Como pessoa obcecada pela verdade de todas as coisas, que faz corresponder à verdade a fidelidade a ideais, valores e talvez até a algum moralismo, é muito raro mentir. Também minto, demasiadas vezes para sentir que cumpra os requisitos mínimos da coerência, mas não o sei fazer, e prefiro sempre dizer a verdade absoluta ou, no máximo, evitar magoar ou prejudicar alguém calando algumas verdades. Defensora da verdade nua e crua, digo muitas verdades que não são levadas a sério. Sou conivente e até causadora de algumas mentiras, que não desfaço por não serem minhas ou o meu lugar. Penso nisto tantas vezes, debato comigo mesma o potencial destruidor da verdade contra o potencial destruidor da mentira, estudo pessoalmente os indícios de cada pessoa quando mente e, sobretudo ultimamente, tenho-me dedicado a observar as reacções a verdades incomuns. Chega a ser divertido que tantas pessoas tenham dificuldade em acreditar nas verdades que lhes são atiradas a sangue frio. As verdades inesperadas, que chocam, aquelas que são frequentemente maquilhadas com mentiras, são tantas vezes recebidas com gargalhadas nervosas, inseguras, incrédulas, como piadas e como falsidades. Quando se reforça e assegura que não há nada de falso nas inéditas afirmações, assume o lugar o espanto, o receio (o tal do diferente), eventualmente a consternação. E fica a verdade como um incómodo que é preciso explicar, justificar a fundo. Fosse uma qualquer balela e seria aceitável com tranquilidade.
O desconforto da mentira fica só com quem mente para não ofender os restantes, que se sentem ofendidos com a dívida de verdades. Será a mentira um gesto de sacrifício ou abnegação? Ou talvez seja o comodismo que faz perpetuar as mentiras e a aceitação social das mesmas. Talvez seja demasiado difícil, exigente, cansativo, penoso ser sempre inteiramente fiel à verdade absoluta. Mas para quem? Para quem fala verdade ou para quem prefere viver num mundo de faz-de-conta a lidar com verdades incómodas, que magoam, que desarranjam os lugares das coisas? Não fosse o quotidiano feito de lugares de sombras e enganos, quantos mentirosos se renderiam? Quantas famílias desmoronariam e quantas seriam erguidas mais alto e mais fortes? Qual é o custo da mentira e, mais importante, qual é o custo da verdade?
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Tive uma chefe, há uns 15 anos, que me dizia isto sempre que eu contestava alguma coisa no local de trabalho ou de forma pública contra as políticas da empresa que nos pagava o salário. Não foram poucas vezes e nunca conseguiu demover-me, naturalmente.
Não posso discordar da frase, contudo. Só discordo no fundamental da questão. É que não é o patrão que tem a bondade de me alimentar com os seus míseros tostões, é a minha força de trabalho que alimenta a riqueza do patrão. A subversão do paradigma alimenta o medo e o poder dos mais fortes, até que os trabalhadores percebam que esse poder, podia, e devia, estar nas mãos de quem produz. Até que se sintam, finalmente, mordidos até ao osso, e percebam que das mãos se fazem punhos erguidos e dos punhos se fazem vitórias.
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Uma das insuspeitas dificuldades na vida de um introvertido é ter de lidar com pessoas extremamente extrovertidas, comunicativas, que metem conversa por tudo e por nada. A cada uma destas interacções, o introvertido vai ficando cada vez mais cansado, sem energia, esgotado. Sabem aquele pessoal que trabalha no atendimento ao público e consegue estar sempre a sorrir e gerar empatia em três tempos? São o máximo, não é? Não. Para mim não. Aliás, prefiro mil vezes, por exemplo, ir àquelas lojas enormes em que se precisares de ajuda em alguma coisa tens de andar à procura de um funcionário do que ir a sítios onde, assim que entras, alguém se dirige a ti e pergunta se pode ajudar. Não, não quero ajuda, quero estar aqui a olhar e a dialogar comigo mesma sem ser perturbada nem observada! Eu sou a pessoa mais introvertida do Universo e confesso a grande dificuldade que tenho diariamente. Tenho uma chefe que podia ser apenas o cúmulo da extroversão, mas é muito mais do que o que posso narrar aqui e ainda acresce que tem uma fobia ao silêncio. Não consegue ficar calada, em circunstância alguma, o silêncio é-lhe verdadeiramente desconfortável, interpreta como outra coisa qualquer (desânimo, fatiga, mau feitio, sei lá) e, portanto, o normal é, se mais ninguém fala, tratar de preencher esse "vazio" (que para mim é essencial é sabe tão bem). Quando tenho de passar um dia inteiro só com a chefe, é certo é sabido, chego ao final do dia com a cabeça feita em água. É óbvio que sei que não é por mal, não é defeito, é feitio, mas a sério que ultrapassa todos os limites possíveis. Chega mesmo ao cúmulo de, não tendo mais assunto para falar, ir revelando estórias pessoais e íntimas, nomeadamente que dizem respeito apenas a outras pessoas! Claro que, assim, a vontade de dizer o que quer que seja é cada vez menor... Preciso de privacidade, sossego, recato e em calhando até isolamento. Não tem mal nenhum, fico em óptima companhia.
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Assunto polémico e propenso a clivagens, por norma a opinião acerca de touradas não reconhece posições intermédias. Ética e humanamente, ou existe a constatação óbvia de que um "espectáculo" que se centra na tortura animal não pode ser outra coisa que não uma barbárie e a única coisa de espectacular que pode ter é a exibição de toda a ignorância, vaidade e falta de compaixão dos humanos que participam e colaboram nesta exibição abjecta pelos restantes seres vivos ou se faz activamente a apologia desta mesma ignorância - porque a passividade em situações de agressão só fortalece o agressor -, apoiando, assistindo ao vivo ou na televisão, lucrando com ela ou permitindo que continue a existir.
