Não é demais repetir até à exaustão porque há muito mais para dizer, para viver, ouvir e sentir.
É oficial, estou apaixonada pelo Salvador Sobral. Pela voz, firme e cristalina, pela alma, pelo ritmo, pela simplicidade, pela espontaneidade, pela postura perante a exposição mediática, pela rejeição do aproveitamento da doença, pela brutal honestidade, pela graça do seu jeito despreocupado. Pela imensidão do talento concentrado num só ser humano. Arrebatador.
O Salvador é um dos grandes, dos maiores, dos fora de série. Todo ele música, todo ele sentimento. Tão bom que chega a ser dramático, doloroso até. De ir às lágrimas, literalmente. "Voz de anjo", dizem. Coração de anjo, digo eu. Frágil, sofrido, leve, e com a força de uma trovoada. Não deixa ninguém indiferente, ama-se ou odeia-se. Só com a voz e a capacidade de reinventar cada canção em cada actuação, simples ou gutural, nada nesta criatura é normal, medíocre ou morno. Tudo é beleza pura.
(Posso ser parcial, e sou, que quando gosto sou exagerada, tudo-ou-nada kind of love, mas para mim o Salvador está hoje ombro a ombro, mano a mano, com o Benjamin Clementine. Acima deles, de entre os vivos, só o Mestre Jorge Palma, único e inigualável e para sempre o melhor do mundo.)
Não me canso de ouvir o disco (Excuse Me), não me canso de repetir o maravilhoso concerto a que tivémos o privilégio de assistir ao vivo, no Fórum Municipal do Seixal, e que passou na madrugada de sábado passado na RTP 1. Com a agravante de toda a febre da Eurovisão estar ao rubro, com uma enorme expectativa e mediatismo em torno da canção portuguesa, sorvo os vídeos dos ensaios, das entrevistas e das opiniões. E isto tem de ser dito com ênfase na real distância que me separa de todo o fenómeno eurovisivo. Eu, que já fui daquelas pessoas para quem o Festival da Canção era um "happening" musical todos os anos e que até já estive para compôr uma canção com uns amigos para participar (há 7 ou 8 anos), nos últimos tempos tenho ignorado o evento e, lamento constatar, apenas como consequência da pobre qualidade das canções escolhidas. Portanto, para deixar bem claro: que eu acorde com o Nada que esperar ou o Change a tocar dentro da cabeça é mérito integral do génio do Salvador Sobral; e é perturbador e é uma explosão de alegria.
Em dia de semifinal lá na Eurovisão, não deixa de ser curioso observar alguns fenómenos tão "tugas" - dos tugas que vivem de redes sociais, de CM TV, que se exaltam com as vitórias e derrotas futebolísticas, os que acham que Fátima é um lugar sagrado que serve para fazer e pagar promessas, e a volatilidade das suas marés. Como as pessoas passam de bestas a bestiais num sopro!... Os que torceram o nariz à canção "Amar pelos dois", seja por não percebem um caracol de música ou por acharem que a canção não é "festivaleira" o suficiente, parece que agora andam ansiosos e em vias de mudar de opinião porque a canção que representa Portugal na Eurovisão está bem cotada e tudo parece indicar que vai ter um bom desempenho em termos de classificação. Passeando um pouco pelo YouTube é fácil de perceber a quantidade de gente, de todas as nacionalidades, arrebatada pela canção e pela interpretação. Não é para menos, a canção é realmente perfeita. Per-fei-ta.
Mas nada disso interessa, o resultado da Eurovisão pode ser o que for, que já ganhámos. O Salvador Sobral ganhou projecção internacional e nós todos ganhámos um portento musical. Um dos grandes, dos maiores, dos fora de série.
