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Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

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Era o quarto dia consecutivo que via a mesma mulher vazia, no mesmo lugar à janela do mesmo comboio, de olhos marejados e pendurados no infinito, transbordantes de negro como a roupa que vestia. Olhava com cara fechada um pequeno monitor na palma da mão, de onde saíam, além de alguma coisa que lhe abria um buraco no peito e que sugava as ondas do mar, gaivotas, peixes e traineiras ao largo, uns auriculares que completavam o cenário de exílio. Ela não estava ali, naquela carruagem que largava o início da manhã, pontuada de sonos, risos e agruras de uma pequena tribo rumo às rotinas laborais, um ou outro turista madrugador a caminho de uma praia ainda quase deserta. Sentiu curiosidade e alguma pena da mulher. Ganhou fôlego, levantou-se e sentou-se a seu lado. Ofereceu o seu mais aberto sorriso, com a placa de cerâmica a restaurar a plenitude da confiança dos seus tempos de galã, quando a mulher desviou rapidamente a mochila azul do assento e o olhar do seu vizinho.

Tornou a virar a cara para a janela, sem emoção, voltou ao seu mar de silêncio encriptado pelas canções de amor e Revolução que lhe cantava o cantor maldito ao ouvido e colocou os óculos de sol que lhe prendiam o cabelo em frente a dois pingos finos que lhe salgavam o rosto. Poucos minutos depois, sentiu tocarem-lhe levemente no ombro. O mesmo sorriso de avô que havia visto antes, curtido pelo sol, com o conforto de um hálito ainda preso a uma caneca de cevada instantânea e torradas acabadas de fazer atreveu-se a falar-lhe com a intimidade de uma flecha certeira já alojada entre as costelas. "Oh menina, não esteja triste. A menina desculpe, mas tenho-a visto aqui desde segunda-feira, sempre com essa tristeza toda... É por causa de um rapaz, não é?..." Ela não conseguiu segurar meio sorriso e meio soluço, acenou com o queixo a tremelicar, como se lhe tivessem feito uma rasteira e estivesse em queda, já antecipando os dois joelhos esfolados no asfalto. "Eu vi logo... Menina, deixe-o ir. Oiça o que lhe digo! Se ele gostar de si não a deixa escapar, uma menina tão bonita... Amanhã trago-lhe uma prenda. Não tenha medo nem me leve a mal, eu tenho duas filhas como a menina, uma é mais velha, já tem dois cachopos pequenos." O idoso sorridente continuou a debitar a sua vida, a tornar-se próximo e amistoso com a facilidade que ela sempre admirava nas pessoas com este dom de comunicar com os outros com a naturalidade de amigos de infância. Falou dos netos e alguma coisa sobre umas férias nas termas, alguma outra coisa sobre doenças próprias da velhice que ela preferiu não escutar, apesar de parecer atenta. "(...) Vou sair nesta, mas amanhã trago-lhe a prenda. É uma flor, a menina gosta de flores, não gosta? Mas já chega de lágrimas, hã?! Até amanhã, menina!"
Ela ficou na dúvida sobre o que tinha ali sucedido. Se calhar só imaginou aquele monólogo, se calhar cedeu ao sono que combatia com ganas e alucinou, ou se calhar foi só mais um dos episódios surreais que lhe pontuam a existência de quando em vez, só para recordar que as improbabilidades acontecem e desafiam a lógica, só para recordar que o inesperado pode ser o que falta para restaurar esperanças afogadas ou pode também ser a certeza de que a tragédia é a mais garantida forma de virar os enredos do avesso.
Cansada dos bons conselhos, iguais a todos os que não seria capaz de seguir, exausta das pausas forçadas para retomar o que já não tem cura e nem chega a ter retoma, ponderou imobilizar-se a meio da linha. Nunca tinha  encontrado beleza na possibilidade de abraçar, de peito feito e com a paz de um sorriso torturado, toneladas de aço e ferro a deslizar poeticamente na inevitabilidade. Analisou as opções. Não saberia fingir que gostava de flores se estas não estivessem vivas, incapaz de se imaginar a sobreviver a uma mesma viagem que já repetira, a que já conhecia as curvas e contra-curvas, os declives e o chiar dos carris, cansada de a estação terminal ser sempre o mesmo destino de solidão, decidiu. Não mais voltaria àquele comboio. Aquela tinha sido a última viagem.

