Não me bastavam as crónicas, ainda vou de encontro às outras.
Dói-me a burrice castradora com que tenho de lidar diariamente. Dói-me o Rossio. Dói-me cada oportunidade que deixei escapar por entre os dedos - foram poucas mas as únicas que podiam importar. E doem-me mais as dores que terei provocado.
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Pessoa um bocadito obcecada com a higiene oral tem um enorme sentimento de culpa porque não vai ao dentista há mais de um ano. O tempo vai passando e a culpa piorando. Pessoa começa a ter sensibilidades dentárias que nunca teve, começa a suspeitar de cáries. Pessoa finalmente marca consulta no dentista, dois anos depois da última visita.
Veredicto: não há cáries nenhumas, tem de se escovar com menos força porque as gengivas já estão a começar a regredir à pala das lavagens à bruta.
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Raramente me recordo dos sonhos que tenho, mas recordo-me de breves instantes dum, ocorrido há mais de quinze anos. Estava presa nesta gravura de Escher. Subia e descia escadas, apressada, e não chegava a lado algum. Estava aflita, desencontrada de alguém, sem cima nem baixo nem certo nem errado, mas sempre distante de onde queria estar. [Pensando bem, se calhar ainda vivo presa nesta gravura sem me dar conta...]
Há coisas que também eu não te digo, para não te assustar, pensamentos e vontades, carinhos que brotam de surpresa. Sempre que falas de ter filhos, faço um esforço por enxotar a imagem sorrateira em pastel esbatido de ti a falares com a minha barriga, a acariciares com o nariz o meu umbigo, a inundares de beijos seguros cada estria, enquanto uma mão distraída se entretém com um mamilo pronto a ser partilhado com a tua boca. Penso nestas coisas tolas quando pensas que estás só a debitar banalidades e eu te vejo inteiro, nu, exactamente como és quando te esqueces da armadura. Imagino que tentes esconder de mim, a princípio, quando encontrares poiso que te queira bem e não te faça fugir. Saberei como sei sempre tudo sem que o digas, sem que haja indícios visíveis, sem que me contem. Não to direi com palavras honestas, mas secretamente vou rebentar de orgulho como sempre fico, cheia e vaidosa, com qualquer pequena vitória tua. És um pouco meu, passei por ti e fiquei um pouco em ti, como ficaste tu em mim. Posso vir a odiar a cara sardenta que te leve, mas a ti não. Digo-te tantas vezes, nunca percebes, nunca respondes: gosto de ti.
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Quando me puxas pela mão fazes sentir-me lenta, pequena, gorda, um empecilho. Dizes sem pensar todo o género de barbáries e ofensas, que as minhas unhas estão um nojo, que as pestanas estão um nojo, que o meu perfume é um nojo... Dizes que nunca me visto bem e chamaste-me coisas piores. Mesmo sabendo que eu não esqueço, nunca. Nem sequer consideras a hipótese de me estares a magoar com essas palavras. De cada vez que tenho de te pedir um beijo ou lembrar que hoje ainda não me beijaste, magoa. De cada vez que te peço um abraço, um carinho, magoa. Porque é a tua função perceber quando é preciso e antecipar quando não é. Porque sempre que não é necessário um beijo ou um abraço para me colar qualquer coisa que se tenha partido ainda é melhor, porque é assim que é o amor, espontâneo e inevitável. De cada vez que estás a meu lado sem me ver, sem me dares a mão, e tenho de mendigar um carinho, perde-se qualquer coisa. Não devia ser necessário pedir. Estou farta de pedir e ter de me contentar com migalhas. Inundo-te de beijos, de carícias, de elogios. Digo-te que és lindo, doce, o melhor do mundo, e sempre sem retorno, muitas vezes sem qualquer resposta. E tudo o que digo é o que penso e sinto, sempre! Nunca o disse só para te confortar ou aconchegar a auto-estima, como uma obrigação. E muitas vezes sinto que quando me dizes a mim é só essa a razão. Se não for, é porque estás a falhar em demonstrar. Estou cansada de ser tua mãe, de te ter em casa como uma criança a quem é preciso dar orientações do que se deve e não deve fazer, a quem é preciso