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Ontem decidimos aproveitar a tarde depois de irmos almoçar fora (no âmbito da Restaurant Week) para irmos ao cinema. Não nos lembrámos sequer que era a noite dos Óscares e quando chegámos ao Corte Inglès a fila para comprar bilhetes era gigante. Tínhamos decidido ver o Moonlight, mas como já estávamos em cima da hora começámos a ver as alternativas. Não foi preciso, o serviço nas bilheteiras foi bastante rápido (e muito simpático, o que é de louvar sobretudo numa tarde de confusão e enorme afluência, já que o rapaz que nos atendeu não só forneceu informação extra, nos deu um trato exemplar e sempre com um tom de voz calmíssimo e caloroso, que é coisa que aprecio em pessoas no atendimento público).
Sala cheia mas não lotada, um caramelo sentado a meu lado não parou de falar durante todas as apresentações, fartou-se de usar o telemóvel (e iluminar o meu campo de visão) durante o filme e chegou mesmo a sair durante um longo período, dando-me a vã esperança de um resto de filme tranquilo, mas depois voltou.
Bom, o que interessa: o filme.
Não tendo visto vários dos restantes candidatos aos Óscares, arrisco-me a assegurar que a vitória de Óscar de Melhor Filme foi muitíssimo justa.
A fotografia belíssima, a banda sonora excelente, os actores fenomenais. Mesmo. A realização muito envolvente e inteligente, cheia de simbolismos não óbvios. E possivelmente o melhor de todo o conjunto: o argumento. Sem haver nenhuma história rebuscada, "só" a vida comum de um rapaz comum que cresce no seio de uma comunidade comum. Por comum aqui entende-se cheia de violência, dificuldades, pai ausente ou desconhecido, mãe abusiva, em que a droga é a forma de vida de todos à sua volta, sem surpresas, sem saída esperada do círculo vicioso. Não há grandes picos dramáticos, não há epifanias que mudem a vida de ninguém, há apenas clichés atrás de clichés, e talvez por isso o filme seja tão tocante, tão fácil de ver na realidade de todos os dias. Moonlight toca-nos profundamente por ser tão crú e real. Os diálogos não são poéticos, são cheios de vernáculo e dos desvios de todos os dias. São sinceros.
Inesperadamente - quase, trata-se de uma história de amor, tratada com delicadeza, sem alarido, com elegância. E, de uma assentada, confronta-nos com todos os estigmas, todas as dores, as causas e consequências de percursos de vida que tantas vezes são julgados sem pudor, sem conhecimento.
A narrativa surge-nos em três janelas de tempo, em que o personagem principal é interpretado por 3 pessoas, de idades distintas, e que até têm nomes distintos. Entre os três períodos retratados, o vazio, porque na realidade não é preciso mostrar mais nada, de tão inevitável que o curso da história é. Isto, dito assim, parece curto, parece escasso, incompleto, mas o que é, é arte.
A minha primeira reacção quando o filme terminou foi dizer: "gostei, muito, mas faltava-me mais um bocadinho de narrativa." Isto porque os finais abertos me deixam sempre uma ansiedadezinha a latejar. Mas só podia ser assim, não faria sentido ser de outra maneira. A ansiedade, o facto do filme continuar a martelar dentro da minha cabeça, de inquietar, é a evidência de que se trata de um grande, grande filme.
O actor de Chiron adolescente, Ashton Sanders, quanto a mim, mereceria uma nomeação para melhor actor. Achei o desempenho abolutamente arrebatador. O melhor actor secundário, Mahershala Ali, que já conhecia de outro desempenho exímio em House of Cards, merece ter sido premiado. Uma surpresa que só se me revelou aquando do genérico, foi o facto de Teresa ter ser interpretada por Janelle Monáe (que não reconheci durante o filme), que conhecia apenas enquanto cantora extraordinária que tive a sorte de ver há uns anos num Vodafone Mexefest a, quase literalmente, mandar o Tivoli abaixo.
Muito mais poderia comentar sobre Moonlight, mas não querendo fazer spoilers a quem ainda não viu, deixem-me só apontar a curiosidade de, no ano seguinte a protestos e polémicas intensas sobre o facto de não existirem negros nomeados para os Óscares 2016, o grande vencedor ser um filme em que não surge um único personagem branco, o que poderá (e será que deve?) ter um acrescido significado político. Se ainda não viram, corram a ver.