Os supostos argumentos que se filiam a favor da perpetuação desta prática são, todos eles, coxos e alheios a qualquer vestígio de validade científica ou cultural. É por isso mesmo interessante reflectir no aproveitamento político (ou ausência dele) do tema. Se à direita não espanta que os valores obtusos de que não se espera algum tipo de racionalidade se alinhem com o tradicionalismo, com os interesses económicos dos latifundiários, com a perpetuação do culto classista das elites e do acesso parcimonioso a certos eventos, à esquerda pedem-se responsabilidades sobre a colagem ao argumento da "tradição"*, que não tem outra finalidade que não a tentativa desesperada de manter eleitorado nas regiões em que a tourada tem forte implantação. O financiamento público desta "actividade cultural" é ultrajante e inaceitável e o assunto é fracturante o suficiente para determinar a perda ou o ganho de votos, quer em eleições legislativas quer autárquicas. A "esquerda" que tenta salvar o capitalismo não faz grande alarido porque sabe que os atentos recordarão a sua actuação no único município que geriram. A esquerda mais séria já não é levada a sério há bastante tempo quando o tema é a tourada. Atravancando os discursos até dos seus mais lúcidos representantes na defesa do indefensável, tentando segurar os cada vez mais escassos votos de barranquenhos e ribatejanos, ainda não percebeu que se neste tema vocalizar a razão e colocar a abolição das touradas nos seus programas (ou pelo menos, para não ter de se justificar uma clivagem tão brusca com a assumpção de um erro antigo, da abolição do financiamento público das touradas ou devoção de parte dos orçamento municipais para obras de conservação de praças de touros, que seria o mínimo aceitável), a fidelidade do seu eleitorado não só não abalará, como o balanço entre os votos que perdem e os que deixam de perder (como o desta que vos escreve) poderá ser positivo. [Esta é uma crítica antiga que faço ao PCP, uma das que motivou a minha demora na filiação, das que motivou o meu voto avesso ao partido muitas vezes e uma das que permaneceram o suficiente para engrossar os motivos de afastamento.] Claro que a abordagem tão claramente eleitoralista de uma esquerda que, se cumprisse com o seu papel, seria revolucionária, interventiva e resistente, independentemente dos assentos parlamentares, já é por si só motivo de desgaste e falta de confiança (não quero falar de vergonha para os ideais marxistas neste texto, mas a bem da clareza também não posso deixar de parte este apontamento). De referir ainda que, onde o PCP se encolhe e tenta passar pelos intervalos da chuva, os Verdes não se impõem como uma força política distinta que não são.
Não é preciso "pensar muito, muito, muito" para se sentir empatia com animais, mamíferos como nós, que sentem dor como nós, que são mutilados e espancados entes de entrarem numa arena para, ao som da ignorância e crueldade dos bichos cientes que deveríamos ser nós, serem espetados com ferros aguçados no lombo, desorientados, sangrados, quebrados, atacados. Contudo, não me peçam empatia para com os toureiros e forcados que ficam feridos, que ela não existe. Pelo contrário, assumo a vertente violenta presente em mim e confesso que sinto, sempre que ocorrem feridos na arena, uma pequena satisfação nessa espécie de vingança simbólica de todos os touros trucidados às mãos daqueles bandalhos. É que estes foram de livre vontade para a arena, foram fazer parte do que apelidam de espectáculo, foram representar o papel para que são pagos, de heróis cobertos de brilhantes e lantejoulas a afrontar pobres animais derrotados e indefesos. Onde os olhos de extrema direita de Assunção Cristas vêem "bailado", pessoas com um pouco mais de profundidade de raciocínio lógico (não falo sequer dos mínimos olímpicos para se ser humano) veêm desperdiçada uma excelente oportunidade política e humana de deixar o silêncio não envergonhar a espécie.
À esquerda parlamentar que defende as touradas como forma de expressão cultural e de identidade 'nacional' (termo que por si só me causa alguma urticária, como deveria causar a todos os comunistas) tenho a relembrar que outrora (ou em outros lugares) também eram ou são tradições aparentemente apreciadas por algumas fracções do povo os autos de fé, a queima de bruxas na fogueira, a queima de gatos na fogueira, o enforcamento de 'criminosos', as lutas de gladiadores, de cães e de galos, o apedrejamento de mulheres suspeitas de adultério, ou o lançamento de anões. Que hipocrisia, não?
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A política e a democracia teriam bastante mais a ganhar do que a perder com a humanização dos políticos. A maior parte dos portugueses tem o péssimo hábito de catalogar “os políticos” como de uma espécie inferior se tratasse, com desdém e com tendência a desprezar o trabalho que desenvolvem, cegamente e independentemente do trabalho concreto e das posições políticas que tomam, o que em muito contribui para o desinteresse generalizado do povo pela política e que se traduz, na prática, por níveis de abstenção chocantes e por um défice imenso na participação política e cívica. Acho eu, que percebo muito pouco de psicologia e sociologia, que perceber-se que os políticos, sejam de que “cores” forem, são pessoas como as outras (com problemas, dias bons e maus, com direito a errar, com boas ou más intenções, com doenças e com identidade própria, com convicções e com gostos pessoais) ajudaria a destrinçar o que interessa, que é a política, do resto, que é comum a todos. Faz falta ver que “os políticos” são pessoas como nós, que os deputados são funcionários públicos a quem podemos e devemos pedir que prestem contas por serviços deficitários que nos prestem, que os líderes de partidos não aparecem apenas em actos simbólicos para serem televisionados. Faz falta que os políticos façam essa aproximação das pessoas, voluntariamente e sem medo de serem afrontados, naturalmente e sem sobrançaria.
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Só quem vir estas três imagens (a primeira é a genuína que despoletou o "escândalo", as outras duas são criações que pretendem gozar com o facto, caricaturando-o) e não perceber onde está patente o racismo (só sendo imbecil, adianto eu) é que poderá defender a marca.
Que tal tirar a cabeça de dentro do orifício escuro e bafiento em que se encontra, ousar sair da posição de privilegiado e ganhar vergonha na cara?
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Não é a unanimidade que atesta o valor de alguém ou da sua obra. Não é por ter sido um ícone musical da sua geração que o Zé Pedro deixa um generalizado sentimento de perda em, arrisco dizer, toda a gente. A morte do Zé Pedro comove toda uma nação, independentemente de se gostar ou não da música dos Xutos. [Eu gosto, muito, e perdi a conta ao número de concertos dos Xutos a que assisti, em tantas ocasiões e palcos diferentes, da Festa do Avante a concertos privados, a cantar cada refrão.] A morte do Zé Pedro não precisa de artigos nos jornais a recordar os seus feitos ou a limpar as suas nódoas, porque o seu valor - sobretudo humano - não deixou margem para dúvidas em vida. O Zé Pedro ganhou-nos o respeito e admiração de cada vez que falava em público, com sinceridade e sem peneiras, como um amigalhaço de toda a gente, como um de nós, com as suas merdas, com dias maus, com bondade e alegria, com erros e com sonhos; de cada vez que falava dos seus problemas de saúde, dos vícios que deixou para trás, da música ou do amor, cada um de nós era um bocadinho Zé Pedro.
