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Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

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Como é que se perde um amigo? Falo de uma perda de amigos vivos, falo do fim da amizade, de uma árvore seca, sem seiva ou lume; falo de ficar um vazio, seco e frio, onde antes estava uma super-cola imaterial a unir duas pessoas. Perder um amigo é diferente de um afastamento, de um desgaste, de uma fase mais complicada, de um amuo ou zanga; nestes casos tudo pode voltar naturalmente ao que já foi, ou pode só manter-se esta distância feita de indulgência mútua, sem nunca se ter passado pela ruptura, pelo sentimento de perda. Há amizades que se diluem no tempo, nas distâncias, nas circunstâncias da vida, nos desencontros, nas diferenças, nos desânimos, nas derivas lentas. Mas falo de ter algo raro, bonito e precioso num momento, e de repente não mais o encontrar. Falo de faltar um chão que era sustento seguro, de se ser dispensado do lugar de presença constante e incontornável. Falo de uma dor repentina como um trovão, insustentável, dilacerante, paralisante.

 

Perder, diz-nos o dicionário, é “deixar de ter alguma coisa útil, proveitosa ou necessária, que se possuía, por culpa ou descuido do possuidor, ou por contingência ou desgraça.” E amigo é “quem sente amizade por ou está ligado por uma afeição recíproca”. Perder um Amigo é, portanto, uma afecção disruptiva da reciprocidade de um afecto, por culpa ou descuido, contingência ou desgraça.

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Confesso que sou nova nisto de perder amigos e talvez por isso me custe tanto a compreender. Já deixei ir alguns amigos, quedei-me passiva perante as imposições de algumas distâncias ou permiti que desgastes e frustrações alargassem os elos, por negligência ou circunstâncias várias. Também já coloquei em pausa Amizades importantes, por motivos de força maior, mas os elos não quebraram e estas uniões retomaram o seu lugar ou retomarão um dia. O afecto e todo o muito que nos unia continua a existir, intacto. Na hora de recomeçar, pega-se no ponto onde se ficou, basta sacudir e desempoeirar as marcas do tempo, a cumplicidade retorna e a partilha também.

 

 

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Há um ano entraste de rompante, vindo do nada, como se as coincidências cósmicas tivessem um propósito. Disse-te o meu nome, tu disseste o teu nome, deu-se uma espécie de explosão catastrófica e fantástica, cheia de fogos-de-artifício e vórtices de caudal pleno de estrelas e tormentas espinhosas, e nada mais foi como havia sido até então.

Não poderei elencar as dores, as zangas, os abraços, as confidências, os sorrisos, as lágrimas que nos causámos, que excedem em número e em força a disponibilidade da memória. Poderia elencar os beijos e poemas, as promessas cumpridas e as quebradas, mas tu preferes esquecer e eu também. Passei um ano inteiro a escrever-te a ti, de ti e para ti e tudo o que só os teus olhos leram já diz demais, sem nunca dizer as palavras de que fiz barreira maior. Creio que devia parar aqui. Não só de escrever para ti, mas parar por completo. Parar de abrir portas a quem chega de novo com ideias e sentimentos e requisições e entusiasmos. Fechar as frestas que abri antes e parar de sentir frios e arrepios. Parar de me importar contigo, parar de querer dar-te o que te ofereci e não colheste, parar de confundir com afecto que tanto tenhas colhido de mim. Devia parar de sentir, de te sentir ao longe, de te ouvir a voz plena, de te escutar lamúrios e suspiros desanimados mascarados com planos que não te bastam. Devia parar de ser para parar de doer.

No outro dia, os que me querem e conhecem bem, só ainda não todo o avesso, que só sabem um resumo da nossa estória, brindaram à tua ausência, à tua saída com a porta a bater e a fazer estremecer as minhas paredes. Tiveram essa audácia, apesar de suspeitarem o quanto me dói este naufrágio sem jangada, para me convencerem com afronta de que estou muito melhor sem ti. Sem saberem que ruí por completo, que me perdi no caudal de mim mesma. Enquanto os copos tiniam, pensava em como nunca te culpei de nada e na ambição em que se tornou o teu sorriso. Nunca me arrependi daquele Janeiro escuro em que te encontrei de olhos vendados, te tirei as máscaras e derrubei os muros todos, como disseste no primeiro dia. Olhei para o fundo de um copo, imóvel e calada, concentrada em não deixar cair lágrima alguma, a muito custo. Tenho saudades, sim, e preciso de saber que estás bem, que alguém te cuida e aquece o bloco de gelo com que proteges o coração.

