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Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

origem

Nunca conheci um verdadeiro viajante (não confundir com o turista ocasional ou profissional) que não gostasse de ler. E ler, sobretudo, literatura.

 

 

Não se trata de um acaso. O verdadeiro viajante, o que viaja por paixão, o que viaja porque TEM de viajar para se sentir completo, tem esta compulsão de IR, sempre que pode, aonde não foi ainda, de se demorar mais em cada rua, absorver todos os cheiros e cores do céu, cada imagem com uma miríade de luminosidades e ângulos. E os livros permitem isso, uma experiência única, íntima, pessoal e intransmissível a cada um dos que viajam nas suas páginas. Fugas, pensarão alguns, os que desconhecem que, no tempo que se passa longe, o encontro com os que nos moram debaixo da pele estreita-se tanto. Começando pela imagem no espelho.
Há viagens deliciosas que só os livros permitem, porque os livros permitem tudo, em qualquer tempo, lugar ou universo. E permitem fazer o mesmo trajecto vezes sem conta, sem que alguma vez seja exactamente igual ao que já foi. E permitem, como as viagens, que a variante maior seja o mundo interior do viajante, e quantas mais páginas de quilometragem tiver, melhor será a percepção que tem da sua própria diferença, logo, identidade.
A bagagem, quanto mais se viaja, mais densa, mas leve, se torna; sabe-se ao que se vai cada vez com mais precisão, deixam de importar os destinos, como as capas dos livros, e cada partida à aventura sabe ao que aos outros sabe o conforto do regresso a casa.

Numa manhã limpa de Janeiro, Tomé nasceu. Não chorou, sequer por ceifar, na mesma hora, a vida de Flor, sua mãe. Negro como a noite, quebradiço de tão fino, olhos pretos clarividentes, onustos de vida. Por nove anos não se lhe conheceu o choro. Garoto frágil, sempre descalço, dois palitos por pernas. Num desmoronamento perdeu o dedo menor do pé esquerdo. Mordeu com força os lábios carnudos e rosados, susteve a respiração o quanto pode, mas sucumbiu. Rolaram lágrimas espessas e pesadas. Foi a primeira vez que saboreou o sal metálico do choro e a única em que foi uma dor física que o fez chorar. Nos sessenta e quatro anos seguintes chorou mais três vezes, contadas como aparições da Senhora do Rosário. Dizem os antigos da aldeia, sem saber, que é promessa; que é por penitência que rapa barba e cabelo de cada vez que chora. Um pouco menos raras foram as ocasiões em que quebrou o silêncio; mas Tomé podia ser feito de palavras, de tanto que diz sem falar. Diz com os olhos, com o ritmo da respiração, com os sorrisos com que brinda os de quem gosta, com o embalo dos ossos secos sob a roupa sempre muito branca. Hoje, Tomé falou pela última vez. Tem a pele baça das rugas e das décadas, a dentição de marfim já com falhas, duas voltas no carrapito grisalho e pés, como sempre, descalços, mas o olhar é fresco, por estrear, ainda com tanto por dizer.

Regra geral. Tal como não repito viagens, regra geral.

 

Apoquenta-me constantemente a consciência da finitude, da perenidade, do tempo que só escoa num sentido. Preocupa-me não conseguir chegar a tudo quanto sonho (quem manda sonhar demais?), não ter tempo para concretizar. Arrelia-me pensar que estou a repetir um caminho conhecido, um parágrafo já saboreado. A segurança das rotinas faz-me espécie e por isso evito as evitáveis. Ir jantar aos mesmos restaurantes, ouvir playlists na mesma ordem, entrar sempre pela mesma porta, cria-me uma espécie de desassossego de estar a perder alguma coisa de novo que se passe do outro lado.

 

Igual com os livros, igual com os sítios. Reler o mesmo romance é tirar o lugar (ou o tempo, esse tirano) a outro que ainda não li. Voltar ao mesmo sítio, quando são tantos mais os que ficam por visitar.

 

Claro que há excepções que confirmam a regra. Sítios que foram visitados com pressa e ficou a sensação de que a experiência não ficou completa, ou que de outra perspectiva as sensações seriam tão distintas. A "alma de cientista" (não fui eu que disse) que me habita obriga-me a tirar a limpo as dúvidas, tenho de saber, e lá vou eu. A companhia (ou ausência dela) transforma uma viagem, isso está comprovadíssimo. Tal como entre ir em "excursão" (blhargh, ptui) é o oposto de ir numa aventura independente.

 

Os livros, por sua vez, assumem significados distintos consoante o ponto da vida em que nos encontramos, também não tenho dúvidas. Reler os livros que na adolescência nos marcaram e nos 'mudaram o mundo', em que nos sentimos espelhados ou chocados ou deslumbrados, ou que nos acompanharam em momentos particulares, em fases da vida mais ou menos viradas "para dentro", é uma experiência que não se repete, por forçosamente não se poder repetir.

 

 

 

E depois há as obras-primas. Há os autores geniais. Aqueles que, quanto mais lemos outros, quanto mais aprendemos, quanto mais sabemos apreciar, mais e mais gostamos, mais e mais admiramos. Aquelas palavras em que em cada esquina de página descobrimos uma nova verdade de bolso, uma reflexão mais certeira, um presságio mais afinado. Aqueles que nunca se esgotam. A literatura que faz parte do nosso íntimo e ao nosso ritmo, que se cola às sinapses e nela se canoniza. Os sublimes.

 

 

 

 

 

De onde se conclui que, para o Saramago, meia dúzia de Nobel não teriam sido demais. E que o Zé Luís caminha a passos largos para este destino.

 

 

 

 

 

 o melhor de todos os escritores, de todo o sempre, para mim. Porquê?

 

 

 

Porque escreve com a intimidade de quem conta uma estória no sofá, enquanto beberica um chá morno, porque se demora em particularidades deliciosas, porque constata o óbvio que de tão óbvio e comum se teria tornado inominável para outros escritores. Porque cada sílaba tem uma sensibilidade amável, quase condescendente, de quem estudou a humanidade por dentro e foi ao âmago das questões. Porque tem um sentido de humor absolutamente extraordinário, mordaz, surpreendente. Porque esgrime a razão com um sentido de justiça inteligentíssimo e porque tem a imaginação duma criança de oito anos. Porque consegue plantar lágrimas em frases insuspeitas, tão cheias do que é mais puro.

Bendito velhote carrancudo, fazes tanta falta nesta dimensão dos tolos...

O amor não resolve nada. O amor é uma coisa pessoal, e alimenta-se do respeito mútuo. Mas isto não transcende o colectivo. Levamos já dois mil anos dizendo-nos isso de amar-nos uns aos outros. E serviu de alguma coisa? Poderíamos mudá-lo por respeitar-nos uns aos outros, para ver se assim tem mais eficácia. Porque o amor não é suficiente.

 

“Saramago, el pesimista utópico”, Turia, Teruel, nº 57, 2001

Nos "outros cadernos de Saramago".

Todos os dias têm a sua história, um só minuto levaria anos a contar, o mínimo gesto, o descasque miudinho duma palavra, duma sílaba, dum som, para já não falar dos pensamentos, que é coisa de muito estofo, pensar no que se pensa, ou pensou, ou está pensando, e que pensamento é esse que pensa o outro pensamento, não acabaríamos nunca mais.

 

José Saramago In Levantado do Chão, Ed. Caminho, 14.ª ed., p. 59