A comoção nacional com a morte do Zé Pedro não se pode fingir, não se pode contornar, não é passível de indiferença. Não há qualquer margem para polémicas e divergências. Qualquer homenagem que se lhe faça é merecida porque todos temos o Zé Pedro num cantinho do coração. Qualquer pequena manifestação de pesar pela morte do Zé Pedro tem de sobra aquilo que falta em outras, movidas por interesses, pelo politicamente correcto, por tentativas de limpeza de vidas cheias de podridão opressora e exploradora: honestidade.
Tomara que quando eu morra, me recordem assim, pelo sorriso e por nunca ter traído a minha classe em palavras ou em actos, por ser igual para todos, por igual.
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Não tenho particular afeição a monumentos nacionais (tenho afeição à natureza, à beleza e à arte, mas isso é outra conversa) e penso que já falei por aqui do inexistente sentimento nacionalista que me assiste. Além disso, tenho uma relação muito particular, pouco consensual e nada pacífica com a morte. Sou contra o culto dos mortos, as homenagens póstumas, os lutos de roupa negra feitos, as flores nas campas e toda a cultura de coitadinhização de quem deixou de existir. Faz-me afronta que os mortos passem todos a ser respeitáveis e bonzinhos na boca de tanta gente, nomeadamente os calhordas, fascistas e crápulas em geral. Isso e a exibição da dor para a sociedade ver, estabelecer empatia e consumir até ao mais ínfimo pormenor, a par do meu entendimento pessoal que os mortos não são nada nem ninguém (são só matéria orgânica, não são feitos, nem obras, nem memória), que o respeito e afecto se demonstra em vida e que os rituais ligados à morte são uma farsa, dão-me motivos de sobra para preferir não compactuar, de todo, com os folclores de funerais, cremações, cemitérios, etc.
Posto isto, a jantarada no Panteão também me causou alguma repulsa. Sem ligação alguma com um eventual respeito pelos mortos que contém, nem com o local em si. Compreendo que seja encarado como um desrespeito por pessoas com um entendimento diferente do meu, que serão a maioria, e não me faz sentido encetar discussões por via desse argumento. O que me incomoda é a mercantilização de tudo. Tudo tem um preço, até o aluguer de um espaço que por muitos pode ser considerado semi-sagrado ou merecedor de uma honorabilidade ou simbolismo particulares. O Estado pode e deve encontrar fontes de receita em património público emblemático, nomeadamente através da sua utilização para fins turísticos, não me choca rigorosamente nada, desde que seja dentro de limites de razoabilidade e de decoro. Não é o caso. Estou em crer que a maior parte das pessoas que manifestaram algum espanto e desagrado com o evento o consideraram indecoroso. É quase uma prostituição da dignidade pública a atribuição de um preço a certas actividades e abrir precedentes pode chegar a extremos ridículos. Estou a imaginar convenções da IURD nos Jerónimos, estou a imaginar uma festa dos vinhos e enchidos na Torre do Tombo, ou uma exposição automóvel na Sé. Divago, bem sei. Mas no limite, é possível e talvez não devesse ser. Não vou estar a discutir culpas e cores políticas, parece-me desnecessário neste ponto. O dinheiro não pode comprar tudo, não se pode converter toda a oportunidade em capital, o Estado não pode colocar a lógica capitalista acima da defesa dos interesses do Povo.
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Descobri mais ou menos por acaso que, pelo menos para iOS, o Facebook tem uma nova (?) função, que me parece muito útil.
Se forem pessoas particularmente sensíveis ou de pavio curto como eu, sabem que às vezes, a bem da manutenção da paz, de uma relação de amizade, da camaradagem entre colegas, da cordialidade para com conhecidos, da boa vizinhança, ou mesmo, in extremis, a bem de não ir parar à cadeia, o melhor a fazer é "dar um tempo". Fazer uma pausa, respirar fundo para poupar os nervos, distanciar um bocadinho para que as coisas que agastam a relação não toldem aquilo que se quer preservar. Não se quer cortar relações com a pessoa nem ficar completamente alheio à sua presença, mas demasiada interacção ou um excesso de emotividade pode fazer disparar algumas reacções exacerbadas e com um potencial destruidor irreversível.
O Facebook simplifica a tarefa com a opção "Take a Break", que surge logo abaixo do "Unfriend" ("Remover Amizade"). Não é mais do que um atalho que permite a edição de várias opções: ver menos publicações daquele amigo, limitar as nossas publicações que o amigo pode ver e editar as opções de partilha para os posts antigos. Mais importante, serve de alternativa apaziguadora quando já vamos lançados para clicar no "Unfriend", enfurecidos, fartinhos até aos cabelos da palermice de um 'amigo'.
Não faço ideia se esta funcionalidade é nova, mas para mim é novidade e por acaso veio mesmo a calhar. Também não sei se está disponível em todas as plataformas (nos telemóveis em que experimentei, iOS tem, Android não, e no PC também não encontrei). [Se houver por aí entendidos na matéria que queiram partilhar a sua sabedoria e esclarecer as dúvidas do povo, é favor botar faladura ali em baixo na caixa de comentários.]
O que sei é que isto dava um jeitaço também na vida real! Eu iria ser uma utilizadora intensiva, seguramente, pelo menos em ambiente laboral. De cada vez que sou interrompida pelos suspiros e intervenções racistas da chefe, pelas mil perguntas e relatos infindos da colega do lado, pelo karaoke da colega de trás (a acompanhar um rádio despertador que todos temos de gramar), tenho de fazer um esforço hercúleo para não ter um ataque de raiva e começar a bater em toda a gente, ou agrafar-lhes a boca - só porque não me dava jeito nenhum ser despedida neste momento.
Enquanto o teletrabalho continuar a ser a excepção em vez da regra e os meus colegas de trabalho continuarem sem ter a menor noção do que é o respeito pelo tempo e espaço dos outros, tentarei passar a aplicar algumas restrições de privacidade em 3D: não dar conversa, colocar os 'fones' nos ouvidos para me mostrar menos disponível e praticar muito a capacidade de abstracção.
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Adultério é uma palavra violenta e desnecessária como comprova “A Letra Escarlate” (“The Scarlet Letter” no original) de Nathaniel Hawthorne, que significa violação da fidelidade conjugal.
Deve ser defeito da minha mentalidade pouco progressista, mas faz-me espécie como alguém pode contratualizar algo que, à partida, é motivado por sentimentos. Ou seja, como se pode contratualizar o amor ou mesmo o afecto? Não compreendo e recuso-me a contratualizar uma promessa que não sei, e ninguém sabe, se será cumprida. Mas novamente admito que possa ser um problema do meu entendimento e até admito que possa vir a mudar de ideias.