Tantas vezes me aconselharam a voltar-te costas, a não te dar a importância que nunca me deste, a proteger-me. Mas prometi que não te deixaria só, e não me interessa quantas barreiras e novos muros nos separem, só não ficarás. Prometi que não seguiria sem ti e aqui estou, estagnada. Já tentei retomar a marcha, com um pedaço a menos, que me falta, mas seguindo. Ainda não consegui o reequilíbrio, talvez o pedaço que me faltas seja mais central do que antecipava.

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[A minha mais recente crónica publicada no Repórter Sombra.]

Dar desinteressadamente é das atitudes mais louváveis do ser humano. A generosidade para com o outro não é necessariamente traduzida em valores materiais, mas é dar afecto, o seu tempo, o seu carinho, a sua atenção, dar uma mão para ajudar a levantar ou para amparar uma queda, ou também dar apoios palpáveis para concretizar um sonho ou suprimir uma necessidade. Pode traduzir-se de milhares de formas diferentes, das mais complexas às mais singelas. Pode ser apenas uma companhia, uma boleia, uma frase, um incentivo ou um abraço, ou qualquer outra demonstração de zelo pelo bem-estar do outro.

Dar abertamente o que se tem e pode, sem agenda, sem ulterior interesse ou sem sentimento de dívida ou expectativa é uma manifestação de altruísmo genuíno. Talvez seja empatia, talvez seja solidariedade, ou muito mais do que isso, amizade.

Não confundir a generosidade com a caridadezinha, com a esmola, que de altruísta tem muito pouco, movendo-se antes pelo culto do ego, da imagem externa, de uma pretensa superioridade moral ou religiosa. Quem dá de boa vontade não informa o mundo que o faz, dispensa bem a publicidade, a exibição e o elogio.

Quem recebe, se não sofrer de complexo narcisista ou não tiver capacidades emocionais ou intelectuais afectadas, sentir-se-á grato por ser alvo da ternura ou bondade de outro. Mas quando o sentimento de gratidão se transforma num balancete entre o deve e o haver, numa medida calculista que atribui valores quantitativos e materiais a cada acto, o sentimento é desvirtuado. Chega mesmo a ser um pouco ofensivo que aqueles a quem se dá façam questão de retribuir “em igual medida” ou excessivamente, para saldar uma dívida que não existia. Chamei em tempos a esta forma calculada de agradecer "gratidão de contabilista".

Quem dá de coração aberto, porque quer e gosta, não mantém um livro de contas em que regista o que dá, quando dá ou quanto vale o que deu. Quem dá com amor, dá porque sim, para despertar uma alegria do outro lado, nunca para formalizar uma dívida, jamais para ficar numa situação de superioridade ou de poder em relação ao outro.

Repito amiúde “a amizade não se agradece, retribui-se”. No entanto, quando a retribuição surge como uma obrigação, forçada, contida em moldes formais, pensada ao detalhe para não defraudar eventuais expectativas, porventura trabalhada ao exagero para manifestar uma gratidão que até pode ser real, soa a falso. Normalmente até são gestos que traduzem uma gratidão bem real, mas tão demasiado pensada, tão equilibrada ou abundante no seu retorno, que fica constrangida e diminuída até caber nos moldes do socialmente aceite e conspícuo. Tanto, que é desconfortável e intimidante.

Para saber dar, é necessário saber receber. Quem tem dificuldade em aceitar elogios, afecto ou um mimo, seja porque nunca o teve de forma sincera, porque tem a auto-estima desfeita, porque tem uma imagem desfigurada de si próprio ou por outro motivo qualquer, não tem padrões nem referências aos quais se comparar, fica perdido, muitas vezes com medo, aterrorizado de que este afecto lhe seja cobrado de formas a que não pode corresponder. Não sabe como receber essa dádiva estranha, acha que não merece, crê que fica em dívida para com quem dá e tenta colmatar o défice logo que possa, atabalhoada e exageradamente.