lembrar das obrigações, a quem tem de se ensinar, vezes e vezes sem conta, para não estragar isto e aquilo, para arrumar o que se desarruma, para terminar o que se começa. A quem é preciso dizer para lavar os dentes, para apagar a luz, para arrumar os brinquedos. Tantas vezes já te disse que preciso dum homem adulto a meu lado. Adoro os nossos momentos de infantilidade conjunta, mas é insustentável viver com uma criança a tempo inteiro, se esta criança de 40 anos for a pessoa com quem queres envelhecer. E envelhecer em conjunto, ter uma vida em conjunto, significa partilhar o que é bom, o que é mau, o que é chato, doloroso ou precioso. É dar espaço e estar sempre presente, é ser um porto seguro mas também força motriz. Eu quero poder partilhar responsabilidades contigo, rir contigo, estrafegar-te de amor até magoar, correr mundo contigo, se calhar até criar uma família contigo. E também lavar a loiça enquanto apanhas a roupa e levar-te ao médico quando precisas. Mas espero o mesmo de ti. Espero que estejas disponível para me dares massagens quando me dói mais as costas, que me dês um beijo só porque sim, que limpes o chão sem ser preciso pedir por favor. Porque não é um favor. A casa também é tua, é onde dormes e tomas duche, é onde a comida aparece feita e a roupa passada. É onde está uma pessoa que te escolheu, a TI, e a mais ninguém, para lá viver, para sempre, com tudo incluído e quando já tinha desistido de acreditar que isso sequer fosse possível. Quero que me dês balanço para os meus vôos e que nunca me prendas os pés. Quero que queiras mais para ti porque mais para ti é mais por nós. Porque eu sei que juntos podemos tudo. Mas acho que tu ainda pensas que é demais. Que mereces menos, ou que eu não te mereço, nunca sei. Porque não me dizes. Partilhas pouco de ti, ainda não percebeste que assumo tão de frente os prémios como as falhas. Conheces todos os meus segredos, não escondo nada de ti. Sabes a que cheiro pela manhã, conheces o meu bom feitio nos seus extremos, e que sons me tiram do sério. Quero a minha parte, aquilo a que tenho direito. Porque também tenho direitos, não só obrigações inerentes, porque o amor e as relações não devem ser só dar nem sofrer e calar. Já tive disso e já decidi que isso não serve para mim. Se queremos coisas diferentes, se não tens disponibilidade emocional para mais, se tens medo, lamento, mas então não quero. Quero tudo, ou então nada. "De nenhum fruto queiras só metade."
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a miúda que anda há décadas com armas de fogo nas mãos e só as usa para disparar contra os próprios pés e para as nuvens. Repetidamente. E o vosso maior orgulho, qual é?
Hoje vou citar. E vou citar aos bochechos, que muito há para dizer. E quem vou citar? O Edson Athayde, no ionline. Ora vamos:
Fazer amigos, manter amigos, perder amigos. A vida, para mim, é isso. Tudo mais é complemento, é consequência, é redundância.
Não sou tão extremista. Há mais na vida para além dos amigos e, pese embora deva ser uma vida incomparavelmente triste e pobre, há quem não tenha amigo algum (acreditem, há) e tenha uma vida, lhe confira significado e talvez até tenha interesse. E há que separar o trigo do joio. Hesito em chamar amigo a pessoas que conheço, até com profundidade, se não as gosto. Outras há que, conhecendo em menor extensão, confio sem second thoughts, de natural que é. Daquelas coisas que não se explicam com muita lógica, mas que se sentem sem dúvida.
Fazer amigos: o mais difícil, com o passar do tempo. Quando miúdos, só são necessários uns interesses em comum. Entre os rapazes a coisa é ainda mais simples: basta ser adepto da mesma equipa, gostar do mesmo sabor de gelado, demonstrar alguma habilidade no Subbuteo, ter uma certa fixação pelos seios da professora Sónia. E assim começa uma longa amizade. Depois de cruzarmos o cabo da boa esperança dos 30 anos aparecem as complicações. Mais ninguém que nos aparece é assim tão confiável. Fazemos colegas de trabalho, companheiros de futebol, cúmplices de bares, mas amigos novos é coisa que vai rareando.
