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Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

origem

Como é que se perde um amigo? Falo de uma perda de amigos vivos, falo do fim da amizade, de uma árvore seca, sem seiva ou lume; falo de ficar um vazio, seco e frio, onde antes estava uma super-cola imaterial a unir duas pessoas. Perder um amigo é diferente de um afastamento, de um desgaste, de uma fase mais complicada, de um amuo ou zanga; nestes casos tudo pode voltar naturalmente ao que já foi, ou pode só manter-se esta distância feita de indulgência mútua, sem nunca se ter passado pela ruptura, pelo sentimento de perda. Há amizades que se diluem no tempo, nas distâncias, nas circunstâncias da vida, nos desencontros, nas diferenças, nos desânimos, nas derivas lentas. Mas falo de ter algo raro, bonito e precioso num momento, e de repente não mais o encontrar. Falo de faltar um chão que era sustento seguro, de se ser dispensado do lugar de presença constante e incontornável. Falo de uma dor repentina como um trovão, insustentável, dilacerante, paralisante.

 

Perder, diz-nos o dicionário, é “deixar de ter alguma coisa útil, proveitosa ou necessária, que se possuía, por culpa ou descuido do possuidor, ou por contingência ou desgraça.” E amigo é “quem sente amizade por ou está ligado por uma afeição recíproca”. Perder um Amigo é, portanto, uma afecção disruptiva da reciprocidade de um afecto, por culpa ou descuido, contingência ou desgraça.

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Confesso que sou nova nisto de perder amigos e talvez por isso me custe tanto a compreender. Já deixei ir alguns amigos, quedei-me passiva perante as imposições de algumas distâncias ou permiti que desgastes e frustrações alargassem os elos, por negligência ou circunstâncias várias. Também já coloquei em pausa Amizades importantes, por motivos de força maior, mas os elos não quebraram e estas uniões retomaram o seu lugar ou retomarão um dia. O afecto e todo o muito que nos unia continua a existir, intacto. Na hora de recomeçar, pega-se no ponto onde se ficou, basta sacudir e desempoeirar as marcas do tempo, a cumplicidade retorna e a partilha também.

 

Acreditava, convictamente, que assim fossem todas as Amizades dignas de maiúscula, invencíveis, indestrutíveis, à prova de bala e de terramotos, de diferenças e discussões. Está a vida a querer ensinar-me que, às vezes, não são. Não consigo entender, pelo que me custa a aceitar.

 

Perder um Amigo é algo que tenho sérias dificuldades em digerir emocionalmente. A ideia da Amizade terminar é-me tão peregrina e irracional como a ideia do Amor morrer. O Amor nunca morre, ou não era Amor; pode é ficar arrumado numa gaveta que custa a abrir, perra, desarrumada e com coisas enroladas no fundo. Tenho, aliás, uma dificuldade acrescida em distinguir a Amizade do Amor, desde que se tornou clara a pluralidade de cada um e a separação do Desejo como independente e autónomo. Amizade e Amor são, se não sinónimos, pelo menos irmãos gémeos, ou as duas faces de um extraordinário afecto abnegado. A Amizade não é senão Amor cristalizado, sem as idealizações palermas que a sociedade nos vai impingindo como modelo de amor romântico. E com que direito ou propriedade quebra e se evade do coração, num apagão? Como se define ou marca o momento em que o Amigo que tínhamos nos píncaros desaparece, passa a pessoa insignificante, desprezível, um lixo indigno de uma palavra, uma resposta ou explicação? Se a Amizade existia de facto, genuína, se não era fingida ou forçada ou mera conveniência, como pode ser irrelevante no minuto seguinte, sacudida como um incómodo, desprovida de uma aberta para reconciliação, apagada como um erro escrito a lápis, sem deixar marcas?