Quem não está habituado a sentir-se amado fica de tal forma espantado com demonstrações abnegadas de afecto que pode confundir o amor com uma benesse ou uma espécie de favor. É uma visão deturpada dos afectos, mas é comum quando a visão do próprio é, também ela, deturpada. Assim, tem maior probabilidade de ter uma forma calculista de reciprocar, o que muitas vezes cai no exagero, na subserviência, numa hipérbole que não toma toda a extensão que aparenta. Contorce-se em agrados, capaz de sacrifícios que ninguém quer e que se tornam até incómodos.

O amor (seja em que forma for) não é uma concessão, não é um prémio que se atribui mediante atributos ou provas de esforço, até aí todos sabemos – por muito difícil que seja a sua definição, a natureza ambígua dos afectos será consensual.

Quem gosta do outro só o quer ver bem. Quem gosta do outro quer e precisa de retribuição. Somos animais sociais e carecemos de validação, dependemos do suporte emocional de uma rede de proximidade. A expectativa depositada nessa retribuição não é cobrança, é perfeitamente legítima e contradiz o desapego, reforça os laços que permitem o crescimento e aprofundamento das relações humanas. Quem gosta quer ser gostado de volta.

Não se agradece a amizade ou o afecto. Não se compra, nem com géneros nem com gestos magnânimes. Merece-se. Conquista-se. Respeita-se. Retribui-se a seu tempo, quando a ocasião se proporcionar, se houver vontade e reciprocidade. Ninguém quer beijos falsos. Ninguém gosta de abraços forçados. Ninguém precisa de poemas e odes que não sejam verdadeiros. Basta aceitar e acender um sorriso.

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Um clique, um instante, e toda a história é resumida. Uma fotografia que conta uma história de estórias feita, entrelaçadas e unidas. Podia ser a preto e branco, de tão nítida e forte, mas tem cores. Almas fortes, encontradas e unidas por acasos a que não seria possível escapar. Tão diferentes. Tão irmãs. O que se vê é a definição de sororidade. Unidas por uma rede de aço invisível, por todo um chão comum e divergências que as tornam complementares. Umas em primeiro plano, outras mais distanciadas. Os risos adivinham-se, sonoros, que são constantes, mas as lágrimas de todas, tantas já engolidas, soluçadas, abafadas, ficam apertadinhas nos segredos só delas, nas cartas adivinhadas, nos pensamentos dissecados e alguns nunca verbalizados. Unidade. Para tomar as ruas, para incendiar espíritos, para carpir em conjunto as dores, para chamar à razão, para acalmar e dar raspanetes, para tudo compreender, tudo perdoar, para dar o impulso na subida e o amparo na queda. Elas sorriem e brindam, que um copo cheio sempre afaga alguma carência, mesmo que só a fingir, mesmo que só por um instante. Eles, sempre omnipresentes, em primeiro plano ou em background no pensamento delas, todos citados sem excepção. Pactos e promessas reafirmados, sem necessidade, que cada uma sabe bem quem a leva no coração. Sorte grande, esta de ter grandes amigas.

Conheço pessoas assim, que não têm caixa de mudanças. São exactamente iguais a si próprias em cada momento, cada frase, cada pequeno detalhe, tal como nos momentos decisivos, marcantes, grandes. Estejam numa sala só comigo ou com mais duzentas pessoas. São a verdade, sempre. O que eu admiro e almejo isto não tem explicação. Fico de coração cativo, colado ao espanto. 💙

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Começaram a subir a Travessa do Maldonado, devagar, atados com laços de vontades um ao outro, e um senhor que passava, observando-os contra a luz que se esbatia com o fim da tarde, derramou uma exclamação que soou bonita e sincera: "Vocês parecem anjos!"

Sorriram ambos. Ele, calado e talvez menos espantado. Porventura, já lhe terão chamado anjo, seria uma mera constatação do óbvio. Não trazia as asas postas, mas empurrava à mão duas rodas.

Ela respondeu com um sorriso largo e convicto: "E somos!"

O senhor agradeceu e acenou: “Bem-hajam!” Talvez tenha sido ele a presença angelical que lhes abençoou a noite de veludo, que a partir daquele momento, deslizou como nuvens empurradas no horizonte de lilases, a desafiar as definições do que é sonho, do que é perfeição.

Despenteados, desenquadrados da normatividade que não os incomoda nem consegue deter, têm o dom de passar invisíveis nos largos e ruas. Talvez os pés sejam silenciosos ou levitem um pouco, que sempre parecem situar-se num plano etéreo, num intervalo de esguelha entre planos de realidades duras, feias, doridas. Talvez os risos sejam cândidos ou talvez sejam realmente anjos incorpóreos a cirandar, com risos de cócegas na barriga e bochechas rubras.

