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Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

origem

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Começaram a subir a Travessa do Maldonado, devagar, atados com laços de vontades um ao outro, e um senhor que passava, observando-os contra a luz que se esbatia com o fim da tarde, derramou uma exclamação que soou bonita e sincera: "Vocês parecem anjos!"

Sorriram ambos. Ele, calado e talvez menos espantado. Porventura, já lhe terão chamado anjo, seria uma mera constatação do óbvio. Não trazia as asas postas, mas empurrava à mão duas rodas.

Ela respondeu com um sorriso largo e convicto: "E somos!"

O senhor agradeceu e acenou: “Bem-hajam!” Talvez tenha sido ele a presença angelical que lhes abençoou a noite de veludo, que a partir daquele momento, deslizou como nuvens empurradas no horizonte de lilases, a desafiar as definições do que é sonho, do que é perfeição.

Despenteados, desenquadrados da normatividade que não os incomoda nem consegue deter, têm o dom de passar invisíveis nos largos e ruas. Talvez os pés sejam silenciosos ou levitem um pouco, que sempre parecem situar-se num plano etéreo, num intervalo de esguelha entre planos de realidades duras, feias, doridas. Talvez os risos sejam cândidos ou talvez sejam realmente anjos incorpóreos a cirandar, com risos de cócegas na barriga e bochechas rubras.

Os despenteados caminham lado a lado, partilham-se, abrem sem pressa as portas rangentes do que encerram em si e deixam o outro entrar um pouco no íntimo do que os incomoda, o que os preocupa, o que os motiva. Não há sentimentos de posse, não há lugar para o ciúme. As sombras começam a espalhar-se nas paredes e janelas, os gatos vadios miram e escutam as conversas, interessados.

Sempre brotam sorrisos sinceros quando se encontram, feitos de luz, sorrisos inteiros, dos olhos ao queixo, leves e musicais. O mundo todo às costas não é um fardo, é uma aceitação de que há uma missão maior a que não se pode fugir. Os lábios tocam-se de mansinho, como harpas, em fôlegos macios e vítreos, translúcidos. Os dedos encontram-se e aninham-se, vestidos de carícias e cumplicidades, ainda que o calor de um Outono que lembra Junho peça nudez. Os narizes navegam, afoitos, por montes e vales, tacteando superfícies e odores. Os caracóis rebeldes são afagados, apertados e baralhados uns nos outros como cartas do mesmo naipe.

O cheiro do bairro, da casa, da roupa e da pele, que já fora estranho de desconhecido, tornou-se confortável e sinal de boa companhia, de sorrisos pendurados nas peles mornas, tão doces. Cheira a conforto e a aventura, a vontades e planos de mudar o mundo. Como uma manta protectora de ternura espessa que mantém tudo no lugar e à prova de agressões externas, um casulo em que faíscam inícios, germinam revoluções e entre parênteses se vão escrevendo páginas de um passado estendido, abrangente, certo como a idefinição do futuro.

A lua acende os sorrisos como narcisos, que existem só para se trocarem e rebentarem os limites da beleza que não tem tradução, os olhos dançam perdidos nos universos de si próprios. Ela jura que ouve poesia no sorriso dele, que a abraça com dedos, língua e asas, que lhe escuta segredos.

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Os anjos não precisam de nomes ou verbos, vivem materializados nos momentos de mãos dadas na sua rua, nos abraços prometidos, às vezes adiados, às vezes calados com lábios húmidos ou em queda livre no azul maior que o mundo.

Há quem engula coisas estranhas, como moedas ou giz ou penas de pombos. Há quem mastigue livros e cabelos. Os anjos engolem intervalos de coisa nenhuma, engolem músicas e um ou outro amor que encontrem encostado numa esquina suja e esquecida. Às vezes digerem memórias e partem-nas em milhentos pedacinhos, de forma a sobrarem só fragmentos desconexos das recordações dos seus encontros. Fazendo o esforço, só sobram salpicos e a certeza de que é tão bom, como o aroma de um licor de ginja forte e puxado à canela entre lábios meigos que falam sem sílabas.

Há quem mergulhe de cabeça em mar alto, há quem surfe comboios em movimento, há quem se enterre em afazeres e obrigações e lutos. E os anjos, esses lambem os dias e as noites e as estrelas, coçam silêncios para os ajustar à roupa em jeito de conforto, tricotam ideias ousadas e poéticas em letras de lã macia e encostam-se nos quintais frescos, de asas estendidas, despenteados, a ver passar meses ao longe e a recolherem um pouco mais perto, entrelaçados no sono, aninhados.