Pequenina, transparente, invisível. Diluída por entre o que brilha faustosamente, por entre a exuberância que te ofusca, sou grão de areia que parece só incomodar, causar desconforto, quando finalmente me sentes debaixo do calcanhar. Um empecilho, uma moléstia, insignificante até magoar.
Acenam-te com luzes, palcos, plumas, folhos e cetins e eu faço questão de não me esconder sob nenhuma dessas máscaras. Não tenho argumentos de monta, atractivos estéticos ou chamarizes sociais, nem sei bem como te detiveste, ao engano, na névoa invernosa que nos atirou para a mesma dimensão. Não tenho glitter nem purpurinas, não cresço em saltos altos nem te lanço escadas para te fascinar com uma inatingibilidade que é irreal. Não sou feita de magias ou perfeições. Sou de carne e sou de osso, de erros e defeitos mil, de cicatrizes e nódoas negras sentimentais. Estou no plano do real, em que o tempo passa, as distâncias doem, as palavras ferem e os silêncios dilaceram. Tropeço, zango-me, faço cara feia quando as lágrimas me apanham de soslaio, babo-me de raiva e de melancolia. Nem a distinção nem a elegância que gostas de ter a emoldurar a tua face visível, mas também ninguém me fez adorno ou bibelot.
Não sou uma mera personagem do teu romance, não deixo de existir quando fechas o livro e passas ao próximo, não me poderás conter em páginas que não te valem a resenha. Não sou a entrada vinte e três na colectânea das poetisas do tule e de coisa nenhuma que escrevem, deslumbradas, desfocadas, sobre o que acham que és tu. Não me contento com definições em versos desconexos sempre na primeira pessoa, extravaso em cada letra das palavras que me deste a custo. O que sou, valho e mereço escapa-te ao entendimento, como escapo eu das tuas teias, dos teus formatos quadriculados cheios de grades e margens e prisões.
Não nasci para ser princesa em contos de fadas, sou proletária, incendiária, de punho sempre erguido, tochas nos olhos e no coração, mestre tanto das fugas como dos choques frontais que te ofendem e te afastam. Não pertenço a este mundo onde cada um é só por si, das sombras e aparências com o verniz a estalar. Talvez deva agradecer-te as desfeitas, evidências inequívocas das palavras em que nunca quis acreditar.
Contra factos não há argumentos. Não é comigo que celebras vitórias, não é a mim que ofereces convites ou mimos, com quem esbanjas adjectivos e superlativos. Não me ouves quando te grito, na sofreguidão desesperada de querer salvar-te de ti. Não te mereço os sorrisos festivos, as fotografias ou os abraços sentidos, que o meu lugar é na sombra, nos intervalos do que é importante, nos espaços intermédios da vida real que corre em direcções sempre transversais a mim. Nunca me citaste as palavras nem recordas os gestos, que essa sedução em mim não colhe, mas sou eu quem te vê inteiro e em primeiro plano, aqui do alto do meu lugar que é nenhum. A quem iludiste desta vez, quem te preenche as frestas na ilusão de não estares só?
Não sendo jamais urgência nem prioridade, fui (e serei) sempre a que aplaude com mais força cada feito teu, a que na penumbra te ouve e conforta, a que cola os pedaços que outros racharam, com cuspo e com cola de bem querer. Na certeza cimentada de nunca deixar de te incentivar quando perdes a fé, de ir quando chamas, de dar o que não tenho e dar-te tudo, até à última gota do que sou, esgotei o plafond. Um tripé mantido na penumbra para sustentar o truque de magia que és tu. Cansei de só existir enquanto suporte, desnecessária quando te acompanham camaradas das horas boas, dos risos rasgados e festins.
A cada segredo que te adivinho, é sem medo nem pudor que me deixas do lado de fora. O gigantismo do teu coração não se compadece com os meus temores e ainda teima em gelar. Jamais serei animal abandonado que mendiga uma festa de quem não se detém para o olhar. Esbanjas a palavra amizade com quem só te conhece o mel, só para mim despes a capa, atiras a espada, berras e cospes fel.
Colho gargalhadas jocosas onde outros passeiam com excesso de corações pendurados nos bolsos, esquecida e ignorada, silenciada. Alheio às minhas dores e lágrimas colhidas por comboios frios, continuarás o teu trilho, seguro e firme; em cada degrau um grão de areia esquecido. Atrás da cortina onde me cansei de esperar, sozinha, sem tempo de antena, sem direito a nota de rodapé, demorou, mas percebi. "O meu lugar não é aqui."
