Crónica: A Gripe Ignorante Ventania 24.01.19 [Crónica publicada no Repórter Sombra]A indústria farmacêutica é uma das mais lucrativas do mundo, e um dos tentáculos mais cruéis do capitalismo. Mercantilizar um direito fundamental como é o acesso à saúde é uma opressão brutal sobre todos os que não têm condições económicas para se proteger, tratar ou curar. Este é um ponto basilar de toda e qualquer discussão sobre saúde e que não pode ficar arredado do pensamento. O capitalismo mata gente, ponto. Mata muita gente. Mantém doente e incapacitada e em sofrimento agonizante muita gente. Limita a liberdade, a mobilidade, a capacidade de trabalho (logo, a subsistência) e o bem-estar de ainda muito mais gente.Posto isto, não deixa de ser espantoso que se criem resistências patetas, baseadas em ignorância, medo, mitos e desinformação, talvez laxismo, a soluções preventivas que são acessíveis. A corrente New Wave de anti-vaxxers que coloca em causa não só a própria vida como a saúde pública é um perigo global que já trouxe de volta doenças que tinham sido dadas como erradicadas (como o sarampo) e vai permitindo à selecção natural actuar de formas que já deviam estar em desuso.Tomemos o exemplo da vacina da gripe. Em Portugal, esta vacina é disponibilizada gratuitamente para uma parte das pessoas consideradas grupos de risco e é uma protecção eficaz contra um vírus muito mutável, que causa uma doença extremamente comum, potencialmente debilitante e mesmo mortífera se existirem complicações. Mas proliferam vários mitos sobre a mesma e a maior parte das pessoas dispensa a vacina, mesmo podendo adquiri-la sem esforço ou gratuitamente. Já ouvi desculpas como “as vacinas são para os velhinhos” ou “se apanhar a vacina é certo que fico doente a seguir”. Não, as vacinas não são só para os velhinhos. São indispensáveis a todos quantos fazem parte de grupos de risco (pela fraca imunidade ou pela exposição acrescida, por exemplo), de todas as idades, mas são também úteis a todos os outros, já que não é raro os surtos de gripe tomarem características epidémicas. E não, a vacina da gripe não contém vírus activos, pelo que não vai provocar gripe a quem a toma. Não vai é a tempo de evitá-la caso o contágio se tenha dado antes (o período de incubação varia entre um e cinco dias).É também comum, em Portugal, empresas de média ou grande dimensão facultarem aos seus trabalhadores a vacina contra a gripe (não porque sejam beneméritos, mas porque pretendem evitar o absentismo e quebra de produtividade dos trabalhadores doentes). Mas graças aos mitos e desinformação, grande parte dos trabalhadores recusa esta protecção. Destes, a maioria está, pouco tempo depois, a tossir e a espirrar nas salas e corredores (que ficam passíveis de confusão com um sanatório), para cima dos equipamentos comuns, a usar as mesmas maçanetas e torneiras que toda a gente. Ou seja, a potenciar o contágio. E isto também porque ninguém quer perder o salário de uns dias “só” por causa de uma gripe. Ao contrário do que alguns patrões e chefias pensam, os trabalhadores não vão trabalhar doentes por “amor à camisola” e extrema dedicação, mas porque precisam do salário.A falta de civismo também é um dos factores de propagação da doença. Seja numa sala de espera de um hospital ou centro de saúde ou em qualquer transporte público, é quase um milagre não apanhar uma doença contagiosa. Pessoas de todas as idades a espirrarem alarvemente e a tossirem sem taparem a boca, além de uma tremenda falta de maneiras (não no sentido de etiqueta, mas no sentido de respeito pelo espaço individual) é um cenário comum que demonstra um desprezo generalizado pelas mais básicas regras de higiene, que se junta ainda à falta de hábito de lavar as mãos e à pouca vontade quando só há água fria nas torneiras e está um frio de rachar. As normas sociais que impelem aos apertos de mãos e