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Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

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Muitos trazem cravos pendurados no peito aberto, cheio de orgulho do que não chegou a ser, murchas pétalas de uma liberdade tímida que se encolheu e resignou.

Desbotados, cravos murchos, cansados de uma luta que se venceu mas não medrou.

Outros empunham cravos ao alto como tochas, que de luz se vestem as flores quando os olhos estavam já acostumados a uma escuridão sufocante. Contra o azul do céu, um cheirinho de ousadia, palavras de ordem a romper décadas de silêncios mais fortes.

Eu carrego um cravo às costas. Não como fardo, mas como desígnio, desejo, propósito maior. Destino e rota incontornável, que canta o som de grilhões caídos e alvoradas por estrear nos sonhos de muitos olhos, nas lágrimas de muitos mares.

Não é mais bravo o meu cravo do que os outros, rubros heróis que fizeram de espingardas jarras. O cravo que carrego, que me empurra e me sustenta é hoje, é agora, é urgente. Os cravos da madrugada mais antiga do que eu, os cravos que já foram, esses são eternos. São os cravos das canções e da História, de um final quase feliz que podia ter sido um princípio de tudo, tivesse criado raízes.

O meu cravo negro e triste, traído, posto de parte, adiado, não se resigna a esperar mais, não cede e não cai. É cravo novo, viçoso, a cada manhã regado com lutas, com povo e materializadas utopias. Cravo poema, esperança em flor, com pressa de crescer e ser erguido vitorioso. Branco paz, branco puro, branco futuro. Negro noite, negro tormenta, definitivo luto. Meu cravo vivo, pulsante, vermelho sangue, vermelho liberdade, vermelho punho erguido, vermelho grito.

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Publicado originalmente no Repórter Sombra, no dia 29/04/2019.

Foi Salgueiro Maia, capitão de Abril, que o disse há quarenta e cinco anos. A ditadura foi derrubada e a democracia teve, depois de quarenta e um anos, as portas finalmente abertas.

 

Desobedecer a leis de regimes opressores, ditaduras, ou quando as leis não servem ao povo mas a quem o explora, é um direito e um dever de quem tem a justiça como ideal.

 

O sistema judicial é feito para proteger a classe dominante e manter os poderes. Não nos iludamos, as leis só servirão o povo quando o povo mais ordenar efectivamente. Até lá, a lei é burguesa e protege o poder, ou seja, o capital, ou seja, os ricos, patrões e empresas.

 

A noção de legalidade não é em nada paralela a uma mensurabilidade do que é certo face ao que é errado (em termos de justiça e não em termos morais). Disso mesmo são evidências históricas as inúmeras validações legais de atentados contra a humanidade. A escravatura era legal, o holocausto foi legal, o apartheid na África do Sul era legal. A segregação racial nos Estados Unidos da América era perfeitamente legítima perante a legislação então em vigor, da mesma forma que o voto às mulheres era negado ou o trabalho infantil de doze horas diárias na Inglaterra em plena Revolução Industrial era prática corrente. Hoje mesmo, o casamento entre pessoas do mesmo género é duramente condenado em muitos pontos do globo (como se de um crime horrendo se tratasse), ou o adultério da mulher, por exemplo. Fica claro, portanto, que legalidade e justiça são conceitos afastados e só vagamente relacionados.

 

Os actos de desobediência civil podem ser tão pouco confrontativos como não pagar impostos, como fez Henry David Thoreau (o pioneiro a teorizar sobre o conceito) no século XIX, contra a escravidão e o financiamento da guerra contra o México, ou faltar às aulas como forma de protesto, ou ocupação de espaço público sem comunicação prévia às autoridades, bloqueando o trânsito, ou à ocupação ou danificação de propriedade privada. Por norma, a desobediência civil pauta-se por acções não violentas (embora o conceito de violência possa ser discutível), mas o seu impacto tem um efeito ampliado e provavelmente mais capaz de alertar e mudar mentalidades, sobretudo em tratando-se de acções massivas, repetidas, insistentes. Quando se sabe que se luta por justiça, por igualdade, por um mundo melhor, não há argumentos legais que demovam quem acredita; não há medo ou repressão capazes de calar a razão.

