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Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

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Escrevi uma vez, ironizando, que “as mulheres são todas putas, e o pior que os homens podem ser é filhos da puta”. Contudo, pondo a ironia de parte, é uma frase que reflecte bem a dualidade de critérios em vigor na sociedade portuguesa (e obviamente não só, mas fiquemos por aqui, para já). Quem diz dualidade de critérios diz também diferenças sociais, diferenças no salário, no acesso a oportunidades de trabalho e de liderança, na carga de responsabilidades sociais e domésticas e até no compasso moral da sociedade. Já alguma coisa mudou nas últimas décadas, mas muito mais falta mudar. As mulheres têm de parar de vir em segundo lugar. E têm de parar de ter medo de serem feministas como se isso fosse uma coisa má. Tem de haver responsabilização e a paridade tem de estar na agenda de todos os partidos políticos democráticos. Os tabus e os preconceitos têm de ser derrubados, a bem ou a mal. O Estado tem de ser o primeiro a dar o exemplo, mas como se vê, não é o que acontece.

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A imagem acima é retirada de um acórdão do Tribunal da Relação do Porto. Pode parecer uma piada, ou algo do tempo do Estado Novo, mas é tristemente real e actual.

Uma mulher, perseguida e agredida pelo seu ex-amante e pelo seu ex-marido, viu a sentença dos dois ser resumida a multas e pena suspensa, com as seguintes patéticas “justificações”:

“O adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem. Sociedades existem em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte. Na Bíblia, podemos ler que a mulher adúltera deve ser punida com a morte."

Ficamos, portanto, a saber que:

  • a honra e a dignidade do homem são mais valiosas do que a honra e a dignidade (e a integridade física) da mulher;
  • o adultério é um crime mais grave do que perseguição, rapto, ameaças e agressões violentas (só que não está escrito na Lei);
  • foi a "deslealdade e imoralidade sexual" da vítima, e o facto da sociedade condenar fortemente o adultério da mulher que levam à compreensão da violência exercida pelo "homem traído, vexado e humilhado pela mulher";
  • os crimes passionais, quando cometidos por homens contra as mulheres, ainda têm uma margem de tolerância extra;
  • que ter sido perseguida, ameaçada e levado com uma moca com pregos não foi assim tão mau, porque noutro sítio podia ter sido apedrejada até à morte;
  • a Bíblia é uma fonte de jurisprudência;
  • há juízes bem conservados, que saíram do século XV e ainda estão em exercício de funções.

É inaceitável que o poder judicial perpetue as injustiças e violência contra as mulheres. Este juíz do Tribunal da Relação do Porto conseguiu não só colocar a culpa do lado da vítima, ou encontrar num caso extraconjugal a justificação para atenuar a pena criminal de dois agressores, como ainda colocou muita gente a beliscar-se para ter a certeza de que acordou em 2017. Além da urticária e asco profundo, isto causa-me uma série de dúvidas que gostaria mesmo de ver respondidas.

Com que direito se arrastam textos religiosos para ilustrar ou justificar um acórdão da justiça num estado supostamente laico? Como é que um juiz pode exibir, sem pingo de vergonha na cara, o seu fétido machismo e trazê-lo para a justiça, afectando directamente a vida de outras pessoas?

Pergunta ainda mais premente: quando é que este anormal vai ser demitido?

 

Texto integral do acórdão.

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