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Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

origem

UMA CRIATURA

 

Sei de uma criatura antiga e formidável,

Que a si mesma devora os membros e as entranhas

Com a sofreguidão da fome insaciável.

 

Habita juntamente os vales e as montanhas;

E no mar, que se rasga, à maneira de abismo,

Espreguiça-se toda em convulsões estranhas.

 

Traz impresso na fronte o obscuro despotismo;

Cada olhar que despede, acerbo e mavioso,

Parece uma expansão de amor e de egoísmo.

 

Friamente contempla o desespero e o gozo,

Gosta de colibri, como gosta de verme,

E cinge ao coração o belo e o monstruoso.

 

Para ela o chacal é, como a rola, inerme;

E caminha na terra imperturbável, como

Pelo vasto areal um vasto paquiderme.

 

Na árvore que rebenta o seu primeiro gomo

Vem a folha, que lento e lento se desdobra,

Depois a flor, depois o suspirado pomo.

 

Pois essa criatura está em toda a obra:

Cresta o seio da flor e corrompe-lhe o fruto;

E é nesse destruir que as suas forças dobra.

 

Ama de igual amor o poluto e o impoluto;

Começa e recomeça uma perpétua lida,

E sorrindo obedece ao divino estatuto.

Tu dirás que é a morte; eu direi que é a vida.

 

 

 

Assis, Machado de, 1839-1908

O Almada & outros poemas / Machado de Assis – São Paulo

Globo, 1997, - (obras completas de Machado de Assis) p.126.

O meu amigo João Morais está prestes a lançar o seu segundo álbum de originais e, a julgar pelas pérolas do primeiro, será imperdível.

Ainda não escutei uma canção do João de que não gostasse muito. O ritmo de Bossa Nova e samba em português lusitano, a harmonia melódica e irrepreensível, com uns laivos de jazz, os poemas extraordinários e os instrumentais requintadamente deliciosos.

Ouçam, deixem-se viajar pela sonoridade doce e inquietante e sigam de perto a carreira do João, que tem tudo para explodir! Se gostarem tanto quanto eu, divulguem, que a boa música deve ser partilhada.

página de Facebook e o canal no Youtube do João esperam a vossa visita. 

 

 

 

Já não caibo numa casa
Onde o espaço é todo meu
Não são obras que me salvam
Eu só sei crescer

Durmo de janela aberta
Tenho os braços no estendal
Eu podia acenar-vos
Mas só sei crescer

Leio o topo da estante
Tudo livros de engordar
E eu preciso abreviar-me

Mas só sei crescer

Qualquer palmo que me meça
É de mão sem cicatriz
O que eu sou é largo de ossos
Pois só sei crescer

Eu só me caibo cá dentro
Mas bato no peito
Por estar com meu ar rarefeito
Eu inicio o discurso
Citando o sujeito
Primeira pessoa é preceito

Eu nem cá dentro me caibo
Pois bate a cabeça no teto
E cai na travessa
Eu já calei o discurso
Que a língua tropeça
Mas o gigantismo amordaça

Eu já invento virtude
No pico não peco
Lá em baixo ficava marreco
Estou tão em-mim-mesmado
É tiro ao boneco
Gigante barrado no beco

Eu já não sei inventar-me
É só mais do mesmo
Fermento em massa de autismo
Eu nem de mim já me pasmo
Há mar e marasmo
Há ir e voltar aforismo

Mas eu só sei crescer

Quando nos dias maus, de abandono, de incertezas, de quebras, te surge uma nau de tinto alentejano por esse rio acima, com a promessa de céus estrelados e abraços doces, enxugas a lágrima teimosa e bebes um golo. Brindas às incertezas que podem ser surpresas muito boas e segues em frente, com mais uns epítetos na bagagem do quase nada que és. 

