Cada pessoa tem um número de mentiras bem definido para gastar na sua vida, e o mesmo se pode aplicar às metáforas que diabólica e sorrateiramente assaltam a demência criativa do escritor. As duas poderão ser simultâneas e compulsivas, logo não desprovidas de sinceridade. Como as pessoas más podem ser fracas ou fortes, mas pessoas boas são sempre fortes, de que modo estabelecerias uma ponte entre a metáfora, a mentira, a sinceridade e tu mesma?
A ponte do meu âmago para a mentira está por descobrir, que me causa inegável repulsa sob todas as formas. Concebo, sim, representar um papel distante de mim, que terei feito em ocasiões distantes e cuja infelicidade profunda que me causei mais reforçou a necessidade de verdade, quase como uma adicção. Desconfio que quem mente não é feliz. E eu sei que não sou feliz com mentira a poluir-me o sangue, ou a vista, for that matter.
Sendo que as verdades de cada um mudam consigo e com o ponto em que se encontra - é natural que assim seja porque a própria verdade da realidade que percepcionamos é lida de múltiplos ângulos e, assim, cria uma multiplicidade de verdades - e que raramente coincidem com as verdades alheias, a não ser em tratando-se de verdades factuais e verificáveis globalmente, a própria definição categórica que adiantes, de pessoas boas e pessoas más, é permeável, no mínimo. Não há pessoas sempre boas nem pessoas sempre más, há sim pessoas de essência pura e generosa e pessoas de essência egoísta e invejosa (substitui os adjectivos pelos que melhor sumarizarem a tua experiência pessoal).
Ou seja, a relatividade é uma constante até da verdade. A minha verdade pode não ser a tua e vice-versa, o que não significa que um de nós esteja a mentir. É desta percepção que nasce a tolerância e compreensão perante os outros. Não mentir é ser fiel à tua verdade. É em cada momento agires e comunicares exactamente o que pensas e sentes. Ainda que saibas bem que passada uma hora possas discordar de ti próprio. Aqui entra a capacidade de controlar a impulsividade (que tanto me falta e a outros sobeja). Falta-me porque não me rendo à verdade que exista daqui a uma hora, porque aqui e agora não tenho como escapar ao meu crivo interno de autenticidade, que me impele e me ferve, me mantém viva.
Deixei as metáforas para o fim, como uma criança gulosa, porque são as minhas preferidas. E são-no pela absoluta sinceridade que não se transmite de nenhuma outra forma. Muito mais que um simbolismo inerente e as vastas possibilidades de interpretações pessoais que oferecem, mais que a beleza com que os mestres as desferem, as metáforas são, elas próprias, verdade. Repara como alguém se identifica com as características que encontra, por exemplo, numa ventania. Uma metáfora apresenta um carácter bem mais amplo, livre, capaz de evoluir e permanecer, que uma mera descrição, um nome, e só encontra caminho para instalar-se (mais que nascer) nas palavras dum escritor através da sinceridade. Doutra forma, não passa(ria) duma coxa tentativa de forjar figuras de estilo sem identidade, mal semeadas.
E, dizia o Kundera que o amor nasce de metáforas. Sei que sim. Sei duma paixão muda que nasceu de mãos que se tocavam sem se procurar, dum amor que pegou em duas noites estreladas e atou-lhes um nó sem tempo, sei de flores silvestres que brotaram das asas azuis de pássaros perdidos. E esta é a Verdade, esta sou eu.