Dramáticos e roxos, os pés não mexem. Enterrei-os fundo, sob vários centímetros de neve, que me tolhem a sensibilidade das barrigas das pernas. Os joelhos, engelhados, parecem os dum elefante morto, deixado ao abandono das suas perpétuas memórias. Os braços abertos, palmas das mãos viradas para fora como se dum crucificado se tratasse, presas por correias de angústia à pobreza nua duma cruz sem traves nem pregos nem madeira nem cor. Os cabelos, uma bandeira, sem pátria nem conquistas, apenas a dançar revoltos com a geada. Cobre-me desde os seios até meio das coxas uma velha e rota casca de sobreiro, cortiça mortiça, enrugada, carcaça duma vida outrora suculenta e audaz. Oca, lambida por húmidas putrefacções, oculta reflexos de si própria no vazio instalado. No rosto apenas traços muito grossos: dois cerrados no local onde deviam brilhar os olhos, mortos e abandonados faróis enferrujados de mares imensos, salgados e que escorrem para dentro; outro, mero agrafe do sorriso, para sempre toldado, impedido mesmo de dar espaço a cantos chorados, uivos de solidão.
Assim sou eu, hoje, sem vontade de avançar ou de recuar, sustendo-me do ar e da força que me mantém, firme, de pé, contra tudo e todos. Que posso achar-me vazia, oca, num absurdo desespero, sem apoio de nenhum dos pontos cardeais; posso ter perdido a razão, a emoção, o abraço que me embalou ou o beijo que me amou, mas não deixarei de Ser, sombra talvez do que fui, mas cá estou, de pé, como os bravos. A rendição é inequacionável. Hoje, sobreviver, com os sangues que ainda correm, para nunca deixar de Ser e amanhã, talvez, Voar.