Por este rio acima
Deixando para trás
A côncava funda
Da casa do fumo
Cheguei perto do sonho
Flutuando nas águas
Dos rios dos céus
Escorre o gengibre e o mel
Sedas porcelanas
Pimenta e canela
Recebendo ofertas
De músicas suaves
Em nossas orelhas
leve como o ar
A terra a navegar
Meu bem como eu vou
Por este rio acima

Por este rio acima
Os barcos vão pintados
De muitas pinturas
Descrevem varandas
E os cabelos de Inês
Desenham memórias
Ao longo da água
Bosques enfeitiçados
Soutos laranjeiras
Campinas de trigo
Amores repartidos
Afagam as dores
Quando são sentidos
Monstros adormecidos
Na esfera do fogo
Como nasce a paz
Por este rio acima

Meu sonho
Quanto eu te quero
Eu nem sei
Eu nem sei
Fica um bocadinho mais
Que eu também
Que eu também
Meu bem

Por este rio acima
Isto que é de uns
Também é de outros
Não é mais nem menos
Nascidos foram todos
Do suor da fêmea
Do calor do macho
Aquilo que uns tratam
Não hão-de tratar
Outros de outra coisa
Pois o que vende o fresco
Não vende o salgado
Nem também o seco
Na terra em harmonia
Perfeita e suave
Das margens do rio
Por este rio acima

Meu sonho
Quanto eu te quero
Eu nem sei
Eu nem sei
Fica um bocadinho mais
Que eu também
Que eu também
Meu bem

Por este rio acima
Deixando para trás
A côncava funda
Da casa do fumo
Cheguei perto do sonho
Flutuando nas águas
Dos rios dos céus
Escorre o gengibre e o mel
Sedas porcelanas
Pimenta e canela
Recebendo ofertas
De músicas suaves
Em nossas orelhas
Leve como o ar
A terra a navegar
Meu bem como eu vou
Por este rio acima

No teu corpo de abrigo

Sou inteira

Sem filtro

No desejo de ti todo

Encontro

O que é selvagem

Perdido

Procuro um casulo

Refúgio

Meu lar

Escondido

Nossos peitos abertos

Sofridos

Esmagados e comprimidos

Colados

De par em par

A sede que te tenho

Inebria

Teus beijos

De oásis

Estremecem

As mãos nos quadris

Padecem

Línguas que se abraçam

Dormentes

Peles que se roçam

Brilhantes

O embalo melódico do coito

Gemidos 

Nomes que se soltam

Volúpia

Cantam tesão

Teu corpo de abrigo

Contido

Meu porto amigo

Secreto

Final em vibrato

Explosão

Começa-te em mim

De fogo

Alma aberta

Paixão

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Odeio clichés, mas efectivamente não me ocorre forma mais assertiva e completa de dizer isto: Lara Barradas é uma força da natureza, ponto.

A escrita da Lara é absolutamente estrondosa! Com meia dúzia de palavras, meticulosamente esculpidas com o fogo todo da alma, consegue deixar-nos prostrados, boquiabertos e comovidos, seja na poesia portentosa ou na prosa tecida com tanta força como com suavidade.

Escrevi, há algum tempo, a seguinte crítica na sua página: "Tudo o que a Lara Barradas escreve pode ser sorvido em camadas. Primeiro, vem o perfume das palavras e da harmonia; a seguir, vão-se descobrindo novos significados, uns estridentes, outros quase sussurrados, cada vez mais profundos, até se chegar a um íntimo que já não percebemos se é o nosso ou o dela, em cruzadas empatias." Não sei como dizer melhor que a página da Lara é mesmo incontornável! É imperioso seguir de perto esta autora, que está só no início de uma carreira literária que tem tudo para ser longa, produtiva e brilhante.

Já daqui a um mês, é lançada a primeira obra a solo da Lara, o livro infanto-juvenil Anchieta, com ilustrações do Rodrigo Estiveira e sob a chancela da editora Alfarroba Edições.