A fidelidade é uma obrigação dos cônjuges. Não sou jurista, mas suponho que a quebra de uma destas condições contratuais possa ser fundamento para a denúncia unilateral do contrato. E pronto, podia ser tão simples quanto isto. Só que não é. A carga moral da infidelidade é pesadíssima, e como temos vindo a constatar entre o choque e a impunidade, com um diferencial muito grande entre géneros.
A meu ver, as relações sentimentais e sexuais não são matéria passível de estarem sujeitas a interferências externas. Cada qual deve fazer o que bem entender sem dar satisfações a partes não interessadas. Aliás, enquanto avaliação moral a fazer nestas matérias só defendo a verdade, até porque defendo a verdade acima de tudo. Se não houver mentiras nem segredos, nada a esconder, e ninguém se magoar, o que é que a justiça, a moral, a religião, a sociedade têm a ver com isso? [Podia discorrer sobre o tema, sendo previsível que o tema virasse para a apologia da poligamia e do poliamor, mas deixo para outra ocasião.]
Quem somos nós, qualquer um de nós, para limitar a liberdade dos outros?
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Escrevi uma vez, ironizando, que “as mulheres são todas putas, e o pior que os homens podem ser é filhos da puta”. Contudo, pondo a ironia de parte, é uma frase que reflecte bem a dualidade de critérios em vigor na sociedade portuguesa (e obviamente não só, mas fiquemos por aqui, para já). Quem diz dualidade de critérios diz também diferenças sociais, diferenças no salário, no acesso a oportunidades de trabalho e de liderança, na carga de responsabilidades sociais e domésticas e até no compasso moral da sociedade. Já alguma coisa mudou nas últimas décadas, mas muito mais falta mudar. As mulheres têm de parar de vir em segundo lugar. E têm de parar de ter medo de serem feministas como se isso fosse uma coisa má. Tem de haver responsabilização e a paridade tem de estar na agenda de todos os partidos políticos democráticos. Os tabus e os preconceitos têm de ser derrubados, a bem ou a mal. O Estado tem de ser o primeiro a dar o exemplo, mas como se vê, não é o que acontece.
Uma mulher, perseguida e agredida pelo seu ex-amante e pelo seu ex-marido, viu a sentença dos dois ser resumida a multas e pena suspensa, com as seguintes patéticas “justificações”:
“O adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem. Sociedades existem em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte. Na Bíblia, podemos ler que a mulher adúltera deve ser punida com a morte."
Ficamos, portanto, a saber que:
a honra e a dignidade do homem são mais valiosas do que a honra e a dignidade (e a integridade física) da mulher;
o adultério é um crime mais grave do que perseguição, rapto, ameaças e agressões violentas (só que não está escrito na Lei);
foi a "deslealdade e imoralidade sexual" da vítima, e o facto da sociedade condenar fortemente o adultério da mulher que levam à compreensão da violência exercida pelo "homem traído, vexado e humilhado pela mulher";
os crimes passionais, quando cometidos por homens contra as mulheres, ainda têm uma margem de tolerância extra;
que ter sido perseguida, ameaçada e levado com uma moca com pregos não foi assim tão mau, porque noutro sítio podia ter sido apedrejada até à morte;
a Bíblia é uma fonte de jurisprudência;
há juízes bem conservados, que saíram do século XV e ainda estão em exercício de funções.
É inaceitável que o poder judicial perpetue as injustiças e violência contra as mulheres. Este juíz do Tribunal da Relação do Porto conseguiu não só colocar a culpa do lado da vítima, ou encontrar num caso extraconjugal a justificação para atenuar a pena criminal de dois agressores, como ainda colocou muita gente a beliscar-se para ter a certeza de que acordou em 2017. Além da urticária e asco profundo, isto causa-me uma série de dúvidas que gostaria mesmo de ver respondidas.
Com que direito se arrastam textos religiosos para ilustrar ou justificar um acórdão da justiça num estado supostamente laico? Como é que um juiz pode exibir, sem pingo de vergonha na cara, o seu fétido machismo e trazê-lo para a justiça, afectando directamente a vida de outras pessoas?
Pergunta ainda mais premente: quando é que este anormal vai ser demitido?
Falando de "um cidadão na rua, de corpo presente e voz activa" que mencionava ontem, foram convocadas várias manifestações em Portugal, nomeadamente uma "manifestação silenciosa", conceito em que não consigo rever-me.
De que serve uma manifestação silenciosa? Que propósito almeja alcançar? Além da sugestão de utilização de velas na manifestação agendada para o próximo dia 21 ser, no limite, de gosto duvidoso (chamas, incêndios...)... Quem se manifesta calado não tem nada a dizer?
Vou assistindo nas redes sociais a discussões perfeitamente estapafúrdias entre pessoas que considero inteligentes e íntegras, altamente politizadas e maduras, em que todo um tema tão fracturante, complexo, diluído em mil causas e consequências, parece ser simplificado ao ponto de se estar contra ou a favor do Governo. Esquerda ou direita? Quem não está contra está a favor?! Como é possível ser tão "clubista" que o raciocínio e espírito crítico sejam completamente cilindrados para dar lugar a uma posição extremada sem sustentação coerente?
Triste democracia esta, em que o eleitorado "pró-governo" se abstém de sair à rua em protesto ou revolta pelas 105 vítimas mortais dos incêndios em 2017, suas causas e exigência de soluções, para proteger uma solução governativa já de si bastante dúbia, para usar um eufemismo.
Triste democracia esta, em que a fatalidade das 105 vidas perdidas e tantas outras destroçadas são o impulso do vil aproveitamento político da base da oposição ao governo, como se os governos anteriores tivessem um pingo menos de culpabilidade pelas políticas ambientais e económicas desastrosas que levaram a cabo.
Triste sociedade civil que fica sem palavras de ordem para se manifestar, se confunde e digladia com pormenores tão pouco produtivos e simplistas como demitir ou não uma ministra.
Triste sociedade acrítica que consegue reduzir à bipolaridade um tema tão complexo e intricado, que arrasta tantos e tão profundos interesses, tantos e tão devastadores prejuízos..
A ingerência contínua do solo, da floresta, do ordenamento do território, dos meios de combate e de quantas mais causas houver para a devastação a que assistimos com os incêndios de 2017 não são temas bipolares!
Manifestemo-nos sim, todos (!), pelas nossas ideias e ideais, esteja quem estiver no governo ou na sua viabilização. Exijamos soluções e responsabilidades políticas a todos os que a têm (que por acaso são sempre os mesmos, rosas ou laranjas ou azuis, é difícil destrinçar) e a nós próprios, que temos os governos que fomos elegendo. Com voz ao rubro e corpo presente, sempre que os funcionários públicos eleitos permitam que o valor do lucro e do capital se sobreponha ao valor de vidas humanas. Porque é disso que tratamos. Se quiserem simplificar a culpa, apontemos então o dedo ao capitalismo! E já agora, aprendamos a ser parte activa da política, enquanto eleitores, enquanto cidadãos, enquanto mandantes dos nossos representantes!