 

Há amigos e há Amigos. As grandes diferenças são a expectativa e a intensidade. Dos amigos esperamos uma série de coisas que estamos dispostos a reciprocar, numa simbiose fluida e agradável, conveniente a ambos. Esperamos e damos de bom grado companhia, apoio, diversão, honestidade. Brindamos e rimos, mas talvez não liguemos às quatro da manhã porque não podíamos esperar para dizer que tivémos uma epifania. Contamos alguns segredos, mas provavelmente não colocamos a nu toda a porcaria que fizemos e o mal que (nos) causámos quando atingimos o ponto mais baixo da vida. Confiamos que nos desenrasquem quando precisarmos, como os tiramos de apertos variados, mas dificilmente lhes confiamos a vida. Pedimos ajuda, mas talvez não peçamos ou ofereçamos um abraço apenas porque sim, sem carecer de justificações. Vamos a festas e a concertos juntos, mas não é em qualquer ombro que soltamos as lágrimas naquela canção que nos revolve as entranhas da memória. Conversamos e escutamos, mas não lemos nos silêncios e nos olhares tudo o que não se verbaliza, porque a rotação a que giramos não é síncrona a todos os momentos. Os amigos vêm e vão, mas os Amigos não.

 

Dos e aos Amigos, esperamos tudo e damos tudo, sem pestanejar, sem equacionar prós e contras, sem limites ou muros, sem pruridos nem diversões. Não há cabimento para calculismos quando o que nos move é o Amor, o bem-estar e felicidade da outra pessoa. Quando se sela uma relação realmente profunda, quando as almas se reconhecem e a ligação é inexplicavelmente forte, especial e sem reservas, nem de confiança, nem de verdade, nunca se espera menos do que uma robustez bilateral, equitativa e inabalável. Já não é uma simbiose mutualista, é uma relação de dependência, que não existe sem o outro, não se sustém unilateralmente, porque o outro é pilar e trave-mestra. Quem tem um Amigo nunca está só, desconhece o desamparo.

 

Um Amigo faz parte integrante de quem somos, se não está bem nós não estamos bem, e fazemos das tripas coração para que esteja, damos a pele para o proteger. Um Amigo dá raspanetes, chama à razão, grita até ouvirmos, mas nunca arreda pé do nosso lado, nunca nos vira as costas. Um Amigo apoia-nos naquela decisão que implorou para não tomarmos porque sabia que era um erro e nos ia magoar, e quando nos estatelamos no chão, em vez de dizer “eu bem te disse”, dá um abraço apertado e assegura-nos que tudo se irá compor. Um Amigo conhece a nossa face mais obscura e ainda assim gosta de nós. Um Amigo não se inibe de nos dizer sempre toda a verdade, ainda que a verdade nos doa. Um Amigo defende-nos com unhas e dentes, luta nas trincheiras a nosso lado, lambe as nossas feridas e enxuga as nossas lágrimas. Um Amigo dá o impulso que precisamos para saltar, salta de mão dada connosco e é o nosso pára-quedas. Um Amigo sabe que não somos perfeitos e perdoa os nossos erros, mesmo se fica desiludido e triste. Um Amigo aplaude e rejubila com os nossos sucessos como se fossem dele, porque também são. Um Amigo não quebra promessas. Um Amigo não nos abandona. Talvez a minha definição de Amigo seja demasiado ambiciosa, mas é a única que conheço.

 

Perder um amigo é triste. Perder um Amigo é uma tragédia. Perder um Amigo é ficar coxo do coração, com um pedaço gigante e essencial em falta. É ficar com a respiração estrangulada, bradar por justiça no vazio e perder o norte. É andar meses a inventar justificações plausíveis, bodes expiatórios e teorias rebuscadas que possam justificar o desprezo, o desamor, as agressões, de quem continuamos a só ver luz.

 

Perdi um Amigo. Perdi um Amigo e não sei porquê. Culpa ou descuido, contingência ou desgraça. Atiro aviões de papel que nunca o atingem, palavras sem retorno, que nunca o encontram. Perdi um Amigo, que amo do princípio ao fim. Devo ter errado, sem saber em que fatal ocasião ousei cometer o pecado crasso, e o perdão que nunca neguei deve ter um preço que não consigo cobrir. Perdi um grande Amigo e foi o desgosto da minha vida, numa vida pouco árida de desgostos e dramas. Um peito cheio ficou desbotado, retalhado, inquinado pela queimadura de gelo. Perdi um Amigo, cúmplice, parceiro, e morri mais do que um pouco. Não passa um dia em que não sinta a sua falta, em que não evite a saudade que me mareja os olhos e aperta a garganta. Perdi um Amigo que amo e perdi-me, que perder um Amigo é uma morte em vida.