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Desobedecer é preciso. Num mundo repleto de injustiças, de violações de direitos humanos, de exploração dos mais fracos por parte dos mais fortes e de iminente colapso climático e ecológico, o problema maior é obedecer. É compactuar, pela inacção, com o sistema que causa e se alimenta das discrepâncias. Não é cumprindo ordeiramente as exigências dos mais poderosos que se muda alguma coisa do tanto que está errado. Não é com petições e abaixo-assinados que se alteram políticas ou que se revertem os efeitos do capitalismo selvagem que deixam tantos na miséria para muito poucos se tornarem cada vez mais ricos. Muitas vezes, nem sequer os protestos públicos, palavras de ordem e faixas se fazem notar o suficiente nas casas do poder, que continuam o seu caminho seguro de cilindrar as vidas de milhões de pessoas a troco de mais uns milhões nas contas bancárias, mais uma negociata bilionária a ser paga pelo bolso de quem já pouco tem. O agente de mudança real na sociedade, colocando de parte as opções violentas (que também só estão ao alcance das mesmas entidades políticas e económicas com meios para as concretizar e para sustentar uma organização robusta) ou, concedendo, com excesso de boa vontade, que as eleições democráticas possam realmente carregar um poder em que é natural e legítimo ser ou estar profundamente descrente, é a contestação massiva e organizada, a disrupção.

 

A desobediência é uma arma contra a opressão. A desobediência militar de um grupo de bravos derrubou a ditadura em Portugal em Abril de 1974. A desobediência civil é uma arma política de enorme potencial de mudança, que tem conseguido vitórias surpreendentes, desde as sufragistas aos movimentos pelos direitos civis americanos. Atente-se no exemplo de Greta Thunberg, a activista adolescente que fez da greve às aulas uma forma de unir meio mundo em torno da maior causa comum, ou o movimento internacional Rebelião de Extinção (Extinction Rebellion), na mesma luta pela justiça climática através de múltiplas acções directas não violentas de desobediência civil, em dezenas de cidades pelo mundo fora. Até onde se poderá ir se existirem inúmeras acções de desobediência civil, por todo o mundo, em sintonia em relação às suas reivindicações, a chamar à responsabilidade decisores políticos e poderes económicos, a alertar e despertar os cidadãos comuns para se juntarem às causas? Pequenas rebeliões locais, a multiplicarem-se a uma escala crescente, a crescerem e a deixarem de ser pequenas e locais para serem a grande escala e internacionais, a engrossarem as massas de uma mesma grande rebelião, serão um dia capazes de implementar uma autêntica revolução?

 

É difícil prever o que o futuro pode encerrar, mas é com esperança renovada nas vitórias dos movimentos sociopolíticos que se estão a erguer confiantes a exigir um mundo mais justo para todos que reside hoje a esperança na humanidade. Venceremos!

 

Crónica publicada originalmente a 16/04, no Repórter Sombra.

Cravos vermelhos. 25 de Abril sempre. Fascismo nunca mais. A minha favorita de sempre e que tenho como lema de vida e pilar fundamental do meu sistema de crenças: o Povo Unido jamais será vencido.

 

Nasci no seio de uma família de fazedores de Abril. Da geração que cresceu na ditadura, com muitas dificuldades - dificuldades sérias, é preciso explicar, que a palavra se banalizou. De avós operários das fábricas, sem instrução, sem casa própria, que viviam em águas furtadas sem casa-de-banho, que tinham de fazer duas sardinhas e um ovo esticar para alimentarem três bocas. O 25 de Abril trouxe possibilidades inegáveis de uma vida melhor, a capacidade de ambicionar algo mais, direitos, participação cívica, desenvolvimento pessoal. Já não era necessário entrar à socapa nas salas onde se reuniam membros dos partidos políticos clandestinos, atrás da sede do clube de futebol local. Os meus avós ousaram então, só então, sonhar com uma casita alugada, paga do salário deles, com quartos e cozinha e casa-de-banho, até um quintal para poderem semear uns legumes. Os meus pais ousaram encerrar o ciclo: casar e constituir a sua própria família, sem a condenação inevitável da pobreza, sem ser necessário mandar os filhos trabalhar ainda pré-adolescentes para ajudar ao sustento da casa.

 

Eu, tendo nascido anos depois, sinto-me filha de Abril. Tudo o que sou deve-se àquele momento em que homens e mulheres valentes ousaram derrubar o sistema e entregar o destino do país às mãos do povo. 

