasto paquiderme.

 

Na árvore que rebenta o seu primeiro gomo

Vem a folha, que lento e lento se desdobra,

Depois a flor, depois o suspirado pomo.

 

Pois essa criatura está em toda a obra:

Cresta o seio da flor e corrompe-lhe o fruto;

E é nesse destruir que as suas forças dobra.

 

Ama de igual amor o poluto e o impoluto;

Começa e recomeça uma perpétua lida,

E sorrindo obedece ao divino estatuto.

Tu dirás que é a morte; eu direi que é a vida.

 

 

 

Assis, Machado de, 1839-1908

O Almada & outros poemas / Machado de Assis – São Paulo

Globo, 1997, - (obras completas de Machado de Assis) p.126.