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"A obra original, conta a história de uma indiazinha que vive na Amazónia, e que é muito curiosa em relação ao mundo de betão. Anchi conta com a companhia do seu irmão Eke, nas brincadeiras na selva, e do seu macaquinho de estimação. Tal como todas as outras crianças, tem um medo que quase a domina, e vai contar com o apoio dos seus amigos para o ultrapassar, sendo no entanto, constantemente importunada pelo malvado Xinfrim.

A obra conta com personagens inspiradas na tribo Guarani, no folclore Brasileiro e faz alusões a personagens do âmbito fantástico, que vão estimular a criatividade das crianças. Tem uma forte componente de consciencialização para a preservação da natureza."

 

Estou em pulgas para ler a história e a rebentar de orgulho desta miúda com quem partilho uma empatia enorme sem nunca lhe ter botado a vista em cima (mas as pessoas extraordinárias que nos entram de rompante vida adentro são como as cerejas, é o que vos digo). 

As mãos duras abrigam poemas

Escorrem agruras em teias de nós

É violenta a ausência de quem se perdeu

E é bruta a força dos anos que passam

E nem por isso pesa o sorriso

Falhado, orgulhoso

Perfeito

Que ri por cima da história

Da ditadura, dores,

De fome, trabalho,

De desprezo, traição,

De abandono, injustiça

Ri com liberdade

Com o descanso de ser e ter sido

Fortaleza invicta

Fera, amazona e tecto

Punho erguido e colo, cobertor

Ossos fracos, varizes

Rugas e cabelos brancos

Rude como a terra arada

Fértil, analfabeta e sábia

Camarada e amiga

Amada

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Por entre corredores sujos
Trapos e vidros rachados
Oiço o arranhar das lágrimas
Esqueletos de melros na gaiola
Atestam a beleza insuficiente da morte
Não se sacode o pó, que magoa
Só as pegadas marcam vestígios
Nas paredes de musgo
E gavetas perras
Ruínas de nós
Cadeiras coxas, a cama rota
Molduras quebradas
Fotografias baças do que nunca fomos
Os filhos que não nos nasceram
Dos corpos que não se trocaram
E o cheiro que se entranha
Cartas antigas, amarradas, amarelas
Encerram poemas e guerras
E tanto
Amor

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Não digo que te amo
Não posso dizer
Não posso quebrar
Torturo um piano
Faço-o cantar
As coisas tão bonitas
Que colho no teu olhar
Só tu me dás poemas
Que apertam o peito
Que fazem chorar
Barcos à vela que voam
Aviões de papel que naufragam
Beijos passados, sofridos
Corvos atentos no ar
Procuro-te no fundo
De mensageiros tintos
Réstias do pedaço teu
Que completava este lugar
Faltas à chamada
Segues cego sem me ver
Segues só por não querer
Não digo que te amo
Porque este amar faz doer

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nos teus olhos não vejo
céus azuis, bonança eterna
nos teus olhos não bebo
rimas dulces, promessa efémera
nos teus olhos vejo tormentas
labaredas de ternura
orgulho cerrado e tanta força
punho esgotado de lutar
socos pra dentro, facadas num peito
em que todos cabem menos tu
que sempre cedes o teu lugar
vejo o sorriso da solidão
desgarrada, a provocar
irresistível, bem sei
namorada de colo cheio
braços e pernas abertos
casulos de gente como nós
que nunca se soube amar
não sei quem foste ou querias ser
quem és sobeja, nada há a mudar
vejo humildade e respeito
culpa órfã de indulgências
e um caminho de fatalidade
de que prometo não me apartar
vejo-te beijos sem reservas
verdades da carne em erupção
e o cansaço do falhanço
medido nessa bitola
que sempre teimas em desviar
ouço-te a voz que é só tua
consagração maior dos poetas
pejada de espinhos a arranhar
e mil mágoas que pesam
por não as saberes largar
também te vejo nos silêncios
o que deixas por adivinhar
nos teus olhos vejo músicas
que ainda estão por inventar
vejo uma alma tresmalhada
e chamo casa a esse olhar
corrida em frente, em fuga
cega, na ânsia de chegar
aonde sempre és esperado
só não vejo o teu perdão
por escolher sem pecado
o que mandar o coração
não sei o que te chamam
sou invisível, não existo
na sombra do teu lugar
mas sei bem quem vejo e amo
posso ensinar-te a não calar
não creias no que dizem meus lábios
ou os meus olhos cansados
de ver sem olhar
sei-te de cor, tal qual te mostras
face contida de planícies e mar
sei-te melhor no avesso da lua
touro bravio, miúdo perdido
todo de escuro e estrelas a latejar
não me perguntes o que te vejo
vejo tão mais do que ouso contar
vi-te por dentro, sabe-lo bem
olha-me tu e promete ficar
segura-te, sozinho não ficas
confia - não te deixo cair
a repetição das dores enterradas
aqui já não tem lugar
dou-te tudo o que tiver
o que não tenho irei buscar
enfrentaremos os dias maus
de capa e espada, como heróis
garanto que irão passar
com sol ou lua, luz ou negrume
o tanto que te vejo e que
às vezes me faz chorar
dói e arde, mas faz crescer
agarra a minha mão, grava o meu nome
aquela que não te vai abandonar