beijinhos são o golpe final para concluir o cenário de surtos de gripe uma ou duas vezes por ano.O investimento da Direcção Geral da Saúde em prevenção da gripe existe, mas sem particular notoriedade, pelo menos do ponto de vista do cidadão comum. No Sistema Nacional de Saúde, a falta generalizada de equipamentos suficientes e eficientes para cobrir as necessidades das populações (hospitais e centros de saúde com serviços de atendimento permanente, para começar) levam a salas de urgências a abarrotar e a tempos de espera intoleráveis, em que a exposição a agentes infecciosos aumenta consideravelmente. Um apontamento muito positivo é aqui devido à Linha Saúde 24 (808 24 24 24), que disponibiliza de forma gratuita aconselhamento cuidado e encaminhamento dos utentes.Quem ganha com tudo isto? A indústria farmacêutica de que estamos reféns, que vende a solução preventiva e vende uma miríade de remédios para tratar cada um dos sintomas (um para a febre, um para a tosse, um para as dores de garganta…). Depois do enorme embuste que foram as vacinas contra a Gripe A (vírus H1N1) há nove anos, para responder a um alarmismo sobredimensionado, mesmo os mais ingénuos já perceberam que não estamos a falar só de uma relação económica simples entre procura e oferta. Estamos a falar de um negócio multimilionário assente num complexo sistema de interesses que joga com dinheiros públicos, privados e com a saúde das populações. Faz-nos pensar, por exemplo, se terá sido só coincidência que num inverno como este, em que o pico esperado do surto de gripe tardou mais do que o habitual, as vacinas contra a gripe tenham estado genericamente esgotadas até ao final de Dezembro...A saúde das pessoas, que deveria ser prioritária ao longo de todo o processo (da informação à prevenção, do diagnóstico ao tratamento) é uma espécie de efeito secundário neste enredo em que cada um de nós é apenas mais um consumidor. Deixar a saúde nas mãos gananciosas do grande capital significa que são as leis do mercado que controlam tudo. As soluções que curam não são rentáveis para as farmacêuticas, pois estariam a anular rendimentos futuros. Assim, o interesse da indústria não é produzir curas; é manter os doentes dependentes de medicação a longo prazo com drogas “cronificadoras” das doenças. Por outro lado, as doenças que afectam sobretudo populações com pouco poder de compra vão sendo negligenciadas e o investimento em investigação e desenvolvimento de medicamentos foca-se nas maleitas do mundo ocidental e desenvolvido. Não é por mero e infeliz acaso nem por inépcia da ciência que doenças devastadoras como a SIDA, malária ou tuberculose não tenham ainda curas definitivas e vacinas completamente eficazes conhecidas, ou que as populações dos países em desenvolvimento só pareçam ser apelativas para a indústria do ponto de vista dos ensaios clínicos.Entre a ignorância que rejeita a vacinação e empola surtos de doenças erradicadas ou ‘apenas’ de gripe, e a ignorância da alienação e passividade perante o controlo da civilização por parte do poder económico, há pontos comuns e é nestes que devemos, colectiva e individualmente, reflectir. A ignorância, como o vírus da gripe, é contagiosa, propaga-se rápida e facilmente e não se cura com antibióticos. Além disso, inicialmente aparenta ser uma perturbação sem grandes consequências, passageira, mas abre a porta a complicações muito maiores e gravosas. Mas ao contrário do vírus, infelizmente, não há vacina que nos proteja contra a “infecção”. Cabe a cada um de nós fazer a profilaxia individual (informação, raciocínio crítico e higiene intelectual) e estimular os outros a fazerem o mesmo.Da mesma forma que as doenças são incuráveis só até se descobrir a cura, também os poderes só são invencíveis até serem derrotados. Tags:crónicaopiniãopolíticarepórter sombrasaúde link do post comentar favorito Mais para ler