Na infância, os conceitos de lealdade e confiança são menos permeáveis às nuances das realidades que a vida adulta impõe. E talvez por isso mesmo, quer-me parecer que sempre coloquei as fasquias demasiado elevadas, e cada vez mais com o passar dos anos. No entanto, a vida te-me reservado boas surpresas (ao menos) neste campo. Não guardo amigos de infância. Alguns da adolescência, mas devo dizer que as pessoas excepcionais que fazem ou fizeram parte do meu círculo de Amigos, encontrei-as em grande parte em idade adulta. A comunicação vai muito para além do corriqueiro e toca sensibilidades que não estão expostas aos 15 anos. A frontalidade, o despretenciosismo de se dizer o que se pensa sem querer impressionar ninguém, ajuda imenso a conhecer as pessoas com quem se interage. E por vezes bastam meia dúzia de frases, uma empatia inicial que abre caminho a gargalhadas ou a reflexões. Falo por mim, que tomo consciência de que tenho feito novos amigos, de quem gosto genuinamente e a quem abro a alma sem reservas. As duas moças do curso de escrita, de quem sinto falta das cumplicidades. O pescador gótico com um sentido de humildade que me tocou. A ex-chefe a quem arregalava os olhos e não poupava críticas, de onde nasceram laços profundos. A velha colega de curso que de repente se revelou em palavras à distância. A amiga de amigos com quem estive em duas ocasiões apenas e me lê mais pensamentos do que os que partilho. O dentista que passei a tratar por tu por entre estórias de vida. A colega de trabalho com quem podia conversar dias a fio. É preciso não ter medo. Medo de ser quem somos, de assumir os nossos sonhos e as nossas falhas. Dar um pouco de nós aos outros não nos torna frágeis nem susceptíveis. Torna-nos mais ricos. Dar um sorriso que seja, não custa nada e pode alegrar o dia de alguém. Mais, pode convidar a entrar na nossa vida pessoas que, só por existirem, fazem da vida um sítio melhor.
Manter amigos: dependendo de com quem é pode ser uma missão simples. A amizade permite-nos um sem-número de erros, vacilos, pequenas maldades, desconsiderações. A amizade pressupõe uma quantidade hiperbólica de perdões. Claro, há sempre um limite. Mas não há amigos perfeitos, porque não há pessoas perfeitas. E o que seria da amizade sem a misericórdia, sem a compreensão? Aos amigos, tudo. Aos inimigos, o justo.
Não há amigos perfeitos, nem pessoas perfeitas. Dos grandes amigos espera-se demasiado, porque são aqueles que admiramos, que prezamos. As pequenas falhas magoam demais e podem tornar-se desilusões. As mesmas que causamos nos outros. Não há regra nem receita para o sucesso. Bom senso e compreensão costumam ajudar. Ver o lado do outro, walk a mile in their shoes. Perguntar "porque fizeste isto?" antes de julgar. E perceber que se a amizade não vale o suficiente para engolir o orgulho e perdoar, então não é amizade, é conveniência.
Perder amigos: costuma ser uma tristeza pior que a morte. Quando o que morre é a amizade e não o amigo, o fantasma do que antes era belo assombra e assusta. Quer pior coisa que um ex-amigo? O ressentimento é o cancro das emoções.
Não o diria melhor. Tristeza pior que a morte. Sei bem o que é perder um amigo, a pouca importância que têm as culpas e as razões perto do vazio que se instala no peito. Coloca-se tudo em causa: a importância que se teve para o outro, as palavras ditas, a confiança quebrada. Permanece, sobretudo, o sentimento de injustiça. Como pode alguém a quem quero tão bem descartar-me como se lhe fosse incómodo ou nefasto? A amizade valia tão pouco que foi trocada por isto?