Para dar as boas-vindas ao mês de Agosto, em plena silly season, inicia-se aqui uma rubrica de autores convidados, que tenho o orgulho de arrancar com a poesia de uma amiga querida que nunca vi, nunca abracei (ainda), e que nada tem de silly. Queria começar assim, pelo puro prazer das palavras, sem mais amarras, sem expectativas e sem compromissos. Gosto da poesia da Susana Nunes porque é realmente isso mesmo: pura. Despretensiosa, descomplexada, leve, às vezes leviana, nunca oca. Quando a Susana escolheu este poema tive ainda mais certeza de seria o momento ideal para esta casa vestir as estrofes alheias, medidas às cegas, e que assentam que nem uma luva. Nem por encomenda seria mais adequado. Vão conhecer a Susana e deliciem-se! 

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Se calhar

Se calhar, não tive voz que chegasse
e por isso, tu não ma ouviste
Se calhar as letras deviam ter sido escritas a negrito
ou então as palavras estavam esbatidas
não foram de todo, as suficientes
e talvez por isso
mas não sentiste

Quando por fim
consegui proferi-las claras
cheias de frases sonoras
e de versos audíveis em ecos de montanhas
... estavas longe
e nas horas abertas
em que juntei os meus poemas
e os desfolhei nos livros aos ventos
... tinhas curvado a esquina
e claro, não mas encontraste

Agora...
Tenho sal a mais nas lágrimas
tenho paladar amargo p'ra mim
e p'ra mais uns centos
e só me apetece gritar alto
e voltar ao início
em que a minha voz era rouca e pouca
mas ainda conservava a esperança
que te voltasses dessa terra dos silêncios
sem morada
sem caminho
sem estrada que eu soubesse...
... e mesmo de longe que fosse
me dissesses...
- Espera pela minha voz, morena
vou dar-ta, meu amor, de uma assentada
espera... que já não demora...
nada mais há, que eu queira tanto...
... e ai, como vai... valer a pena

Susana Nunes 12 / 6 / 2018

Açaima a verdade como se a poesia doesse

Como se não fosse a dor que nos garante a vida

O mundo segue ignorante e rude, sem escutar. Tece

estilhaços de vidros varridos para onde não se vê

trancados no cofre aberto de aprendiz de banalidades

Recusa as letras sujas do sangue que bebemos em festim

Foge das rodas dentadas que mastigam ferro sem idade

e das palavras que escorrem beiços abaixo, peito acima

Cala uma voz como quem cala um amor maldito

De açucenas nos dentes e coração de granito

 

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Há anos, muito antes de ter aprendido uma lição que custa a aprender, que nem sempre temos a importância para os outros que lhes damos na nossa vida, que nem todas as amizades são recíprocas, fiz um avião de papel com este poema, coloquei-lhe um beijo por companhia e atirei-o sobre o Tejo.