Os despenteados caminham lado a lado, partilham-se, abrem sem pressa as portas rangentes do que encerram em si e deixam o outro entrar um pouco no íntimo do que os incomoda, o que os preocupa, o que os motiva. Não há sentimentos de posse, não há lugar para o ciúme. As sombras começam a espalhar-se nas paredes e janelas, os gatos vadios miram e escutam as conversas, interessados.

Sempre brotam sorrisos sinceros quando se encontram, feitos de luz, sorrisos inteiros, dos olhos ao queixo, leves e musicais. O mundo todo às costas não é um fardo, é uma aceitação de que há uma missão maior a que não se pode fugir. Os lábios tocam-se de mansinho, como harpas, em fôlegos macios e vítreos, translúcidos. Os dedos encontram-se e aninham-se, vestidos de carícias e cumplicidades, ainda que o calor de um Outono que lembra Junho peça nudez. Os narizes navegam, afoitos, por montes e vales, tacteando superfícies e odores. Os caracóis rebeldes são afagados, apertados e baralhados uns nos outros como cartas do mesmo naipe.

O cheiro do bairro, da casa, da roupa e da pele, que já fora estranho de desconhecido, tornou-se confortável e sinal de boa companhia, de sorrisos pendurados nas peles mornas, tão doces. Cheira a conforto e a aventura, a vontades e planos de mudar o mundo. Como uma manta protectora de ternura espessa que mantém tudo no lugar e à prova de agressões externas, um casulo em que faíscam inícios, germinam revoluções e entre parênteses se vão escrevendo páginas de um passado estendido, abrangente, certo como a idefinição do futuro.

A lua acende os sorrisos como narcisos, que existem só para se trocarem e rebentarem os limites da beleza que não tem tradução, os olhos dançam perdidos nos universos de si próprios. Ela jura que ouve poesia no sorriso dele, que a abraça com dedos, língua e asas, que lhe escuta segredos.

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Os anjos não precisam de nomes ou verbos, vivem materializados nos momentos de mãos dadas na sua rua, nos abraços prometidos, às vezes adiados, às vezes calados com lábios húmidos ou em queda livre no azul maior que o mundo.

Há quem engula coisas estranhas, como moedas ou giz ou penas de pombos. Há quem mastigue livros e cabelos. Os anjos engolem intervalos de coisa nenhuma, engolem músicas e um ou outro amor que encontrem encostado numa esquina suja e esquecida. Às vezes digerem memórias e partem-nas em milhentos pedacinhos, de forma a sobrarem só fragmentos desconexos das recordações dos seus encontros. Fazendo o esforço, só sobram salpicos e a certeza de que é tão bom, como o aroma de um licor de ginja forte e puxado à canela entre lábios meigos que falam sem sílabas.

Há quem mergulhe de cabeça em mar alto, há quem surfe comboios em movimento, há quem se enterre em afazeres e obrigações e lutos. E os anjos, esses lambem os dias e as noites e as estrelas, coçam silêncios para os ajustar à roupa em jeito de conforto, tricotam ideias ousadas e poéticas em letras de lã macia e encostam-se nos quintais frescos, de asas estendidas, despenteados, a ver passar meses ao longe e a recolherem um pouco mais perto, entrelaçados no sono, aninhados.

Pequenina, transparente, invisível. Diluída por entre o que brilha faustosamente, por entre a exuberância que te ofusca, sou grão de areia que parece só incomodar, causar desconforto, quando finalmente me sentes debaixo do calcanhar. Um empecilho, uma moléstia, insignificante até magoar.

Acenam-te com luzes, palcos, plumas, folhos e cetins e eu faço questão de não me esconder sob nenhuma dessas máscaras. Não tenho argumentos de monta, atractivos estéticos ou chamarizes sociais, nem sei bem como te detiveste, ao engano, na névoa invernosa que nos atirou para a mesma dimensão. Não tenho glitter nem purpurinas, não cresço em saltos altos nem te lanço escadas para te fascinar com uma inatingibilidade que é irreal. Não sou feita de magias ou perfeições. Sou de carne e sou de osso, de erros e defeitos mil, de cicatrizes e nódoas negras sentimentais. Estou no plano do real, em que o tempo passa, as distâncias doem, as palavras ferem e os silêncios dilaceram. Tropeço, zango-me, faço cara feia quando as lágrimas me apanham de soslaio, babo-me de raiva e de melancolia. Nem a distinção nem a elegância que gostas de ter a emoldurar a tua face visível, mas também ninguém me fez adorno ou bibelot.