Fazer amigos, manter amigos, perder amigos. Repito, repito, repito. Penso e repenso nisso ao reparar nas mais de 6500 almas que me adicionaram como “friend” no Facebook. O que devo fazer para não decepcionar essas pessoas que não conheço? Como posso tornar sustentáveis milhares de relações virtuais sem (com isso e para isso) descuidar das pessoas de carne e osso que teimam em ter-me como amigo? Há muitas respostas para essas perguntas. Mas não gosto de estabelecer regras nem professar ciências. Só queria alertar para que vale a pena pensar no assunto. Conheço gente que, desde que começou a facebookear, passou a tratar com descaso as pessoas reais das suas vidas. Eu mesmo apanho-me de vez em quando enciumado com amigos que postam nas suas páginas coisas que, teoricamente, só os mais íntimos deveriam saber. Se calhar é coisa minha (minha idade emocional não vai muito além dos cinco anos). Mas recomendo atenção. Amigos, amigos, Facebook a parte. Ou como diria o meu Tio Olavo: “Amigo é alguém que, ao nos conhecer de verdade, não sai a correr.”
Amigo é quem me conhece e, ainda assim, gosta de mim. Digo eu, que nunca privei com o Sr. Olavo. Não vejo porque separar os amigos "reais" do facebook. O facebook (e quem diz facebook diz qualquer rede social) pode (e deve) conter apenas laços reais, cujo suporte se prolonga no mundo virtual. Longe das advertências do Edson, eu sou apologista incondicional das vantagens emocionais do facebook. Cuide-se da privacidade com bom senso (sempre) - e há ferramentas para isso, e as amizades não têm porque não sair fortalecidas. Claro que não é caso para trocar o convívio pessoal com o virtual. Mas, é inevitável, uma boa parte dos amigos e conhecidos não estão sempre por perto. Há uma boa porção de pessoas que as circunstâncias da vida afastam do dia-a-dia e que nas redes sociais não têm de estar afastadas. Convenhamos, quem vai telefonar ou enviar um e-mail àquele velho colega que está há dois anos emigrado e com quem não se manteve contacto regular só para dizer "olá" ou "ontem li uma notícia que me fez pensar em ti"? E porquê criar anticorpos à tecnologia, se esta, bem utilizada, não só não se substitui aos laços 'reais' como pode mesmo estreitar laços em que, de outra forma, não se investiria o suficiente?...
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é muito subjectivo. Protestei tanto que não fazia sentido, nunca fez, e cada vez faz menos sentido. Mas já não importa porque fazer sentido nunca foi importante.
Depois de tanto que se passou sem se ter passado nada, voltei a reler as coisas tão bonitas que me dizias há tão pouco tempo. Parece que foi há décadas e permito a confissão das saudades de me sentir como me fazias sentir. Faz parte do exercício de exorcismo, passar por cima de cada ponto, remoer para escaqueirar e varrer porta fora. Medir a distância do que prometia ser ao que nunca foi - anos-luz! Em menos de um fôlego passei do tudo, dos planos e promessas, à transparência indiferente de coisa nenhuma; ao silêncio - obrigada pelo silêncio.
Prefiro mil vezes saber que sou nada à interrogação, às meias palavras, reticências e desculpas vazias. Não faz sentido? A indefinição é apenas mais uma forma de indiferença, de unilateralidade; é apenas mais uma violência.
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Tenho andado a pensar em cortar contigo, fechar-te num envelope e manter-te só no pretérito, como uma recordação saudosa e amarelada que se encontra com surpresa no fundo de uma gaveta quando se faz uma arrumação. És difícil de conter num envelope; não te consigo resumir em meia dúzia de fotografias ou nas milhentas cartas que já trocámos, feitas aviões de papel em vôos picados, cada um a despenhar-se desajeitadamente sobre si próprio, sem sobreviventes. Há sempre uma ponta que se solta ou uma página que ainda aparece, desenquadrada, virgem, inédita. Uma palavra quase esquecida, um novo carinho insuspeito que largas ao acaso no meio dum raciocínio distante, interrompendo o meu luto.