Hoje faz mais sentido do que nos outros dias. Hoje sem avião de papel, só silêncios e nevoeiro sobre a tua serra, frio húmido entranhado nos ossos, omnipresente, a fazer doer como as ausências e a arder como a tristeza. Gosto-te, aqui ao longe, discretamente para não te ofender ou incomodar. Gosto-te. E tenho sido feliz, por nunca ter seguido os trilhos que me quiseram destinar. O meu trilho, não mudo por ninguém, nem mesmo por ele ou por ti. Não me atravesso no caminho de ninguém nem permito que me desviem do meu. E sei que não sei mentir.

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POEMA PRIMEIRO

... Gosto-te. E desta certeza
se abre a manhã como uma imensa
rosa de desejo indestrutível. O futuro
é o próximo minuto, para além
da infatigável religião dos meus versos,
em cuja luz me acendo, feliz e nu.
O meu sorriso conhece a bondade
dos animais, o poder frágil das corolas,
e repete o nome feminino dos arcanjos de
peitos redondos, perfumados
pelas giestas dos caminhos
do céu.
Gosto-te. Amarrado
pelos meus braços de beduíno do sol,
pobre senhor dos desertos,
profeta da distância que há dentro das palavras,
onde se alongam sombras
e o sofrimento se estende até à orla
da mais inquieta serenidade.
Gosto-te. E tenho sido
feliz, por nunca ter seguido os trilhos
que me quiseram destinar. Aqui
e ali me pergunto, despudoradamente. E sei
que não sei mentir. É por isso,
que recolho na face a luz imprescindível
ao orgulho dos peixes
e dos frutos.
Gosto-te. Na-na-na, na-ô...
Na-na-na, na-ô... na-nô...
Canta o espírito do caminho,
canta para mim e canta para ti, eleva
o coração das grandes árvores, coração
de seiva e de coragem,
sangue fresco e verde, apaixonado
e doce,
de tanto contemplar o perfil das tardes.
Gosto-te. Mas "longe"
é uma palavra húmida, grávida,
onde os sinos da erva tocam
para convocar as sílabas. E,
ao procurar-te, tremo apenas
de ternura
para que nem mesmo a inteligente brisa
da manhã
possa dar por mim.
Mais discreto que isto
é impossível.

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Nasceu-me a liberdade
Onde tinha encerrado a dor
Um rio atravessou-me a meio
Comportas abertas
de espanto, talvez amor
Teus olhos naufragados
Tomaram conta de mim
Fui teu farol, bússola e mar
Foste-me cravos, poesia, motim
Num terminal de chegadas
Na tarde baça em que pari
Fatalidade ancorada
Bolsos vazios, sem regresso
Nem promessas nem metáforas
Mudou o ano, virou o jogo
Poemas mortos, secos, gastos
Papel borrado, desperdício
Jogada a um canto, no lixo
Carta anónima, profana, rasgada
Sem resposta ou lugar, sem nada

Poet: Charles Bukowski The Laughing Heart; Roll the Dice Narrated by: Tom O'Bedlam

 

Go all the way - Charles Bukowski

“If you're going to try, go all the way. 

Otherwise, don't even start. 

This could mean losing girlfriends, wives, relatives and maybe even your mind. I

t could mean not eating for three or four days. 

It could mean freezing on a park bench. 

It could mean jail. 

It could mean derision. 

It could mean mockery--isolation.

Isolation is the gift. 

All the others are a test of your endurance, of how much you really want to do it. 

And, you'll do it, despite rejection and the worst odds. 

And it will be better than anything else you can imagine. 

If you're going to try, go all the way. 

There is no other feeling like that. 

You will be alone with the gods, and the nights will flame with fire. 

You will ride life straight to perfect laughter. 

It's the only good fight there is.”