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Admito, sem espinhas. Acredito que há uma espécie de gente que não tem o mesmo valor dos restantes. Não me merecem respeito, nem solidariedade, e não me comovem mesmo que estejam caídos no chão a sangrar e a implorar perdão. São um desperdício do ar que respiram e, se dependesse de mim, provavelmente deixariam de respirar.
São os fascistas.
Desengane-se quem pensa que o fascismo está morto e enterrado. Pelo contrário, está a despontar em qualquer brecha que encontre e propagar-se como a erva daninha que é. Um pouco por todo o mundo os movimentos de extrema-direita começam a sair da toca, de cara destapada, sem pudor de manifestar a abjecção de que são feitos. E para quem possa achar, por distracção ou estado comatoso, que o perigo do fascismo regressar é uma hipótese remota, ou que só acontece lá para a terra do Trampas, peço que abram os olhos para ver o que se tem passado mesmo aqui ao lado, nesta progressista "democracia" a que chamam Espanha, a pretexto da defesa da "unidade" dos territórios, não obstante a história e, mais importante, a vontade popular, ser no sentido da independência da Catalunha (e também do País Basco e da Galiza). Como se a repressão do governo central, através da brutalidade policial e as prisões de membros da Generalitat para tentar evitar o referendo de 1-O ou o envio de tropas para a Catalunha antevendo uma possível declaração unilateral de independência não fossem suficientes, nas manifestações nacionalistas faz-se a saudação nazi.
Não é só uma vergonha mundial que se tenham reerguido os franquistas. A luta anti-fascista é uma obrigação de cada um de nós, que acredita nos princípios opostos aos dos fascistas. Temos, todos e em cada momento, a obrigação de denunciar, corrigir e calar as pequenas manifestações fascizóides a que vamos fazendo ouvidos moucos ou relevando, a bem da liberdade de expressão e da tolerância. Esta gente não tem tolerância alguma à diferença (nem de opinião), não reconhece o direito democrático dos povos, só conhecem a lógica da força bruta da repressão, sem qualquer respeito pelos direitos humanos. Até quando vamos permitir que o fascismo passe impune? Esperaremos de braços cruzados a olhar as notícias pela reactivação dos campos de concentração nazis? O tempo de agir é agora, sem tolerância.
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O Jorge não sabe, mas é um dos meus melhores amigos. Falo com ele muitas vezes, e ele comigo. Nunca me nega amparo e um ombro amigo quando preciso de companhia para olhar o mundo pelo prisma azulado que só os olhos dos poetas (os tais das ondas de ternura) permitem. Quando o coração quer tomar decisões sozinho e seguir caminhos tortuosos, por mais que a razão lhe diga para ficar sossegado, vou sentar-me no Bairro do Amor à procura de cura para as nódoas negras sentimentais, algures no fundo de um copo. Todos os dias desejo ir morar para a Terra dos Sonhos e às vezes penso mesmo em fazer explodir numa gargalhada as fachadas dos edifícios públicos para chegar mais perto do meu ideal.
Já vi o Jorge no seu melhor e no seu pior em cima dos palcos. Visito-o amiúde, seja ao vivo ou numa gravação, e em tantas ocasiões apenas dentro da minha cabeça, que toca uma playlist que não consigo controlar. Dificilmente passa uma semana sem uma destas conversas intimistas em que falamos de Amor e Revolução, de Poesia e de tudo. Já visitei o Jorge em tantos, tantos sítios, em tantos, tantos, palcos, desde o ambiente mais sério do CCB (que logo descamba quando eu grito “Jooooorgeeee” ou um outro palmaníaco grita outro qualquer despautério) à poeira degradante do Festival do Sudoeste há mais de dez anos, desde as Festas Populares da minha terra (e outras) àquelas noites de mandar o Coliseu abaixo, noites de ventania ao ar livre ou nas muitas vezes em que a Festa atingiu a perfeição, com o Jorge a descrevê-la com música.
Já levei muitos amigos a ver o Jorge, já levei vários amores a ver o Jorge, já troquei alguns amigos e alguns amores e o Jorge continua presente, companheiro e confidente. Com banda, com o Sérgio, só com a guitarra ou só com o piano, o que nunca muda é a verdade daqueles acordes a dançar em perfeita sincronia naquelas palavras certeiras.
O Jorge tem idade para ser meu pai mas como é um companheiro desde há décadas, podíamos ser amigos de infância. Gosto das histórias que o Jorge canta e conta. Gosto da irreverência e da postura tão desprovida de vedetismos, que seja um gajo porreiro e “sem merdas”, com o coração e os ideais no sítio certo. Gosto que seja um músico excelente e perfeccionista, mas que não tem grandes pudores em recomeçar uma canção se se enganar na letra ou num acorde. Mas gosto, essencialmente, da forma como o Jorge canta, com a alma toda em cada sílaba, como se cantasse do âmago do meu ser, a dizer coisas que eu devia dizer mais vezes, da maneira mais certa e mais bonita.
O Jorge não sabe, mas já me lambeu algumas lágrimas. Já me ensinou a não esquecer que o meu amor existe, que o impossível seduz e que não há passos divergentes para quem se quer encontrar. O Jorge é protagonista na banda sonora da minha vida e continua a fazer-me descobrir verdades que já canto há anos sem saber que, afinal, o Jorge as escreveu só para mim.
Obrigada, Mestre!
[O Jorge vai comemorar mais anos de carreira do que eu tenho de vida, em Outubro, nos Coliseus, com a Orquestra Clássica do Centro e sob direcção artística do Rui Massena. E eu lá estarei, segura de que enquanto houver estrada p'ra andar, a gente vai continuar.]
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A Porto Editora editou uns Blocos de Atividades destinados a crianças em idade pré-escolar (entre os 4 e os 6 anos). Esta edição tem dado que falar pelos piores motivos, já que existem duas edições, uma para meninos rapazes e outra para meninas (sim, até no título há uma diferenciação).
O quê, mas as escolas já não são mistas desde a terceira República? São, mas a Porto Editora não deve ter sido informada ou então é saudosismo do Estado Novo. Mas o pior é que o problema é bastante mais grave.
Ao que parece, o grau de dificuldade dos exercícios apresentados é distinto, sendo que a "edição masculina" aparenta ser mais desafiante, com um nível exigido de maturidade intelectual consideravelmente superior ao da "edição feminina". Só por si, a assumpção de que existem diferenças de género quanto à exigência expectável das capacidades intelectuais de crianças destas idades é simplesmente ridícula. Mas há muito mais.
