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Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

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Febril, acordava em sobressalto, suada, ideias em ebulição confusa entre os sonhos carregados a carvão negro e o despertar para a escuridão de realidades que doíam com eco, nódoas negras subcutâneas. As palavras dele passavam em rodapé incessantemente, a comprimirem-lhe o peito como um corpete castrador. Sufoco, sim, por não poderem os olhos e as mãos conversarem em paz, sem risco de mal entendidos sem nexo. Por não conseguir curar, com os beijos milagrosos que sempre prometia, as mazelas antigas que lhe roubaram pedaços. A culpa de provocar culpa num peito culpado que ofendia por estar longe. Ofegava e dava murros no ar, raiva a jorrar de pequenez, de impotência amarga. Fechava os olhos com força e tentava apagar aquelas letras da memória. Sentia-se um ponto de  interrogação desnorteado, entre a razão e a angústia, entre o amor que lhe tinha e a raiva de não conseguir ser melhor. A música que devia devolver a calma e o sono era impossível, todas desaguavam numa memória passada, ou pior, futura, com o perfume dele. Suspirava e gritava para dentro, para ontem, nuvens surdas não obedecem a ordens. Tinha sede. O sorriso dele plantado no pensamento, erva daninha imune a pesticidas e tesouradas, sempre a despontar em cada esquina, matreiro como a tentação. Bebia sofregamente da torneira, como cadela amarrada num descampado, como se pudesse afogar as inquietações que a consumiam. Os lábios fendidos ardiam, pingavam os olhos, o coração lembrava-se de disparar, ou de pausar em cansaço, errático, desaustinado. A imagem da cara maltratada no espelho meteu-lhe medo. E se a vida toda, a partir daquele instante, fosse assim? Se aquela luta interna e eterna entre o querer e não poder ter se resumisse a décadas dobradas de angústia, de silêncios e de olhos inchados de ausências? As pernas tremiam, os joelhos ameaçavam fraquejar. De repente tinha frio, todos os pêlos eriçados, abstraídos dos chamamentos das cigarras que lá fora confirmavam o verão aos mais cépticos. Voltou a enrolar-se num casulo de lençóis e colchas, débil, prostrada. Não havia injecção, remédio ou mezinha que a pudessem poupar àquela enfermidade. A vacina falhara. Habituada a dores agudas, no esqueleto e na alma, inconformada com o diagnóstico, procurou no sol que nascia um remédio, um tranquilizante, um soporífero que anestesiasse o vendaval. Maleita crónica, anunciava o reflexo provocador do rio, como se ela desconhecesse os sintomas destas maldições em forma de gente que lhe troca todas as voltas, vira do avesso, desassossega e faz falta como o ar. Será para sempre então, aceitou. 

“Odeio gostar de ti”, confessou-lhe uma vez. Ele nunca fez ideia do quanto.

Expulsei-as, uma a uma, sem condescendência nem palmadinhas nas costas. Xô, não vos quero mais. Empurrei-as pelas escadas, pontapeei-lhes as barrigas, incendiei-lhes as sombras. São tóxicas, são ocas, ocupam todo o espaço, consomem a luz, prendem-me os movimentos. Não mais. Expulsei-as ou fingi, se alguém perguntar diz que nunca estiveram aqui.

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Não me bastavam as crónicas, ainda vou de encontro às outras.

Dói-me a burrice castradora com que tenho de lidar diariamente. Dói-me o Rossio. Dói-me cada oportunidade que deixei escapar por entre os dedos - foram poucas mas as únicas que podiam importar. E doem-me mais as dores que terei provocado.

 

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Nota prévia: Mais um post sério, desculpem lá qualquer coisinha mas às vezes tem de ser. 

Quando se tem dores crónicas é difícil estar de bom humor; a persistência da dor torna-nos pouco tolerantes, cáusticos e arrogantes, ou o que eu chamo Síndrome do Dr. House. Pelo menos estar sempre de bom humor, com vivacidade e energia para enfrentar cada manhã, com vontade de encarar o mundo de forma ligeira e jovial. (Se alguém por aí conseguir, faça o favor de partilhar a receita mágica.) A carga emocional e psíquica de viver permanentemente com dores (sempre, todos os dias, a todas as horas), umas vezes mais, outras vezes menos - mas sempre - custa, muitas vezes, mais do que a tolerância física à dor. Às tantas, as dores físicas deixam de contar como dor, passam a ser o "normal". Ajuda ter uma tolerância bastante grande de origem (felizmente, sempre tive; até não ter outra escolha senão tomar uma carrada de drogas diariamente, era daquelas pessoas que prefere aguentar sem tomar uma aspirina ou paracetamol que fosse - e depois soube o que era ter dores insuportáveis, completamente paralisantes, e o caso mudou de figura).