Sei que tenho de te arrumar em algum lado, nos confins de mim, onde não me desafies nem inquietes. Tenho mesmo, que viver com um permanente ardor no peito e um vazio num pedaço de alma, qual membro fantasma de uma coisa que nunca esteve realmente lá, não é sustentável, vai envenenar o que tenho de são e dissolver a fortaleza que me orgulho de ser.
Talvez tenha de te cortar efectivamente, com golpes fundos de navalha, com força impiedosa e toda a raiva que me tenho, para te imputar a ti a tarefa do silêncio. É ainda mais difícil, que sempre que te arranho arrasto-me pelos dois e depressa esqueço todos os planos tão racionais de abandono sem voltar costas, para te querer mais perto, proteger-te, fazer do meu corpo tua carapaça, tomar por ti todas as dores e curar essas feridas abertas em que deitas sal. A tua presença é-me difícil, assim como é, vagarosa e nublada, intensa e fantasmagórica, em fuga constante; já a tua ausência é-me insuportável. Fazes-me falta, iluminas uma parte de mim de que já me ia esquecendo de ser. Escureces inseguranças que não têm lugar nos teus olhos e o que vês de mim é muito mais o que sou eu sem casca nem carapaça. É, tudo isto, um perfeito desperdício de amor e de forças. Afastar-me para não sofrer, e afinal sofrer com isso muito mais. A equação é cruel. As perguntas já se habituaram a seguir sem respostas. Também já me ocorreu cortar com tudo o resto, com todos os outros que fazem desta provação uma tortuosa espiral de ferros em brasa. Só que o meu sentido de justiça é um estúpido que fala mais alto, não posso penalizar quem nos quer tão bem só por não (te) ter. Não havendo mais opções para lidar com o martírio, o corte é este, o meu, por cima de cicatrizes antigas, para se notar menos a quem olha em horror. Sem lágrimas. Com lâminas tristes e rombas que fraquejam quando chegam ao osso, mas terão de continuar mais fundo, que para cortar a tua presença em mim tem de ser renovado o tutano, ou então nascer de novo. A falta que me fazes ninguém sabe e se me perguntares nego com toda a força bruta que desconheces. Que tristeza esta que alimenta demónios chifrudos, fatia a fatia, engordando vazios cheios de ti. Que ausência é esta, amigo, que emaranha os novelos que te apertam em mim?
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"Isso acabou." "Não haverá próxima vez."
Ela não lhe via os olhos mas sabia que ele provavelmente acreditaria nas suas próprias palavras e sabia de cor que os olhos dele vagueavam cabisbaixos, à procura da certeza que ela tinha na voz, ou de uma confirmação divina de que bastavam as suas melhores intenções para lhe evitarem os desvios.
Ele não sabia que mentia porque não é preciso mentir quando todo o caminho ainda por percorrer existe num plano passado a limpo em cadernos quadriculados, e está fotografado de antemão em película por revelar. Ela tinha o condão de ler as pessoas e de saber, com uma certeza inexplicável que nunca se enganara, tudo o que precisava de saber, qual mística Blimunda. Ainda assim, insistia em dar o benefício da dúvida, uma e outra e mais outra vez. Recolhia os cacos do seu ego estilhaçado e lambia as próprias feridas, quase pedindo desculpa por incomodar com as marcas de sangue nos degraus.
Que teimosia era aquela que a fazia avançar sem hesitações quando sabia, por ter visto por dentro, que cada novo tropeção lhe esfolaria novamente os joelhos já em osso?
Que perdão concedido à partida era aquele que, por amor ou condescendência, garantia a quem (sem querer?) a agredia, repetidamente?
"Vive as coisas com naturalidade" - aconselhava ele antes de mudar de assunto, com ingenuidade forçada, como que a dar uma odiosa palmadinha nas costas, e talvez seguro de que uma próxima agressão não seria ainda a última, não seria ainda o limite, não seria ainda suficiente para ela sair sem bater com a porta, de mansinho, a meio de um Domingo distraído e solarengo em que nenhuma promessa se havia cumprido.
Enquanto descia as escadas devagarinho, a esconder os olhos do Sol que a abraçava e com toda a bagagem enrolada debaixo do braço, ela pensava nele e em quão desorientado ele se encontraria nos meses todos que ia demorar a notar que ela não regressaria, tinha saído para sempre, sem dar explicações, empurrada com toda a violência por uma leve palmadinha nas costas.
