é muito subjectivo. Protestei tanto que não fazia sentido, nunca fez, e cada vez faz menos sentido. Mas já não importa porque fazer sentido nunca foi importante.
Depois de tanto que se passou sem se ter passado nada, voltei a reler as coisas tão bonitas que me dizias há tão pouco tempo. Parece que foi há décadas e permito a confissão das saudades de me sentir como me fazias sentir. Faz parte do exercício de exorcismo, passar por cima de cada ponto, remoer para escaqueirar e varrer porta fora. Medir a distância do que prometia ser ao que nunca foi - anos-luz! Em menos de um fôlego passei do tudo, dos planos e promessas, à transparência indiferente de coisa nenhuma; ao silêncio - obrigada pelo silêncio.
Prefiro mil vezes saber que sou nada à interrogação, às meias palavras, reticências e desculpas vazias. Não faz sentido? A indefinição é apenas mais uma forma de indiferença, de unilateralidade; é apenas mais uma violência.
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Tenho andado a pensar em cortar contigo, fechar-te num envelope e manter-te só no pretérito, como uma recordação saudosa e amarelada que se encontra com surpresa no fundo de uma gaveta quando se faz uma arrumação. És difícil de conter num envelope; não te consigo resumir em meia dúzia de fotografias ou nas milhentas cartas que já trocámos, feitas aviões de papel em vôos picados, cada um a despenhar-se desajeitadamente sobre si próprio, sem sobreviventes. Há sempre uma ponta que se solta ou uma página que ainda aparece, desenquadrada, virgem, inédita. Uma palavra quase esquecida, um novo carinho insuspeito que largas ao acaso no meio dum raciocínio distante, interrompendo o meu luto.
Sei que tenho de te arrumar em algum lado, nos confins de mim, onde não me desafies nem inquietes. Tenho mesmo, que viver com um permanente ardor no peito e um vazio num pedaço de alma, qual membro fantasma de uma coisa que nunca esteve realmente lá, não é sustentável, vai envenenar o que tenho de são e dissolver a fortaleza que me orgulho de ser.
Talvez tenha de te cortar efectivamente, com golpes fundos de navalha, com força impiedosa e toda a raiva que me tenho, para te imputar a ti a tarefa do silêncio. É ainda mais difícil, que sempre que te arranho arrasto-me pelos dois e depressa esqueço todos os planos tão racionais de abandono sem voltar costas, para te querer mais perto, proteger-te, fazer do meu corpo tua carapaça, tomar por ti todas as dores e curar essas feridas abertas em que deitas sal. A tua presença é-me difícil, assim como é, vagarosa e nublada, intensa e fantasmagórica, em fuga constante; já a tua ausência é-me insuportável. Fazes-me falta, iluminas uma parte de mim de que já me ia esquecendo de ser. Escureces inseguranças que não têm lugar nos teus olhos e o que vês de mim é muito mais o que sou eu sem casca nem carapaça. É, tudo isto, um perfeito desperdício de amor e de forças. Afastar-me para não sofrer, e afinal sofrer com isso muito mais. A equação é cruel. As perguntas já se habituaram a seguir sem respostas. Também já me ocorreu cortar com tudo o resto, com todos os outros que fazem desta provação uma tortuosa espiral de ferros em brasa. Só que o meu sentido de justiça é um estúpido que fala mais alto, não posso penalizar quem nos quer tão bem só por não (te) ter. Não havendo mais opções para lidar com o martírio, o corte é este, o meu, por cima de cicatrizes antigas, para se notar menos a quem olha em horror. Sem lágrimas. Com lâminas tristes e rombas que fraquejam quando chegam ao osso, mas terão de continuar mais fundo, que para cortar a tua presença em mim tem de ser renovado o tutano, ou então nascer de novo. A falta que me fazes ninguém sabe e se me perguntares nego com toda a força bruta que desconheces. Que tristeza esta que alimenta demónios chifrudos, fatia a fatia, engordando vazios cheios de ti. Que ausência é esta, amigo, que emaranha os novelos que te apertam em mim?
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Aque nesta margem esquerda, a margem certa, a vida ocorre num universo paralelo em que o impossível desenrola-se perante os olhos muito abertos e queixos esquecidos. O insólito acontece a par e passo com o ritmo corriqueiro dos dias. Nada causa espanto, de tão espantoso que tudo é. Penso-me tantas vezes presa nas linhas de uma ficção, um qualquer conto da Alice Munro, só percebo que é real porque a paisagem é impossível de confundir. As coincidências são demasiado óbvias para que a realidade simplesmente exista porque sim. Os insólitos, o inexplicável, o sobrenatural que me pisca o olho a todo o instante e que teimo em renegar, como se as entrelinhas deste enredo tivessem saído da minha mente no seu estado mais perverso. É possível que seja só loucura, que se tenham esquecido de me sintonizar bem as antenas lá na fábrica onde montam as peças das pessoas. Somos todos demasiado inverosímeis, não achas?
Quando era criança (nunca fui, nasci já velhíssima) e estava muito mais próxima da verdade de todas as coisas e a cabeça fervilhava com teorias fantásticas e absurdas, tinha a certeza que vivia num mundo falso, com cenários montados para me estudarem os movimentos e lerem os pensamentos. Nada fazia sentido. Porque motivo estava eu presa no corpo de uma menina pequena, aquelas pessoas afáveis mas tão diferentes de mim a fazerem-se passar por família, vizinhos, amigos. Nunca me enganaram!
Nesta margem as coisas desaprendem-se com o tempo, o curso das águas e as rotações do planeta. Surreal é virar-te as costas quando te trago dentro de mim.