Os exemplos apresentados no jornal Público são escandalosos, perpetuando os estigmas e estereótipos de uma sociedade vincadamente patriarcal, já que aos meninos rapazes pede-se ajuda para encontrar o caminho através do labirinto para o seu navio pirata, ou as ilustrações retratam dinossauros, carrinhos e futebol. Já às meninas é solicitada ajuda para encontrar a sua coroa de princesa e as ilustrações são de actividades domésticas, ballet, ... É, afinal, o que ser espera que cada género almeje. Os meninos devem ser patifes sujos como prova da sua masculinidade de testosterona feita, e das meninas espera-se que sejam bonitas, delicadas e dedicadas ao lar. As meninas que querem ser piratas e futebolistas ou os meninos que gostam de brincar com bonecas ou miniaturas de ferros de engomar são vistos como aberrações, questionados, envergonhados e reconduzidos de volta para o que é a "norma", com o rabinho entre as pernas e inibidos da mais pequenina liberdade de poderem brincar ao que lhes apetecer.
A expectativa de cumprimento de papéis de género vincados é, desde logo, uma afronta à individualidade, à sexualidade e uma pressão ridícula pela normalização de género. O caso assume proporções mais gravosas ainda quando se trata da socialização de crianças em fase basilar de formação do intelecto e da personalidade, o que poderá condicionar futuramente as suas escolhas e concepções da sociedade e até as aptidões que são mais e menos desenvolvidas.
Não tenho a mais pequena dúvida que os estigmas e preconceitos que todos temos (podemos conscientemente fazer o nosso melhor para os suprimir mas, mais ou menos subtilmente, foi-nos incutida no subconsciente uma maneira de ver os outros) são adquiridos desde muito novos, desde bebés, com a norma cromática do azul para meninos e rosa para meninas, e desde crianças de fralda com a imposição de tarefas domésticas e o mito da virtude da pureza às meninas, ao passo que os meninos são incentivados a terem brincadeiras mais físicas, com veículos motorizados e elogiados pelas suas proezas desportivas.
A Comissão para a Igualdade e Cidadania de Género está a averiguar a discriminação denunciada, em virtude de múltiplas queixas. A Porto Editora rejeita as acusações e defende-se com o sucesso de vendas da publicação. Aguardemos.
Contudo, até lá há que notar o ponto positivo do assunto ter gerado celeuma e queixas efectivas. Provavelmente, se o episódio se tivesse passado há vinte anos teria passado despercebido. É bom verificar que já vai havendo um grande número de pessoas atentas e interventivas, e que o Estado está aparentemente vigilante e disponível - apesar das falhas imensas nas acções concretas de educação para a igualdade de género, na prevenção e mitigação da discriminação e aplicação de políticas realmente igualitárias e justas.
Pelo andar da carruagem, parece que não vai ser durante o meu tempo de vida que vou ver igualdade de géneros em Portugal.... Aliás, às vezes tenho de me beliscar para perceber que não estou a sonhar que vivo no mundo dos anos cinquenta.
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Viajar é preciso. É absolutamente essencial para aprender a vida, para reconhecer a humanidade em todos os rostos, para perceber que somos todos feitos do mesmo, de matéria mortal e de sonhos, de medos, de risos e de dor. Viajar é a única forma de compreender a filosofia, a inutilidade da religião, a globalização, a ecologia, a finitude dos recursos e o propósito de existirmos, de unir todos os saberes com uma visão menos parcial e incompleta do que somos - que é nada além do acaso material da vida e da consciência.
Como entender um mundo tão grande e diverso e realmente reflectir sobre os “desafios globais” de que nos falam livros e debates, se permanecermos toldados pela visão pequenina e eurocêntrica do mundo? Viajar não é passar uma semana de reclusão num qualquer resort com tudo incluído, que isso é pior do que não espreitar para a rua desde o abrigo quente das quatro paredes. Viajar é conhecer o resto do mundo com outros olhos, é correr riscos e confrontar cada preconceito, questionar as necessidades que pensamos que temos e o conforto a que estamos habituados, é conhecer a realidade de forma mais isenta, é saber onde vivem os trabalhadores dos outros países, quanto pagam por um litro de leite e que transportes apanham para o trabalho, o que cantam quando comemoram alguma coisa, de que riem e o que fazem ao Domingo. Viajar é viver na pele dos outros, é fazer um esforço para virar a cultura e a sociologia ao contrário quando é preciso, e perceber que afinal todas as diferenças não são mais do que manifestações ímpares daquilo que é comum a todos. Viajar abre horizontes em múltiplos sentidos, mas talvez o mais importante seja calejar a tolerância. Tudo o que pode chocar com o que normalmente tomamos por adquirido encerra um potencial de aprendizagem espantoso que vale por si só, e ainda potencia a empatia para com os outros seres humanos. A empatia é a pedra basilar para fazer um mundo melhor, para revolucionar verdadeiramente o mundo feio e egocêntrico que tritura vidas e esvazia almas em troco do lucro máximo de quem já lucra tudo.
Viajar é preciso, mas não é preciso percorrer os quilómetros para sair de quem somos. Conheço muita gente com inúmeros carimbos no passaporte mas que nunca foi capaz de sair da sua pequenina bolha impregnada de preconceitos e amarras. Felizmente conheço também quem tenha saído pouco do seu país e seja cheio de mundo (respeito imensamente quem se expõe ao desconhecido propositadamente, com um devir consciente e não sem um esforço insistente). Era Bernardo Soares, heterónimo de Pessoa, que dizia, certeiro: “Para viajar basta existir. (...) Se imagino, vejo. Que mais faço eu se viajo? Só a fraqueza extrema da imaginação justifica que se tenha que deslocar para sentir.”
Viajar é um acto humanitário, de rebeldia e revolucionário. É cortar amarras de preconceitos e aprender que todas as verdades podem ser discutidas. É também por isto que viajar é muito diferente de ser turista. Ao turista importa ir aos monumentos que o guia da excursão diz que são imperdíveis e tirar uma selfie em cada um para poder atestar que cumpriu os mínimos obrigatórios. Ao viajante importa misturar-se na multidão, fazer compras no mercado e comer nas tascas onde o povo come. Ao viajante importa regressar mais rico, mais duro e mais maduro, porque nunca é o viajante que partiu o que regressa. O viajante não traz respostas no bolso para distribuir pelos outros, recolhe perguntas e confronta-se com elas diariamente. O viajante não sossega, porque a inquietude corre-lhe nas veias e faz reacção alérgica ao conformismo. Quem viaja nunca dirá que está satisfeito, que já viu e viveu tudo o que tinha para ver e viver. Quem viaja tem uma sede insaciável de fazer parte do mundo todo, tem noção da sua pequenez, insignificante presença efémera, e vive atormentado com quaisquer amarras que lhe queiram impor.