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Às vezes duvido que seja uma pessoa inteira. Sou antes duas metades, em permanente tensão, no fio da navalha, em oscilação compassada. Sou a céptica, ultra-racional, organizada, maníaca da limpeza e da arrumação, com gostos minimalistas. Sou também a criativa, espontânea, artística, que tira da cartola profundezas cósmicas e dá pedradas em todos os charcos. Sou da ciência e da arte, metade racionalidade e objectividade, a outra metade sonho e poesia. Quando me entorno para um dos lados submerjo com despudor, quase com desrespeito pelo outro lado. Depois tento equilibrar e lá me sumo para o lado oposto. A vertigem da queda é onde estou. Sou a personificação de todas as contradições, acto contínuo entre extremos opostos. Sou a mais meiga e doce ou a mais gélida e implacável das criaturas. Sou a indecisão em pessoa e a mais obstinada, que nunca volta atrás nas decisões que toma. Sou a calma e ponderada que analisa exaustivamente todos os prós e cada um dos contras, mas tem razões impulsivas que não sabe controlar. Sou a analítica, que tem sempre razão porque valida todos os dados e confirma todas as informações, e aquela a quem o instinto faz o diagnóstico completo só com base na intuição e dá ainda mais e mais fiável informação. Toda eu sou pela luz e vida, pelos inícios e fazeduras, desprezo a morte e o remorso, o arrependimento e o que já passou. Mas também sou fã da escuridão, da ausência, da penumbra silenciosa. Sou a lógica e o bom senso, a calma e a temperança, até a chama se atear e me fazer explodir em cacos, festim de paixões em brasa. Sei exactamente quem sou. Não sou é fácil de definir.
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Hoje deu-me uma enorme vontade de chorar, não me perguntes porquê. Alguma coisa estará a desmoronar, talvez. Mudei a rota. Enchi o peito de valentia destilada e marchei até ao nosso banco. Chamei nomes feios a quem lá estava, só porque sim, ou então porque queria mesmo era ver a memória de nós dois, em deslumbramento um com o outro, a deixar fugir beijos tão honestos, de mãos dadas e conversa líquida, eu colada aos teus olhos e à tua barba, tu agarrado a uma fantasia em que eu era protagonista. Tenho vontade de chorar. Fomos poesia. Nunca mais nos vou ver assim, tão puros e novos a estrear, com aquele brilho nos olhos de quem acabou de ganhar o euromilhões mas em melhor, com o tempo a parar à nossa volta, como nos filmes, com a banda sonora a adormecer-nos os sonhos. Como sei que sonhaste, porque eu sonhei também, tantas vezes. Tudo mudou. Os teus olhos não se deixam ver por mim e eu não choro, mesmo sem saber o que me quer este vazio pegajoso que persiste.
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O espanto, em vez de ser apaziguado com a falta de cinética, é depurado. A peneira da memória não é traiçoeira, é sim essencial para remover as insignificâncias que poluem a clareza de raciocínio. Os momentos chave de qualquer história de relevo pessoal não ficam entaramelados na névoa amarga, vão-se cimentando na matéria prima do que somos.
[Mudar de rota talvez ajudasse, mas não preciso do Largo do Regedor para pensar diariamente naquele fim de tarde, no abraço, nos beijos de que fugi, nas festas que me fizeste nos braços, na suavidade insuperável da tua voz, dos teus lábios, cuja memória perdura e ecoa em ondas, de prazer e de saudade, esses lábios, beijos de nuvens.]
[Mudar de vida talvez me mudasse, mas o coração lá ficou no túnel desde aquele dia, pendurado num segredo anunciado, as tuas mãos que pertencem às minhas mãos, a poesia de que és feito entranhada em mim, essa força incorruptível que desprezei com punhais apontados a mim.]