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A palidez das emoções é-me insuportável, as palavras suaves e delicadas, névoas vazias de fogo, de pujança e de vida. Rendas debruadas a ouro, com minúcia na forma e vazias de conteúdo, não me servem, repelem-me o toque. São desperdício, diluem-se nos tempos rotos e nas costas voltadas, na erosão das lonjuras. São ofensivas as delicadezas que pairam sem se atravessar, por gentileza, a mendigar raspas do ar que é necessário para viver. Não sei ser dos murmúrios a meia luz, das meias verdades e das paixões mornas, em lume brando, hesitantes. Sou inteira de tudo ou de coisa nenhuma; dos dilúvios no deserto que ofusca, árido, ou do granizo no verão alagado. Não sei ser sem sal que me tempere, sem gritos que me calem, sem orgasmos que me abandonem à deriva em mim. Sem apertar demais os tais nós que se eternizam ou quebram, ou sem soltar os laços já lassos, para que fique só quem queira estar, de corpo presente, invasão possante e pertinente. Não quero ser um quarto, um terço ou metade. Sou todos os avos minha e partilho-me toda em sobressalto, em enxurrada, avalanche de verdade; não dou migalhas, restos ou aperitivos, ou o banquete é farto de lamber os pratos ou é jejum. O amor em part-time não é o meu lugar. Amo-te nas ausências e nas fugas, nas pausas e nos silêncios e mesmo quando tapas, com força, os olhos e ouvidos à passagem da minha sombra, mesmo quando me procuras noutras bocas e nos colos que não te chegam, que não te calam, não te sabem matar por dentro, de fome, de choque, na vertigem do toque. Deixo-te ir e nunca corro atrás porque te quero sempre comigo, porque de ti não fujo mais, subo a paredes caiadas em vácuo que caem no mar, arrasto redes na ilusão de te captar as sedes, num cheiro, num sopro, quase num estrondo o verbo que desisto de contornar. Uma vida sem sal, de contenções e convenções, de limites e regras, de cuidados exacerbados, a que sabe? Sabe a coisa nenhuma, a frustração, sabe a dúvidas e receios, a espartilhos e a cintos de castidade. Sabe a papel velho e mortiço, sabe a planos engelhados, a brasas apagadas e esterilizadas emoções. Que não se poupe no sal da vida, no sentir e mostrar. Modere-se tudo menos os sentimentos em erupção, a apatia insossa nunca será opção. Mesmo que a sede se instale, que assim se multiplicam os prazeres, o do sal e o da água fresca em resposta, a acicatar. Qualquer doçura com uma pitada de sal ganha volume e delícia, espessura, a sensualidade dum pó de malícia. Sejamos volúpia de línguas e de lábios, sejamos oceano na imensidão, peito aflito da cor opaca do infinito. Sejamos protagonistas de beijos sedentos, gelados, na pele salgada, nas bocas carnudas de paixão. Não me peçam para ser brisa obediente e contida. Sou vendaval, sou Ventania. Sou alvoroço sem rédeas nem gaiolas. Sou aquela que abre todas as jaulas e que liberta os prisioneiros dos grilhões de si próprios. Não me peçam a paz enquanto houver tiranos, eu serei a que degola os amos. Não esperem que consigam domar ou dominar-me, só eu sou dona de mim. Sou a mais doce que vira fera, com tanto de calmaria como de revolução, com igual dose de mel e de bagaço, embriagada e ática incógnita à toa na imensidão. Sei que tanto é demais, incomportável, que todos preferem açúcar puro, veneno maduro oculto, embrulhado em algodão. Sou sal, sou cristal de vida e fogo, saio fora dos riscos e ignoro os mandamentos. Mesmo sem aqueles a quem pertenço ainda sei voar; sigo sozinha se preferem ficar, mas sigo triste, órfã de lar. Sou o fumo de que troçam, o carvão que os ensombrece, sem vaidade, o chiste que ninguém soube decifrar. Sou o supérfluo excesso dispensado, à cautela, para não entornar. Sou aquela que derrete o gelo, aquela que nunca esquece, a que arde nas feridas, cardápio de dores da alma. Sou a impossível de amar.
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2017 foi um ano bom. Do caraças, mesmo. Insólito, como são sempre os melhores anos.
Apaixonei-me. Fiz Amigos para a vida toda, ou enquanto me queiram. Descobri coisas insuspeitas sobre mim própria, que me fizeram mudar uma série de paradigmas e desafiar-me a mim e ao que me rodeia. Tive uma série de problemas novos, é certo, mas o balanço final é que as coisas boas, que são quase sempre pessoas, multiplicam-se se deixarmos. Vi sororidade brotar de desertos improváveis, aprendi que o que eu quero pode e deve ser tão importante como o que os outros querem, arrisquei quase tudo e assumi o que queria e quero. Não perdi, mas também não ganhei e por isso não desisti. Descobri que há outros bichos raros como eu por aí (o que é um pouco assustador). Abri-me e pus a alma a nú perante desconhecidos. Cortei alguns laços que eram lassos. Perdi vergonhas. Por breves instantes, senti-me realmente especial e capaz de mudar o mundo. Fui à luta e a Luta continua.