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Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

origem

O sorriso que exibes
Manchado
Formatado de cordiais agrados
Não esconde o rasto de sal
Nos impolutos olhos inchados
Tranca as portas, aumenta o som
Põe agasalhos que calem a fome
Não fales, não escrevas, não digas
Não aceites nada de que possas gostar
Deixa sangrar, deixa esquecer
Recolhe ao negro sagrado
Vazio que sabes ser o teu lugar
Deixa escorrer, continua a cantar
A solidão é camarada
Fiel, rara qualidade
Deixa sangrar, deixa morrer

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shiva.jpg

Shiva é o deus hindu da destruição, complementado na mesma medida pela energia feminina e criativa de Parvati, deusa do amor e da génese de tudo, que gera inícios e recomeços. Juntos, potenciam a transformação do universo. O tridente de Shiva destrói a ignorância humana. O fogo e a força contida de touro transforma tudo aquilo em que toca. A verdade é vista pelo terceiro olho, o que vê além do visível, além do óbvio e do palpável, o que vê por dentro, o que sabe as coisas que ninguém lhe ensinou.

À vez e sem supremacia, encarnamos Shiva e Parvati, duas faces complementares e idênticas da energia que cria e destrói, em sucessão, como um jogo de berlindes com planetas e satélites irrelevantes na vastidão.

Senhores dos animais, com quem conversamos por falarmos a mesma língua, por nos assumirmos bestas sem redução antropocêntrica, por comungarmos da mesma energia pura e naive.

Por vezes atiramo-nos bolas de fogo, queimamos excessos e estilhaçamos de seguida em harmonias que dispensam ensaios.

Assim somos seus reflexos. Rebentamos em cada epílogo para logo encontrar um meio de nos reescrevermos. A morte não nos merece atenção além da atracção pela finitude, mas a explosão da ordem numa festa barulhenta de fogo e fumo diz poesias que encerram a promessa de inícios melhores, do final de sofrimentos e de perversões; a promessa de liberdade que trago tatuada. Sem donos, sem amos, sem contratos que não assinei a tolherem-me as ganas.

Anseio pelo momento do cogumelo nuclear que me apague a existência, a história e a memória. Salivo por esse instante em que tudo já não exista para de novo nascer, em paz, sem dor nem lembrança, metade pura do resto que procuras. Pego fogo a cada acha e cuspo-lhe gasolina. Magoa-me, corta-me até ao osso, descarna-me como presa nos teus dentes tingidos do meu sangue. Derrota-me cada suspiro, destrói-me outra vez. A fénix chamuscada há-de desistir dos vôos picados, exaurida. Penas de lume como fagulhas bailam no canto da noite sem grilos. Estrelas cadentes e fumo. Fim.