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Os primeiros beijos contam toda a história da relação que selam. Um pouco como a máxima da ontologia recapitular a filogenia em reverso. O quando, o onde e o como dizem tanto sobre os enamorados.

Às vezes penso nestas coincidências que o Universo nos apresenta, ou que teimamos em escarafunchar até as descobrir.

À porta de casa, como nos filmes, beijo de cinema, longo e lento, uma mão que levava a chave para se despedir, num final já antecipado - e que afinal saiu tão ao lado.

Um atrevimento num comboio lá do outro lado do mundo, com a noite estrelada a lambuzar de azul dois rostos que brilhavam, espantados, mais que nunca, além da projecção imaginada. Ao som de carris a cantar às constelações, a marcar com sinais atabalhoados a surpresa na vida de cada um.  Algo mágico que só funciona noutro continente e com outra pele, como um capítulo inteiro entre parêntesis rectos - a retomar um destes dias, bem sei.

E depois os beijos roubados, de repente, a meio de uma rua da cidade, no dia (instante?) em que nos conhecemos, coração a palpitar e pernas a tremer - e agora, o que é que eu faço?! 

Beijos inesperados, antecipados num outro cenário ou com outro guião, que saem do plano, que trocam as tintas e as voltas - sou pião, barata tonta, nómada sem mapa. Ainda não lhes sei antever rumo certo, ou suave. Destinados a ser desde a primeira sílaba, inevitáveis, fatais como o destino de que tentamos escapar a todo o custo. Como se acreditássemos em fados, como se não fosse o nosso âmago cristalizado em qualquer coisa sem nome certo, alma ou coração ou quem somos, que nos empurrasse para aquele momento, aquela fuga. Desastre, ruína, sangue e entranhas a escorrer, e tudo está certo e no seu lugar, que o único desfecho possível é morrer de amor de todas as vezes.

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É verdade. Continuo a odiar a Fertagus. Às normais horas de ponta a coisa já é difícil, irritante, incómoda, cheia de gente, muito cheia de gente, com pouco espaço, cara. Mas pensava (pensava mesmo, sou tão ingénua!) que antes e depois a coisa marchava com mais facilidade. Mas consegue ser pior.

 

Chegar à estação antes das 7, com alguma pressa. Não ter bilhete. A bilheteira está fechada. Vou às máquinas, no outro extremo da estação. Mete cartão, escolhe bilhete, escolhe trajecto, escolhe quantidade, escolhe com NIF, o teclado está perro, repete o NIF. Paga. Não tenho moedas, não faz mal, a máquina aceita notas de 5, 10 e 20. Tenho uma nota de 20. Afinal a máquina não gosta das notas de 20, só tem troco se for nota de 10. Não tenho mais nenhuma nota, experimento a máquina do lado. Mete cartão, escolhe bilhete, escolhe trajecto, escolhe quantidade, escolhe com NIF, o teclado está perro, repete o NIF. Paga. A máquina também não gosta da nota de 20. A pessoa atrás de mim na fila confirma que as máquinas nunca deram para as notas de 20, não se percebe porque é que têm indicação das notas de 20 como aceites... Volta para trás, vai ao Multibanco, espera na fila, procura cartão, continua a esperar. Mete cartão, mete pin, escolhe operação, escolhe levantamento, escolhe valor: 10€. Volta para trás, mete cartão na máquina da Fertagus, escolhe bilhete, escolhe trajecto, escolhe quantidade, escolhe com NIF, o teclado está perro, repete o NIF. Paga com os 10 euros, sai o jackpot, moedas por todo o lado, agarra o talão, agarra as moedas, agarra o cartão. Comboio quase a chegar. Cartão dá erro de leitura. Outra vez. Parece que a culpa é da bagagem que está em frente ao sensor. Passa finalmente. Desce as escadas, o comboio chegou, já vem cheio, porra. Entra no comboio, encontra um lugar, tira a mochila, mete mala ao colo, mochila de lado. Encolhe joelhos para outra pessoa passar. Joelhos da frente a roçar nos meus joelhos. Pessoas por todo o lado, nos corredores, nos degraus. Entram mais e mais pessoas na estação seguinte e a minha mente divaga sobre a dinâmica de fluidos e a arrumação de passageiros nas carruagens. Chego ao destino. O intervalo entre o comboio e a plataforma é enorme, não sei como não há gente a esbardalhar-se ali a toda a hora. Escadas rolantes paradas. Odeio a Fertagus!