 

O 25 de Abril é o dia mais bonito. O cravo vermelho é a flor que toca todos os corações. 11155032_10204008002743919_252136526884919777_o.jp25sempre.jpg

 

A Democracia está longe de ser perfeita e está, para mal de todos nós, desvirtuada. Ao 41º aniversário da Revolução dos Cravos as notícias dão-nos conta de mais um vil atentado à liberdade de imprensa pelo arco da governação das últimas décadas, mais um retrocesso nas portas que Abril abriu. Apelo aqui à memória da ditadura, na 1ª ou 3ª pessoas, para que não se ceda nem mais um milímetro dos direitos arduamente conquistados há quatro décadas (salário mínimo, direito à educação e saúde gratuitas, igualdade de géneros, direito à greve, a férias, Segurança Social, etc., etc., etc.), porque ainda há muito a conquistar para que esta sociedade seja realmente justa.

Lembro-me de andar na escola primária, 3ª ou 4ª classe. Estávamos no Inverno, talvez Novembro ou Dezembro. O trabalho de casa era fazer uma redacção sobre o nosso feriado preferido. Inevitavelmente, uns 25 dos 30 meninos escreveram sobre o Natal, a paz, a família, os doces, as prendas, as férias da escola. Eu escrevi sobre o 25 de Abril. Escrevi sobre fotografias que tinha visto de cravos nas espingardas e de soldados amigos do povo, que ganharam aos mauzões que prejudicavam as pessoas. Juro por tudo que nunca, até hoje, ninguém da minha família tentou influenciar as minhas opções políticas (ou religiosas, for that matter), nunca fui brainwashed para pensar assim ou assado. O que naquela altura sabia sobre o 25 de Abril era o que via na televisão a preto e branco da sala e o que me iam respondendo às muitas perguntas. Lembro-me de ouvir os meus avós falarem do "antes do 25 de Abril", de quando tinham para o jantar de três um ovo e uma sardinha, tomavam banho num alguidar e viviam por favor na casa duma irmã. Lembro-me das dezenas de cartas guardadas no armário da sala da minha avó, trocadas entre os meus pais quando namoravam, ele no ultramar, ela a trabalhar em lojas da Baixa desde os 13 anos, em que se falava da guerra e do regime e se sonhava com um futuro. Lembro-me de acreditar que éramos vencedores de qualquer coisa, que o 25 de Abril tinha sido um triunfo dos bons sobre os maus, da justiça, e que dali em diante nunca mais nos íamos deixar espezinhar, que quando alguma coisa estivesse mal só tínhamos de falar e defender os nossos direitos.

 

Hoje sinto-me defraudada pelas expectativas que tinha aos 8 anos. Não percebo para onde foi a memória colectiva deste país que se encolhe e resigna aos maiores insultos e parece-me que o povo que imaginei a fazer a revolução de abril está todo esclerosado e entrevado e que os seus filhos e netos já nasceram cheios de artroses e são (somos) um monte de incapazes que só reagem ao futebol. Cada um de nós agarrado a uma desculpa de coitadinho, à rasca, pobrezinho. Sinto que somos uma cambada de sacos de porrada, de todas as gerações. Coitadinhos dos reformados que têm pensões microscópicas, coitadinhos dos trabalhadores que são explorados, coitadinhos dos estudantes que não vão arranjar emprego, coitadinhas das criancinhas que não têm futuro. Os grandes e mauzões tiram-nos o dinheiro do almoço e a gente só sabe é chorar. Caramba, pá! Recuso-me a ser coitadinha! Recuso-me a encolher-me na cadeira sem fazer ondas, a rezar para que o FMI não me tire o subsídio, recuso-me a comer e calar, recuso-me a ver o meu trabalho ser desvalorizado e os meus impostos entregues aos bancos e às Donas Brancas de Wall Street. Recuso-me a ser condenada pela austeridade, pela crise e pelo medo. Não tenho medo, nem de trabalhar e muito menos de lutar pelo meu país, pelos direitos do meu povo, pela saúde dos avós e pela educação dos filhos. Somos pobres, mas somos muitos, somos bem-formados e temos livre-arbítrio! Sejamos da esquerda ou da direita, somos todos pessoas, temos direitos e temos deveres, temos voz, e tanto quanto vejo daqui, estamos todos na merda. Que tal, para variar, tirar o rabo do sofá, ir fazer pela vida e sair da merda? Para a rua gritar, às urnas votar, agarrar na trouxa e bazar, seja qual for a melhor forma de nos fazermos à vida. Em 1974 fez-se a mais bela revolução do mundo. Em 2011 nada nos impede de voltar a acreditar.

 

O 25 de Abril continua a ser o meu feriado preferido. Mas todos os dias do calendário são igualmente valiosos e cada um deles merece ser vivido com dignidade, liberdade e consciência. E enquanto tiver palavras, ninguém me pode calar!

 

25 de Abril sempre! O povo unido jamais será vencido!

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