Não sou uma mera personagem do teu romance, não deixo de existir quando fechas o livro e passas ao próximo, não me poderás conter em páginas que não te valem a resenha. Não sou a entrada vinte e três na colectânea das poetisas do tule e de coisa nenhuma que escrevem, deslumbradas, desfocadas, sobre o que acham que és tu. Não me contento com definições em versos desconexos sempre na primeira pessoa, extravaso em cada letra das palavras que me deste a custo. O que sou, valho e mereço escapa-te ao entendimento, como escapo eu das tuas teias, dos teus formatos quadriculados cheios de grades e margens e prisões.

Não nasci para ser princesa em contos de fadas, sou proletária, incendiária, de punho sempre erguido, tochas nos olhos e no coração, mestre tanto das fugas como dos choques frontais que te ofendem e te afastam. Não pertenço a este mundo onde cada um é só por si, das sombras e aparências com o verniz a estalar. Talvez deva agradecer-te as desfeitas, evidências inequívocas das palavras em que nunca quis acreditar.

Contra factos não há argumentos.
Não é comigo que celebras vitórias, não é a mim que ofereces convites ou mimos, com quem esbanjas adjectivos e superlativos. Não me ouves quando te grito, na sofreguidão desesperada de querer salvar-te de ti. Não te mereço os sorrisos festivos, as fotografias ou os abraços sentidos, que o meu lugar é na sombra, nos intervalos do que é importante, nos espaços intermédios da vida real que corre em direcções sempre transversais a mim. Nunca me citaste as palavras nem recordas os gestos, que essa sedução em mim não colhe, mas sou eu quem te vê inteiro e em primeiro plano, aqui do alto do meu lugar que é nenhum. A quem iludiste desta vez, quem te preenche as frestas na ilusão de não estares só?

Não sendo jamais urgência nem prioridade, fui (e serei) sempre a que aplaude com mais força cada feito teu, a que na penumbra te ouve e conforta, a que cola os pedaços que outros racharam, com cuspo e com cola de bem querer. Na certeza cimentada de nunca deixar de te incentivar quando perdes a fé, de ir quando chamas, de dar o que não tenho e dar-te tudo, até à última gota do que sou, esgotei o plafond. Um tripé mantido na penumbra para sustentar o truque de magia que és tu. Cansei de só existir enquanto suporte, desnecessária quando te acompanham camaradas das horas boas, dos risos rasgados e festins.

A cada segredo que te adivinho, é sem medo nem pudor que me deixas do lado de fora. O gigantismo do teu coração não se compadece com os meus temores e ainda teima em gelar. Jamais serei animal abandonado que mendiga uma festa de quem não se detém para o olhar. Esbanjas a palavra amizade com quem só te conhece o mel, só para mim despes a capa, atiras a espada, berras e cospes fel.

Colho gargalhadas jocosas onde outros passeiam com excesso de corações pendurados nos bolsos, esquecida e ignorada, silenciada. Alheio às minhas dores e lágrimas colhidas por comboios frios, continuarás o teu trilho, seguro e firme; em cada degrau um grão de areia esquecido. Atrás da cortina onde me cansei de esperar, sozinha, sem tempo de antena, sem direito a nota de rodapé, demorou, mas percebi. "O meu lugar não é aqui." 

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Porque é que gosto de ti, pergunto-me às vezes. Não sei se é por me reconhecer tanto em ti, em versão melhorada e apurada, não sei se é pela pureza que transparece nesse teu sorriso por que daria sete voltas ao mundo. De cada vez que tenho alguma certeza, alguma decisão firme em relação a ti, baralhas tudo de novo, boicotas-me sem saber.

Já decidi mil vezes deixar de gostar de ti, pegar em cada coisa ridiculamente estúpida que fazes para me apoiar as razões, que escrevo pelas paredes para que nunca me esqueça, e depois vejo-te por dentro e constato, mais uma vez, que não basta decidir, porque gosto mesmo de ti, em cada idiotice que compreendo bem, em cada silêncio que rasga e me fere e me diz que precisas que te vá resgatar.