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Aque nesta margem esquerda, a margem certa, a vida ocorre num universo paralelo em que o impossível desenrola-se perante os olhos muito abertos e queixos esquecidos. O insólito acontece a par e passo com o ritmo corriqueiro dos dias. Nada causa espanto, de tão espantoso que tudo é. Penso-me tantas vezes presa nas linhas de uma ficção, um qualquer conto da Alice Munro, só percebo que é real porque a paisagem é impossível de confundir. As coincidências são demasiado óbvias para que a realidade simplesmente exista porque sim. Os insólitos, o inexplicável, o sobrenatural que me pisca o olho a todo o instante e que teimo em renegar, como se as entrelinhas deste enredo tivessem saído da minha mente no seu estado mais perverso. É possível que seja só loucura, que se tenham esquecido de me sintonizar bem as antenas lá na fábrica onde montam as peças das pessoas. Somos todos demasiado inverosímeis, não achas?
Quando era criança (nunca fui, nasci já velhíssima) e estava muito mais próxima da verdade de todas as coisas e a cabeça fervilhava com teorias fantásticas e absurdas, tinha a certeza que vivia num mundo falso, com cenários montados para me estudarem os movimentos e lerem os pensamentos. Nada fazia sentido. Porque motivo estava eu presa no corpo de uma menina pequena, aquelas pessoas afáveis mas tão diferentes de mim a fazerem-se passar por família, vizinhos, amigos. Nunca me enganaram!
Nesta margem as coisas desaprendem-se com o tempo, o curso das águas e as rotações do planeta. Surreal é virar-te as costas quando te trago dentro de mim.
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Deve chamar-se saudade, esta necessidade tão grande de um abraço teu, dos teus beijos tão cheios, em que não cabia mais nada além de uma história por contar, a começar e a terminar ali, tão fugaz. Beijos tão decisivos que nunca mais me permitiram paz. Os teus braços enrolados ao que há de cristalino e puro, como bóias, como âncoras, que me prendem e me mantêm à tona, que me desgraçam e me elevam.
Prometo-me não repetir, prometo-me a cura, vou vedando frestas. Volto sempre ao teu abraço, aos teus beijos tão cheios. Gosto de ti, gosto muito, gosto tanto de ti.
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Foi um ano bom. Muito bom. Fiz Amigos. Dos grandes. Estive com os Amigos de há 20 anos, que são tesouros. Aprendi. Viajei um punhado de vezes. Fiz uma série de coisas que tinha dito que nunca faria, lições de humildade, descoberta e auto-conhecimento. Apaixonei-me várias vezes pelas mesmas pessoas (é doença ou casmurrice). Comecei projectos pessoais gigantes. A minha saúde melhorou significativamente e a auto-estima também. Aprendi a gostar um bocadinho mais do meu corpo (é muito difícil e há dias de extremos, mas estou no bom caminho). Senti-me desejada, amada e valiosa. Equacionei mudar radicalmente de vida, em vários aspectos (é uma reflexão em curso e tendencialmente irreversível). Continuo a ter presentes todos os que me importam. Sindicalizei-me. Fiz nódoas negras, sobretudo sentimentais. Regressei ao blogue e voltei a escrever mais com o coração do que com o cérebro. Escrevi cartas em que me pus completamente a nu - e só perdi com isso. Sonhei alto e cheguei a achar que era tudo realmente possível. Arrependi-me de um instante em que não fiz o que queria ter feito. Continuo a ser a pessoa mais destemida que conheço. Consegui não bater em ninguém. Fartei-me de rir. Chorei menos do que me apetecia. Continuo a sentir-me muito mais nova do que diz o cartão de cidadão, quase adolescente. Continuo sem rumo e errática e sei que é esse mesmo o meu caminho.
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é não conseguir evitar perder o respeito por quem me mente. A mentira ofende-me, quaisquer que sejam os motivos que a conduziram. Pior ainda é quem não me conhece bem o suficiente achar que pode manter a mentira depois de eu a descobrir. E eu descubro sempre porque sou um raio de um polígrafo humano...
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Espantados eternamente, a olhar as estrelas e a planear futuros, felizes no topo de uma qualquer ruína e sem prestar contas à civilização. Bandeiras ao alto, corações à solta, livres.