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Em relação a mais um cobarde atentado terrorista, ocorrido ontem em Barcelona, só posso manifestar o mais profundo desprezo por quem mata e morre em nome da religião, qualquer que seja a religião ou sendo uma visão mais ou menos extremada. Deus não existe, logo, matar e morrer em nome de uma entidade imaginária é uma ignóbil negação da própria humanidade. [Ponto não passível de discussão.]
O aproveitamento político da situação, seja a favor do discurso da extrema-direita xenófoba (sim, é um pleonasmo) com o recurso à exploração do medo, seja com a comparação do Daesh ao IRA e à ETA, não por acaso a menos de mês e meio de um referendo quanto à independência da Catalunha, revolve-me as entranhas.
Mas o que me enoja mais é a banalização do terror. É o facto de a maior parte dos europeus (eu incluída) já nem nos lembrarmos ao certo de quantos destes ataques com um veículo que passa por cima de transeuntes aconteceram no último ano. Muito menos temos noção da quantidade de vidas tomadas desta forma e de feridos (que também são vítimas, não esqueçamos). Olhamos horrorizados as notícias, que repetem ad nauseam as mesmas imagens, as mesmas "informações", convidam comentadores que debitam as mesmas ideias essenciais, potenciando o medo, a intolerância, advogando a razoabilidade de abdicarmos de liberdades individuais em prol de uma falsa segurança... E assim nos vamos tornando progressivamente insensíveis à tragédia, formatados para acenarmos com a cabeça e aceitarmos como verdade absoluta esta realidade em que as pessoas são só números de vítimas a passar em rodapé, apenas um entretenimento macabro até à próxima desgraça a ser abusivamente exibida na televisão.
Recuso-me.
Não vou compactuar com o jogo de audiências, ou com o discurso do medo, ou com a hiperbolização de chavões que só revelam ignorância ao serviço de um ulterior motivo capitalista. Não contem comigo para encolher os ombros e resignar-me. Não contem com a minha complacência. Combaterei da melhor maneira que sei e posso até ao último fôlego. Aos mentecaptos que planeiam e executam actos terroristas, meto-os no mesmo saco dos corruptos que põem o umbigo próprio acima dos interesses do povo, no mesmo saco dos nazis, no mesmo saco dos servos do imperialismo. São um único inimigo comum e serão vencidos!
Ceder ao medo é a vitória do terrorismo e do fascismo. Somos muitos mais, não nos domarão, não nos calarão e jamais nos vencerão!
Todos os dias me admiro com a percepção da realidade que têm algumas elites, distantes da vida real da maioria das pessoas comuns. E todos os dias confirmo que a classe que gere as empresas que nos vão pagando os salários de miséria e explorando tanto quanto puderem (e permitirmos), tal como uma porção significativa dos decisores políticos, vive numa espécie de realidade alternativa, numa “bolha” de alheamento da realidade óbvia. Os mais vividos podem saber exactamente quão canalhas são eem que medida afectam as vidas dos outros, mas lamentavelmente, uma grande parte está mesmo perfeitamente a Leste da realidade dos trabalhadores (isto sou eu a ser boazinha, a acreditar que em vez de má índole é “só” ignorância, e a tentar, não sem esforço, colocar de parte o meu preconceito contra os ricos - reparem que nem digo burgueses). A alienação é fruto, desde logo, de um condicionamento social que marca as classes. Não tendo uma extensíssima experiência no mercado empresarial, já passei por dois ou três sítios em que o enquadramento se repetia, e por tudo o que oiço e vejo, permito-me a liberdade de tecer algumas considerações generalistas.
Os chefões (administradores e directores) das grandes empresas do sector privado fazem parte de uma espécie de meio fechado, ou têm uma rede de contactos que partilham em grande medida. Quase todos parecem conhecer-se dos tempos dos liceus particulares, ou dos tempos das universidades também particulares, ou do meio social que se estende um pouco mais devido a laços familiares e de amizades. Depois, claro, há toda a componente política. São quase todos das mesmas áreas políticas (direita ou direita), ou militaram nas mesmas “jotas”.
Este condicionamento social de que falo é inseparável da educação, desde logo. (Se parecer que estou novamente a atacar o ensino privado é porque estou.) Numa escola ou colégio privados não entram jovens das camadas sociais mais “desfavorecidas”, ou traduzindo por miúdos, não há pobres. Não significa que nas escolas públicas não andem putos de classe média ou betinhos endinheirados, que também os há, mas nas privadas não há, naturalmente, vislumbre da classe operária. Isto significa que desde muito jovens, as crianças dos colégios privados não têm contacto com os operários em pé de igualdade, onde a aprendizagem e socialização são basilares para a construção da personalidade e do carácter. Não esfolar joelhos com os filhos dos operários fabris e das suas empregadas domésticas, e não fazer os mesmos testes que eles, podem bem contribuir para a criação ou perpetuação de preconceitos e mitos. Pior, a sua realidade fica indelevelmente carente, por omissão, das outras realidades.
O resultado é que esta fina burguesia que nunca respirou fora da bolha não faz a mais pálida ideia sobre o que é ser pobre. Lá terão umas ideias vagas e generalistas, provavelmente erradas, mas no concreto desconhecem a dureza dos dias, de todos os dias. Não fazem ideia de que as famílias que têm de se sustentar com um salário mínimo, ou um subsídio de desemprego (quando o há) também gostavam de jantar fora nos restaurantes da moda, só que nem sequer conseguem comer carne ou peixe todos os dias. Não se lembram que às vezes o dinheiro falta para coisas tão fundamentais e que tomam por garantidas como a água canalizada ou as taxas moderadoras no Centro de Saúde. Não concebem que mesmo um casal sem filhos e com dois salários mínimos a entrar para o orçamento tem de pagar casa, o que leva uma grande parte do rendimento, os transportes de e para o trabalho, a água, a electricidade, o gás, a comida, e no fim disto tudo pode não sobrar rigorosamente nada. Se um dos elementos do casal tiver um problema súbito de saúde, pode ter de se aguentar ou pedir dinheiro emprestado. O patrão/chefe não sabe o que isso é, porque nunca lhe aconteceu a si nem aos seus próximos. Nunca viu no supermercado um idoso a contar os trocos e a ter de deixar um saco com duas maçãs para trás porque o dinheiro não chegava para tudo. Este patrão acha que já não ter salário ao dia 5 é só desgoverno, que "as pessoas" não querem é trabalhar, são preguiçosas e querem é viver de subsídios, acham que "os transportes públicos que temos até nem são nada maus", acham que a "classe média" tem imóveis de 600 mil euros para cima, que os jovens são uns aventureiros que emigram pelo espírito empreendedor (e jamais por necessidade), que são frugais e escolhem alugar umas casinhas pequenas e ter filhos tarde.