Sempre que te vejo parece-me até fácil deixar estar tudo assim como está, conversamos e disparatamos em paz, rimos e discutimos em paz, e eu consigo disfarçar os momentos em que fico com um sorriso parvo só a olhar para ti, a rebentar de orgulho em ti, comovida só por te saber real, a pensar em como gostaria de te ter assim um bocadinho todos os dias, mesmo que fosse só assim, fazer-te uma festa na cara, gozar da tua companhia, da tua amizade, desta cumplicidade que é exclusiva, do fogo-de-artifício da tua gargalhada, dos tiques retorcidos dessa cabeça tão enrolada.

Depois fico um dia sem ti e a tua ausência enche cada espaço que reservei para a minha solidão. Depois são dois, seis, oito dias e o aperto sufocante não aperta menos, nem sufoca com delicadeza. Até que um dia, em que a contagem já se diluiu nos meses baços, já não me incomoda se o teu nome vem à baila ou se te sei aqui ao lado, a fingir que não existo e não queres saber de mim. A lucidez prevalece sempre, objectivamente, imbuída da sua verdade.

Talvez não devesse dizer-te que ainda gosto, estupidamente, de ti. Já sem paixão, já sem desejo, sem dor, que não cheguei a dizer-te, tudo se virou do avesso sem mexer grandemente. Não te falei ainda dos meus novos amores, que esperaram educadamente que deixasses de lhes ocupar o espaço, anunciados que estavam, para crescer. E como cresceram! Em direcções antagónicas, tão seguros de si. Entre o fascínio, o paraíso e o terror, a hecatombe anunciada, filmes daqueles surreais para os quais a vida me reservou. Seguros, fortes, para a vida toda. Sei que lhes vais lendo os vestígios, a espaços. Ficarias de sobrolho erguido com cada um, jocoso, talvez um dia que perguntes te mostre um pouco mais da maravilha, da explosão permanente em que ferve o meu coração.

Porque é que ainda gosto de ti, camarada, amigo, irmão, pergunto-me quando em vez. Não é importante a razão. A porta está no mesmo sítio, com um perdão não solicitado e não merecido por recolher, dentro de um saco de pão pendurado por fora.

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A palidez das emoções é-me insuportável, as palavras suaves e delicadas, névoas vazias de fogo, de pujança e de vida. Rendas debruadas a ouro, com minúcia na forma e vazias de conteúdo, não me servem, repelem-me o toque. São desperdício, diluem-se nos tempos rotos e nas costas voltadas, na erosão das lonjuras. São ofensivas as delicadezas que pairam sem se atravessar, por gentileza, a mendigar raspas do ar que é necessário para viver.
Não sei ser dos murmúrios a meia luz, das meias verdades e das paixões mornas, em lume brando, hesitantes. Sou inteira de tudo ou de coisa nenhuma; dos dilúvios no deserto que ofusca, árido, ou do granizo no verão alagado. Não sei ser sem sal que me tempere, sem gritos que me calem, sem orgasmos que me abandonem à deriva em mim. Sem apertar demais os tais nós que se eternizam ou quebram, ou sem soltar os laços já lassos, para que fique só quem queira estar, de corpo presente, invasão possante e pertinente. Não quero ser um quarto, um terço ou metade. Sou todos os avos minha e partilho-me toda em sobressalto, em enxurrada, avalanche de verdade; não dou migalhas, restos ou aperitivos, ou o banquete é farto de lamber os pratos ou é jejum. O amor em part-time não é o meu lugar. Amo-te nas ausências e nas fugas, nas pausas e nos silêncios e mesmo quando tapas, com força, os olhos e ouvidos à passagem da minha sombra, mesmo quando me procuras noutras bocas e nos colos que não te chegam, que não te calam, não te sabem matar por dentro, de fome, de choque, na vertigem do toque. Deixo-te ir e nunca corro atrás porque te quero sempre comigo, porque de ti não fujo mais, subo a paredes caiadas em vácuo que caem no mar, arrasto redes na ilusão de te captar as sedes, num cheiro, num sopro, quase num estrondo o verbo que desisto de contornar.
Uma vida sem sal, de contenções e convenções, de limites e regras, de cuidados exacerbados, a que sabe? Sabe a coisa nenhuma, a frustração, sabe a dúvidas e receios, a espartilhos e a cintos de castidade. Sabe a papel velho e mortiço, sabe a planos engelhados, a brasas apagadas e esterilizadas emoções. Que não se poupe no sal da vida, no sentir e mostrar. Modere-se tudo menos os sentimentos em erupção, a apatia insossa nunca será opção. Mesmo que a sede se instale, que assim se multiplicam os prazeres, o do sal e o da água fresca em resposta, a acicatar. Qualquer doçura com uma pitada de sal ganha volume e delícia, espessura, a sensualidade dum pó de malícia. Sejamos volúpia de línguas e de lábios, sejamos oceano na imensidão, peito aflito da cor opaca do infinito. Sejamos protagonistas de beijos sedentos, gelados, na pele salgada, nas bocas carnudas de paixão.
Não me peçam para ser brisa obediente e contida. Sou vendaval, sou Ventania. Sou alvoroço sem rédeas nem gaiolas. Sou aquela que abre todas as jaulas e que liberta os prisioneiros dos grilhões de si próprios. Não me peçam a paz enquanto houver tiranos, eu serei a que degola os amos. Não esperem que consigam domar ou dominar-me, só eu sou dona de mim. Sou a mais doce que vira fera, com tanto de calmaria como de revolução, com igual dose de mel e de bagaço, embriagada e ática incógnita à toa na imensidão. Sei que tanto é demais, incomportável, que todos preferem açúcar puro, veneno maduro oculto, embrulhado em algodão.
Sou sal, sou cristal de vida e fogo, saio fora dos riscos e ignoro os mandamentos. Mesmo sem aqueles a quem pertenço ainda sei voar; sigo sozinha se preferem ficar, mas sigo triste, órfã de lar. Sou o fumo de que troçam, o carvão que os ensombrece, sem vaidade, o chiste que ninguém soube decifrar. Sou o supérfluo excesso dispensado, à cautela, para não entornar. Sou aquela que derrete o gelo, aquela que nunca esquece, a que arde nas feridas, cardápio de dores da alma. Sou a impossível de amar.