Aeroportos e estações de comboios, feitos ambos de movimentos, uns perpétuos e rotineiros, outros cortes de guilhotina com o tempo e o espaço, marcando a cinzel um antes e um depois. Tudo passa, passam as gentes, para a frente e para trás, ficam uns enquanto outros partem, uns correm para o seu destino, expectantes ou desiludidos, como quem foge da sorte. Outros suspiram pelo reencontro, um regresso adiado, ansiado, para o seu lugar.
 
A vida acontece sob lentes caleidoscópicas e de ampliação de tudo o que mais importa nos aeroportos e estações de comboios. Como se fosse mais pura, mais filtrada do que é acessório e banal. Mesmo que não haja nada mais banal do que apanhar o comboio de volta para o sítio onde se iniciou.
 

As viagens ampliam a vida.
 

Só uso a Fertaus (o "comboio da ponte", do Grupo Barraqueiro) quando tem mesmo de ser e hoje foi um desses dias. O homem ridiculariza este meu ódio de estimação, a maior parte das pessoas acha que é o máximo passar na ponte de comboio e tal, mas eu não vou nisso. Qual velha(das) do Restelo, bato o pé e não me demovo. Não por teimosia, mas porque as razões para este ódiozinho não faltam:



    • As estações são geladas: mesmo nos dias de Verão, meus amigos, as estações que eu tenho de usar, quando calha um desses dias, na margem certa, são um absoluto gelo! A 500m pode estar calor, mas nas plataformas das estações o grizo é impressionante!

 

    • Os horários deixam muito a desejar. Faz sentido que a ligação entre a capital e uma das maiores cidades do país, Setúbal, só se faça de hora a hora?

 

    • O espaço, ou melhor: a falta de espaço. Não sei se quem fez as carruagens estava a desenhá-las para Liliputianos, mas caramba (!), o povo português até é baixinho e tem pernas curtas (no geral), como é que o espaço entre lugares obriga a que os joelhos dos passageiros se toquem?! (Sim, sou cheia de não-me-toques, e depois?!)

 

    • O preço é absurdo! As viagens de comboio são das mais caras da Europa se observarmos o preço médio do Km. O valor mais baixo é 1.40€ para trajectos de uma paragem e vai até aos 4.35€ para a ligação Setúbal e Lisboa. Se eu for dos Foros de Amora para Lisboa pago 2.50€, mas se apanhar o comboio na estação anterior (Fogueteiro) são mais 0.40€ por uma distância de 3.3 Km (4 min de Fertagus).

        • Sulfertagus, o serviço de autocarros da empresa, não se fica atrás. A tarifa mais baixa para bilhetes simples é de 2.70€ (um trajecto de uma estação, por exemplo, de Corroios ao Pragal ou do Fogueteiro a Coina) e pode ir até aos 4.55€ (do Pragal a Setúbal). Não admira que tanta gente continue a preferir usar o automóvel. Falando em automóveis...

        • Se levarmos carro para um parque de estacionamento Fertagus, eis mais uma bela forma de arrombar o orçamento: 1.50€ ou 1.90€ (consoante se trate do parque exterior ou do auto-silo), ou em versão "passe": 25€ ou 30€. Amigos do Porto que vão ver a SCTP privatizada, utentes da TAP (sim, Grupo Barraqueiro, estou a olhar para vós!), si prepara!

        • Fazendo as contas, se eu substituísse o meu actual passe L12 (59.45€) por este magnífico serviço privado, pagaria sensivelmente o dobro. E chegava exactamente à mesma hora ao trabalho, e a casa. E ia / vinha provavelmente de pé ou com joelhos de estranhos a roçarem-se nos meus.