Trocamos poesias e músicas que falam ao ouvido as palavras mil que evitamos, farpas de honestidade ferrugenta por baixo das unhas. Trocamos beijos e sorrisos inseguros sem nos tocarmos, de olhar no vazio, esperanças desertas e vontades casmurras. Recordo o teu discurso cheio de razões quando só queria ver-te sorrir. Devia ter-te calado com um beijo sôfrego nos teus lábios de glaciar impertinente, um beijo apressado, espantado do desejo que me apanhou na curva. É que o teu sorriso arrepia, ainda que viva só num sítio feito por mim, à tua medida, onde ris exuberante, onde os teus olhos brilham em festim guloso e jamais acusam saudade ou desesperança. Os teus sorrisos, difíceis de conquistar, acendem coisas obscuras em mim, sombras lilases de uma ternura sem fim. Juro que podia viver nesse sorriso, podia respirar só esse ar fresco de poesia, de seiva a escorrer do excesso de beleza que trazes ao mundo. Queria tecer-te um casulo de doçura para te ensopar as melancolias, as agressões, as arestas cortantes das noites de solidão, protecção que abraça e te afaga o cabelo, que te embala e promete que tudo vai passar. As paredes rombas da fortaleza que sou eu têm ninho para ti, têm navios cargueiros pendurados do tecto para caberem as tuas fugas, toda a bagagem rota que arrastas nos bolsos da servidão. Sempre te afastas da porta como se fosse a entrada dos infernos, como se a estética dos meus afectos te ofendesse, como se entrar aqui na arcada do meu peito em clamor significasse que descarrilas do rumo que não queres seguir. Recolhe os silêncios na noite espessa, não sabes ainda que todas as palavras podem caber na poesia, que a beleza não se encerra nas palavras chão e flor, nuvens e pardais, que o amor também vive nos desapegos banais que me gritas à janela, em impropérios invernosos e desabafos que a almofada desconhece.

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Fizeste-me mil maldades 
e uma maldade muito grande 
que não se faz 
acho que devo ter sido a pessoa 
a quem fizeste mais maldades 
nem deves ter feito a ninguém 
uma maldade tão grande 
como a que me fizeste a mim 
não sei se tens remorsos 
tu dizes que não tens remorsos nenhuns 
porque dizes que és um vil criminoso 
para mim 
eu também sou uma vil criminosa 
mas não para ti 
desconfio que tens o remorso 
de ter alguns remorsos 
por me teres feito mil maldades 
e uma maldade muito grande 
a maldade muito grande está feita 
e não se faz 
acho que essa maldade muito grande 
nos aproximou um do outro 
em vez de nos afastar 
mas para mim é um drôle de chemin 
e para ti também deve ser 
mas com um vil criminoso nunca se sabe

 

Vídeo

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Num dia de São Pedro um vil criminoso trocou-me as voltas todas, fez-me uma maldade. Como vil criminoso que é, não descansou até me tornar numa vil criminosa. Eu não tenho remorsos de nada, só do que não fiz, porque deixei trocarem-me as voltas de novo, e o vil criminoso fez-me uma maldade muito grande, que não se faz, que nos aproximou em vez de nos afastar. O vil criminoso tem remorsos de ter remorsos mas nem por isso deixa de ser um vil criminoso. Escreveu a Adília Lopes e podia ter escrito eu. A diferença é que a vida seguiu depois do poema, o vil criminoso não sabe fazer senão maldades, as piores e mais cruas maldades e eu vou ter de ser a maior e mais vil (e brava) criminosa, porque há maldades que não se fazem e caminhos que se não se caminham lado a lado terão de ser para sempre apartados.

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- diz (quase) assim a música.

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Ouvir as mesmas canções é ter uma base de comunhão, de entendimento, quiçá de visão sobre uma série de aspectos. E é bom apanhar um murmúrio entoado no duche e fazer coro, pegar nas deixas e completar versos entre risos e uivos. É tão bom dançar em silêncio com a mesma banda sonora que não dá tréguas a ecoar em duas mentes sintonizadas na mesma estação, ondas médias ou curtas, inverno ou verão. Uma mão pousada na cintura, outra desleixada a deambular corpo acima, corpo abaixo. Como ímanes, dois animais que se pertencem, enganchados, bailando no ritmo que sabem de cor, suspiros e gemidos entredentes a marcar o compasso da sinfonia suprema sem maestro.