 

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Sabes que não quebras. Se ainda nada te partiu, depois de tantos embates, cortes, ataques no escuro, golpes de catana e explosões de vulcões no teu peito, se os venenos passam por ti como refrescos, não quebrarás. Querias fazer uma metáfora com cacos e estilhaços, mas essa figura de estilo não cumpre com a honestidade que é fronteira, porque nada se quebrou em ti. Não quebras porque o que há é e será sempre inquebrável. Não são cacos. É titânio. Com algumas mossas de tanto bater no mesmo sítio, com sintomas de rejeição de próteses porque de repente te surge um pedaço a mais, grande, incontornável, que ocupa um espaço só seu e empurrou para o lado o que estava em excesso. Como nas cirurgias, a adaptação não é imediata. Tens de reaprender a levantar-te, a caminhar, a deitar. Vês o mundo de uma perspectiva diferente, porque ficaste maior. Tens dores. São dores fortes, mas tu és mais, aguentas com ajuda de um ou outro opiáceo nos momentos insuportáveis. Também ficaste dormente num ou outro pedaço, que esse enxerto cortou uns nervos. Leva tempo, a adaptação. Leva tempo a sarar o corte e a cicatriz fica como lembrete externo do pedaço alheio que te invadiu e tomou conta de ti. O titânio é frio, mas não é um monstro. Dói, mas melhorou muito a tua vida. Ainda te raspa o coração, ainda se atravessa nas costelas e não te permite respirar, ainda te faz pensar muitas vezes que sem ele terias sido poupada a tanta dor. Mas agora já é tarde. Remover um pedaço que já é parte de ti é inconcebível. Nos dias como hoje, em que dói tê-lo ali estagnado e imóvel, só a comprimir o peito em jeito de ausência, tentas afogar as mágoas no fundo da garrafa ou na poesia desconexa, sabendo de antemão que as putas sabem nadar e não dão tréguas. Vomitas palavras sem cuidado, deixas sair o que te corrói sem prestar atenção à forma. A solidão amiga leva-te em ombros e embala-te o sono e esperas que, desta vez, não se solte o nome errado, que é tão certo, a meio do sonho.