Uma boa parte da falta de noção da realidade pela elite que decide a vida de todos nós passa pela falta de confronto. Se nunca ninguém disser umas verdades óbvias na cara desta gente, os burguesinhos da bolha continuarão com as suas certezas sobre esse conceito místico (para eles) do “povo”, continuarão a achar coisas e, recordo, a decidir sobre as nossas vidas com base nesses “achismos”.
Quando li isto olhei em volta, para o meu T2 nos subúrbios, que comprei há quase 10 anos, usado, com um enorme esforço que implicou a aplicação de todas as minhas poupanças até à data, uma ajuda extra dos meus pais e um empréstimo bancário por 40 anos. O valor patrimonial do meu imóvel é bem, mas beeeem inferior aos 600 mil euros limite para o agravamento de IMI. E até tenho a “sorte” (?) de nunca ter estado desempregada por mais de uma semana, de receber todos os meses, sem atrasos até ao momento, um salário mil-eurista (como os outros “afortunados” da minha geração). Olhando para o escalão de IRS em que me encontro, constato que segundo os parâmetros deste e dos anteriores governos (nomeadamente e sobretudo os governos com participação do PSD), só poderei pertencer à tal “classe média”. Fico confusa. Faço contas. Observo o saldo da minha conta bancária, que me dá vontade de chorar, e começo a questionar os meus dotes aritméticos, que sempre me disseram ser bastante bons.
Ora pensemos juntos. A continuar a depender exclusivamente do meu trabalho (abusivo e mal-pago) para sobreviver e pagar contas, se conseguir poupar qualquer coisa como 250 euros, em média, por mês, e ainda se contar com igual “sorte” e esforço por parte do meu companheiro (o que não é fácil para nós actualmente e seria completamente impossível se porventura as despesas crescessem, como num acesso de loucura de aquisição de um automóvel, ou num acesso de loucura ainda mais extrema, a procriação), teríamos uma poupança conjunta anual de 6 mil euros. Ou seja – três vezes seis dezoito, é uma questão de fazer as contas, como dizia o Guterres – teríamos de trabalhar ainda, pelo menos, mais cem anos para podermos comprar, em conjunto, um imóvel de 600 mil euros, já não contando com a oscilação do mercado imobiliário nem com a inflacção.
Concluo enfim que...
Classe média o caraças!
Não sei quanto ao resto do mundo, mas para mim declarações desta índole são profundamente ofensivas, são um gozo descarado com a cara dos trabalhadores. Mas devo ser eu que estou errada, porque afinal são os partidos do centrão que têm há décadas o apoio popular e suspeito que continuarão a ter até que o povo desperte da letargia.
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Não gosto de desvendar aqui dados pessoais, ou falar de detalhes da minha vida privada (o anonimato é insubstituível como escudo libertador), mas vou abrir uma excepção para dizer algumas coisas sobre a selvajaria que se passa na PT com a tomada de assalto por parte da Altice.
Passei pela PT em várias fases da vida, em várias posições na empresa, conheci desde o call-center aos gabinetes da administração, trabalhei até à exaustão e à depressão, aprendi muitas coisas e conheci muita gente. Alguma gente muito boa, de quem continuo amiga até hoje, anos depois de ter mudado de emprego, e alguma gente que não vale um tostão furado. Em termos de direitos laborais, de progressão na carreira e da forma como as pessoas são, ou eram, tratadas, uma palavra basta: vergonha. Muita coisa, se não quase tudo, assentava no bom velho factor C, na politiquice, nas quintinhas e raivinhas de dentes. Não tenho saudades nenhumas desse tempo de esforços em vão e inglórios a bem do brio profissional, das noitadas até de madrugada que eram tomadas não só como dado adquirido como uma obrigação, a troco de... zero, nem um agradecimento. Uma chefia teve a distinta lata de me acusar uma vez de "usufruir de todos os meus direitos" (o que até estava bem longe da verdade), e de me acusar de ter tido uma baixa por doença (para uma cirurgia major) numa má altura - não interessa que fosse a única altura possível, ao que parece deveria ter adiado a minha saúde por mais um ano ou dois, para minimizar o impacto no calendário de férias da chefia. Dá para ter uma ideia, certo?
Como comunista, estou e estarei sempre do lado dos trabalhadores, todos os trabalhadores, sejam eles quem forem. O que a Altice pretende fazer é passar por cima de todos os direitos e liberdades, dizimar postos de trabalho, fragilizar ainda mais os vínculos laborais e aproveitar ao máximo a permissividade política que existe (permitimos existir) em relação à precariedade, merecendo-me a mais absoluta repulsa.
Contudo, não deixo de achar interessante a ironia de também quem ajudou (e, tantas vezes, levou mais longe) a mão exploradora e opressora do patronato quando estava em posições de chefia a despertar agora - só agora - para a defesa dos interesses dos trabalhadores. Claro que não os vejo nas manifestações nem a dar a cara na televisão, mas vejo os seus apelos e suspiros nas redes sociais, leio os seus desabafos e pedidos de protecção. Talvez agora tenham percebido que não são "chefias" nem "pessoas importantes em cargos importantes" (de um poderzinho medíocre que só se revela no espezinhamento alheio), mas apenas e só trabalhadores como os outros, que valem apenas os números que representam, a quem gostavam de chamar "colaboradores" ou, ainda mais ridículo, "as minhas pessoas".
Daqui lhes envio a minha genuína solidariedade, revestida de benefício da dúvida, porque mais vale tarde que nunca. Tomara que sim, que realmente tenham percebido onde está a linha nem-por-isso-ténue que separa a justiça da exploração, e que não voltem a esquecê-la. Que mantenham os vossos postos de trabalho e posições hierárquicas, para no futuro defenderem os direitos dos trabalhadores nas vossas equipas. Para que não permitam a adulteração de avaliações de desempenho, para não usarem gritos, ameaças de despedimento, chantagens e ofensas como método de "liderança", para não permitirem a perseguição de quem faz greve, para deixarem de incentivar as horas extra não remuneradas, para exigirem condições de trabalho dignas para todos.
Dedico-lhes esta canção do Jorge, Vermelho Redundante.