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Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

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Nota prévia: Mais um post sério, desculpem lá qualquer coisinha mas às vezes tem de ser. 

Quando se tem dores crónicas é difícil estar de bom humor; a persistência da dor torna-nos pouco tolerantes, cáusticos e arrogantes, ou o que eu chamo Síndrome do Dr. House. Pelo menos estar sempre de bom humor, com vivacidade e energia para enfrentar cada manhã, com vontade de encarar o mundo de forma ligeira e jovial. (Se alguém por aí conseguir, faça o favor de partilhar a receita mágica.) A carga emocional e psíquica de viver permanentemente com dores (sempre, todos os dias, a todas as horas), umas vezes mais, outras vezes menos - mas sempre - custa, muitas vezes, mais do que a tolerância física à dor. Às tantas, as dores físicas deixam de contar como dor, passam a ser o "normal". Ajuda ter uma tolerância bastante grande de origem (felizmente, sempre tive; até não ter outra escolha senão tomar uma carrada de drogas diariamente, era daquelas pessoas que prefere aguentar sem tomar uma aspirina ou paracetamol que fosse - e depois soube o que era ter dores insuportáveis, completamente paralisantes, e o caso mudou de figura).

Falo por experiência própria, mas sem grandes autocomiserações porque, apesar de ainda não ser capaz de contornar sempre os efeitos "de dentro para fora" das doenças, levo uma vida normal (existem algumas restrições físicas, mas para já não me impedem de sair todos os dias para trabalhar, nem fazem com que alguém saiba o que se passa dentro de mim só por olhar). Prometi a mim própria que seria assim desde a primeira vez em que surgiram, em sequência, as palavras "doença crónica auto-imune", que não iria viver em função da doença - devo-o à minha dignidade e auto-respeito.

 

Tenho um exemplo próximo na família de alguém que se deixou vencer por uma doença crónica. E não é que a doença permaneça activa, trata-se de uma pessoa que teve um cancro e está em remissão há cerca de 25 anos, sem efeitos negativos por aí além, fisiologicamente falando. A coisa esteve muito complicada, arrastou-se, foi dramático, foi traumatizante, mas lá acabou por dar tréguas, e tudo faria crer que a doença tinha sido derrotada. Só que aquela pessoa passou a definir-se como quem teve um cancro (nem sequer diz cancro, a palavra maldita), ganhou medos de tudo (em última análise, de morrer e, portanto, de viver), tornou-se hipocondríaca, fraca, perdeu a garra. Ganhou psicoses e a fuga e lamentação como resposta primeira para todos os obstáculos. E por isso sim, a doença ganhou, a pessoa deixou-se sair vencida.

 

Este meu testemunho, se de mais não servir a ninguém, servirá como lembrete a mim mesma de que a minha vida não começa nem acaba na doença. Tenho demasiado por viver, por viajar, por amar, por escrever, para deixar que uns anti-corpos desnorteados me ditem o destino e me privem de viver a minha vida como eu bem entender. Era o que faltava! Eu não tenho medo de quase nada (aprendi que o medo atrapalha demasiado e tenho mais e melhor onde gastar energias), mas tenho medo de não viver, de me entregar ao que não posso alcançar e nem sequer tentar chegar aonde mereço. Eu não vou ser derrotada!

 

É uma derrota usar a dor e a doença como escudo para as dificuldades. É uma derrota a pessoa com dor crónica ser definida pela dor que carrega. É uma derrota quando as outras pessoas te dizem "coitada" quando se apercebem do cerne da questão. A última pessoa que exclamou "coitadinha" muitas, demasiadas vezes, foi uma médica. Alguém que deveria estar habituado a lidar com coisas bem mais dramáticas do que umas doenças crónicas que são debilitantes, sim, mas com que se vai aprendendo a viver no dia-a-dia, com algumas limitações, mas contornáveis. Isso, que parecendo que não, até podia ser uma forma de demonstrar empatia, feriu-me o ego. Remeteu-me imediatamente para a ocasião em que um professor duma pós graduação que fiz me deu os parabéns por ter tido uma nota que ele achou boa e, do modo que foi percebido pelo modo como o disse, não achou que eu conseguisse ter. Fiquei furiosa, como fico sempre que me tentam nivelar por baixo. Na vida como no percurso académico, não me inscrevo para me conformar com um 17, com uma vida boa "para quem tem tantos problemas"! Vou sempre tentar e dar o meu melhor para chegar ao 20, à vida estupenda que sempre desejei, com tudo a que tenho direito.

 

Eu não digo, normalmente, que tenho dores. Não me queixo. Quanto menos me queixar e falar disso menos me lembro que estas dores são minhas e não vão passar. Nunca. E menos os outros vão ter presente a imagem de mim como a rapariga que tem aquelas doenças de nome esquisito.

 

As dores, as doenças, não me definem. Eu não sou a rapariga que tem EA e hipotiroidismo e próteses de titânio pela coluna fora. Não gosto de dizer às pessoas que doenças são as que me fazem tomar uma mão cheia de medicamentos logo de manhã ou me impedem de participar em certas actividades. Por muito que custe ficar de parte, por muito difícil que seja, por vezes, lidar com uma série de preconceitos e rótulos (o outro lado das doenças que não se vêem)... É bastante preferível ser a rapariga irritadiça que quando está com os azeites diz tudo, como os malucos, é brusca, antipática, demasiado honesta e deixa algumas pessoas de boca aberta ("chocadas", ouvi dizer). Prefiro mesmo, mil vezes, ter fama de ser arrogante e ter mau feitio do ser a desgraçadinha. Rio-me todos os dias, sorrio todos os dias, espanto-me e comovo-me com a beleza extraordinária da vida todos os dias. Mesmo nos dias em que tenho vontade de gritar com toda a gente. E por isso, venço, todos os dias.

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