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"Blocos de gelo também derretem", prometera ela quando ele tornara a insistir no silêncio de uma solidão vazia e oca, erguida só com tristeza em vez de tijolos e com punhos cerrados em vez de braços abertos. Ele achou que seria a excepção, não queria deixar-se tocar, queria ficar só, não queria ser igual aos demais, seria sublimação antes de fusão. Ela também sabia que ele era diferente de todos os outros, mais especial, mais sensível às brutalidades quotidianas, mais carente e mais capaz de lhe virar o mundo de pernas para o ar sem aviso prévio. Ave rara de asas quedas, tolhidas numa gaiola que ele próprio escolheu fechar.
Foram tantas as vezes que ela lhe estendeu a mão, o calor do seu peito e afagos abafados, para encontrar quase sempre silêncios, lágrimas e gritos também, um ou outro esboço de abraço ou de beijo, mas por regra, silêncios, que o que ela não antecipara era que fosse ela a transformar-se em gelo quando ele finalmente derretesse.

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Fizeste-me mil maldades 
e uma maldade muito grande 
que não se faz 
acho que devo ter sido a pessoa 
a quem fizeste mais maldades 
nem deves ter feito a ninguém 
uma maldade tão grande 
como a que me fizeste a mim 
não sei se tens remorsos 
tu dizes que não tens remorsos nenhuns 
porque dizes que és um vil criminoso 
para mim 
eu também sou uma vil criminosa 
mas não para ti 
desconfio que tens o remorso 
de ter alguns remorsos 
por me teres feito mil maldades 
e uma maldade muito grande 
a maldade muito grande está feita 
e não se faz 
acho que essa maldade muito grande 
nos aproximou um do outro 
em vez de nos afastar 
mas para mim é um drôle de chemin 
e para ti também deve ser 
mas com um vil criminoso nunca se sabe

 

Vídeo

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Num dia de São Pedro um vil criminoso trocou-me as voltas todas, fez-me uma maldade. Como vil criminoso que é, não descansou até me tornar numa vil criminosa. Eu não tenho remorsos de nada, só do que não fiz, porque deixei trocarem-me as voltas de novo, e o vil criminoso fez-me uma maldade muito grande, que não se faz, que nos aproximou em vez de nos afastar. O vil criminoso tem remorsos de ter remorsos mas nem por isso deixa de ser um vil criminoso. Escreveu a Adília Lopes e podia ter escrito eu. A diferença é que a vida seguiu depois do poema, o vil criminoso não sabe fazer senão maldades, as piores e mais cruas maldades e eu vou ter de ser a maior e mais vil (e brava) criminosa, porque há maldades que não se fazem e caminhos que se não se caminham lado a lado terão de ser para sempre apartados.

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Desculpa se quero saber de ti e isso te incomoda. Desculpa inquietar-me com os teus silêncios e zangar-me se desconversas. Desculpa se não me contento com migalhas. Desculpa se te quero dar beijos todos os dias. Desculpa às vezes querer deitar-me ou acordar contigo. Desculpa ver significados nas palavras, as que dizes e as que calas. Desculpa querer partilhar-me contigo. Desculpa celebrar as tuas vitórias com vaidade e orgulho. Desculpa fazer-te rir quando digo que te desejo. Desculpa não querer ser o teu penso rápido descartável. Desculpa dizer-te sempre a verdade e dizer-te verdades que doem e que mais ninguém te diz. Desculpa se embarquei nas tuas fantasias. Desculpa não fazer de ti o meu centro. Desculpa não te deixar desistir de ti. Desculpa corrigir-te quando estás errado. Desculpa não navegar orientada na indefinição. Desculpa que a minha existência te seja penosa. Desculpa que me recorde de tudo o que me disseste. Desculpa não conseguir aliviar-te da tua vida. Desculpa que a minha presença seja um peso nos teus ombros. Desculpa se te aponto as injustiças. Desculpa não fraquejar. Desculpa conseguir respirar sem ti. Desculpa já não ser o que era. Desculpa ter saudades tuas. Desculpa se me pareceu verdade que quisesses fugir comigo. Desculpa se preciso de razões e de porquês. Desculpa ter espinhos e não ser fácil. Desculpa ser pesada. Desculpa ser um fardo. Desculpa eu existir.

Ou então não desculpes.

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Quando partilhas as tuas vitórias com quem sabe o quanto significam para ti e colhes apenas indiferença e apatia, e é dos estranhos que colhes incentivos, elogios e congratulações, a importância relativa que tens nas vidas de quem te é importante é realmente colocada em perspectiva.

Era só isto.

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