Partilhar com outra pessoa as nossas, tão nossas, canções, deixar escorregar uma gota atrevida e partilhá-la à janela com quem mora no silêncio invisível, do outro lado do coração, é todo um outro capítulo. É uma dádiva pessoal feita de adivinhas e silêncios, de empatias mudas e verborreias extensas. É abrir uma nesga da concha e soltar cavalos de batalha pela imaginação fora, sem coreografias ensaiadas. É fazer rebentar desejos de beijos como ervas daninhas na berma, persistentes, por muito que se tente arrancá-las pela raiz. São mãos que se tocam sem pele, tacto profundo, direito ao canto seguro onde enterramos segredos, sementes, sem medos. 

 

[Quem me dera, meu bem, que te deixasses perder no olhar da Ventania. Quem me dera, amor, morrer para nascer de novo e te resgatar das labaredas que te gelaram, abraçar-te com toda a força e prometer que nunca te vou deixar cair, mais depressa cairia eu contigo do que soltar-te incerto no mar revolto. Enquanto eu estiver aqui, neste plano, não te faltará com quem ouvir a mesma canção ou espantar a solidão.]

 

 

Restolho - Mafalda Veiga

Geme o restolho, triste e solitário

a embalar a noite escura e fria

e a perder-se no olhar da ventania

que canta ao tom do velho campanário

Geme o restolho, preso de saudade

esquecido, enlouquecido, dominado

escondido entre as sombras do montado

sem forças e sem cor e sem vontade

Geme o restolho, a transpirar de chuva

nos campos que a ceifeira mutilou

dormindo em velhos sonhos que sonhou

na alma a mágoa enorme, intensa, aguda

Mas é preciso morrer e nascer de novo

semear no pó e voltar a colher

há que ser trigo, depois ser restolho

há que penar para aprender a viver

e a vida não é existir sem mais nada

a vida não é dia sim, dia não

é feita em cada entrega alucinada

p'ra receber daquilo que aumenta o coração

Geme o restolho, a transpirar de chuva

nos campos que a ceifeira mutilou

dormindo em velhos sonhos que sonhou

na alma a mágoa enorme, intensa, aguda

Mas é preciso morrer e nascer de novo

semear no pó e voltar a colher

há que ser trigo, depois ser restolho

há que penar para aprender a viver

e a vida não é existir sem mais nada

a vida não é dia sim, dia não

é feita em cada entrega alucinada

p'ra receber daquilo que aumenta o coração

 

Este blogue repudia veementemente o Acordo Ortográfico.
Neste blogue não se faz corridas. Nem passatempos. Nem giveaways (que são a mesma coisa que os passatempos com um nome mais snob). Neste blogue não se mostram outfits ou detalhes (também conhecidos por trapinhos ou fatiotas). Também não se mostram fotografias da blogger (até para protecção ocular dos leitores). Este blogue pode ser tudo menos politicamente neutro e está em permanente campanha eleitoral pela oposição de esquerda, que deixou de existir no Parlamento. Mesmo quando se fala de outra coisa qualquer, porque tudo é política, até o Amor. Neste blogue normalmente não se fala de clubes nem de futebol porque é tema que me entedia enormemente - a não ser que seja para arreliar lampiões. Neste blogue não há bebés nem animais de estimação. Não há demagogia, não há juízos de valor nem lições de moral.

Neste blogue o que há são gritos, desabafos, opiniões, suspiros, alegrias, música, poesia, há flashes do quotidiano de uma pessoa banal e seus encontros e desencontros com pessoas especiais. Há pedaços de insignificâncias e dissertações de suma importância. Há rajadas de raivas e paixões, fragmentos de vidas reais cobertos de palavras tecidas em mantos frugais.

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