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Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

origem

Por Nuno Francisco, no Jornal do Fundão


 


A infelicidade dos dias vencida naquele beijo. Expiação de horas infames, de reflexos ingratos de um despudorado adeus. Tudo esvaziado num frémito naquela insignificância de mesa onde não cabiam quatro cotovelos e duas chávenas de café.


O reencontro deu, agora, ao tempo uma forma de interminável vagar, feito respingo de saudade emergida de um pretérito que, por fim, se vingava. Era a hora da justiça possível com as as armas que se tinha: o amor adiado. E que se considerava perdido, algures. Para sempre.


A ruína da crença começou naquele momento, algures em mil novecentos e noventa e qualquer coisa. Setembro. Sei o mês, mas não sei o ano. Sei, porque uma brisa de Outono encobriu o adeus. Sei que houve um “Adeus” sem choro. O dele e o dela. Fortes, mas transvestidos de mentira.


Era tudo uma mentira!


Éramos mentirosos!


Uma resignação, uma sobressaltada calma acabou por chegar porque ninguém se atreveu a dizer o que quer que fosse. Não fossem as lágrimas saltar. Como saltariam depois e depois e depois e depois e depois. Ao arrepio de testemunhas.


Lá fora, naquela poeirenta estrada, alheada do mundo, um encontro demasiado improvável para este dia que sobrevivia como qualquer outro, insípido, arrastando-se para o ocaso. Também aqui dentro deste café perdido nos desertos da memória, estávamos alheados. Víamos, agora, lá fora os desencantos moribundos de um passado de equívocos, um qualquer tormento que rola por entre tufos embrenhados em vento.


Corre vento, corre.


Repousamos em terra de ninguém, lá fora o carro, a denunciar a emergência do encontro. O acaso chamou a atenção para este cadillac vermelho, sempre descapotado, imutável desde a última vez que nos vimos, ainda felizes, a anteceder o adeus.


Era o carro dela, como se pudesse não parar...


- Ainda tens as mesmas rotinas... enganar a tristeza em grande velocidade, furiosamente de cabelo ao vento por esta estrada feita de pó, tragada pelo deserto...


- E tu? Não te vejo nesta estrada a fintar as tristezas...


- Foi o acaso, ou... não, não sei... precisava de voltar a passar aqui... porque sim...


Era teu o carro, a tua matrícula, era tudo como sempre fora. Menos a idade. Estamos mais velhos. Mais maltratados, mais unânimes e aconchegados à mediocridade. Estamos menos dispostos a mudar o que quer que seja pelo que quer que seja. Mas parei.


Como poderia não parar?


Naquele café à beira estrada, estava o cadillac vermelho que não via há mais de dez anos. Desde que conheci o último dia de felicidade.


- És feliz?


- Como vês, continuo a fazer esta estrada....


- E tu.... És feliz?


- Estou refém da saudade...

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