Falo por experiência própria, mas sem grandes autocomiserações porque, apesar de ainda não ser capaz de contornar sempre os efeitos "de dentro para fora" das doenças, levo uma vida normal (existem algumas restrições físicas, mas para já não me impedem de sair todos os dias para trabalhar, nem fazem com que alguém saiba o que se passa dentro de mim só por olhar). Prometi a mim própria que seria assim desde a primeira vez em que surgiram, em sequência, as palavras "doença crónica auto-imune", que não iria viver em função da doença - devo-o à minha dignidade e auto-respeito.

 

Tenho um exemplo próximo na família de alguém que se deixou vencer por uma doença crónica. E não é que a doença permaneça activa, trata-se de uma pessoa que teve um cancro e está em remissão há cerca de 25 anos, sem efeitos negativos por aí além, fisiologicamente falando. A coisa esteve muito complicada, arrastou-se, foi dramático, foi traumatizante, mas lá acabou por dar tréguas, e tudo faria crer que a doença tinha sido derrotada. Só que aquela pessoa passou a definir-se como quem teve um cancro (nem sequer diz cancro, a palavra maldita), ganhou medos de tudo (em última análise, de morrer e, portanto, de viver), tornou-se hipocondríaca, fraca, perdeu a garra. Ganhou psicoses e a fuga e lamentação como resposta primeira para todos os obstáculos. E por isso sim, a doença ganhou, a pessoa deixou-se sair vencida.

 

Este meu testemunho, se de mais não servir a ninguém, servirá como lembrete a mim mesma de que a minha vida não começa nem acaba na doença. Tenho demasiado por viver, por viajar, por amar, por escrever, para deixar que uns anti-corpos desnorteados me ditem o destino e me privem de viver a minha vida como eu bem entender. Era o que faltava! Eu não tenho medo de quase nada (aprendi que o medo atrapalha demasiado e tenho mais e melhor onde gastar energias), mas tenho medo de não viver, de me entregar ao que não posso alcançar e nem sequer tentar chegar aonde mereço. Eu não vou ser derrotada!

 

É uma derrota usar a dor e a doença como escudo para as dificuldades. É uma derrota a pessoa com dor crónica ser definida pela dor que carrega. É uma derrota quando as outras pessoas te dizem "coitada" quando se apercebem do cerne da questão. A última pessoa que exclamou "coitadinha" muitas, demasiadas vezes, foi uma médica. Alguém que deveria estar habituado a lidar com coisas bem mais dramáticas do que umas doenças crónicas que são debilitantes, sim, mas com que se vai aprendendo a viver no dia-a-dia, com algumas limitações, mas contornáveis. Isso, que parecendo que não, até podia ser uma forma de demonstrar empatia, feriu-me o ego. Remeteu-me imediatamente para a ocasião em que um professor duma pós graduação que fiz me deu os parabéns por ter tido uma nota que ele achou boa e, do modo que foi percebido pelo modo como o disse, não achou que eu conseguisse ter. Fiquei furiosa, como fico sempre que me tentam nivelar por baixo. Na vida como no percurso académico, não me inscrevo para me conformar com um 17, com uma vida boa "para quem tem tantos problemas"! Vou sempre tentar e dar o meu melhor para chegar ao 20, à vida estupenda que sempre desejei, com tudo a que tenho direito.

 

Eu não digo, normalmente, que tenho dores. Não me queixo. Quanto menos me queixar e falar disso menos me lembro que estas dores são minhas e não vão passar. Nunca. E menos os outros vão ter presente a imagem de mim como a rapariga que tem aquelas doenças de nome esquisito.

 

As dores, as doenças, não me definem. Eu não sou a rapariga que tem EA e hipotiroidismo e próteses de titânio pela coluna fora. Não gosto de dizer às pessoas que doenças são as que me fazem tomar uma mão cheia de medicamentos logo de manhã ou me impedem de participar em certas actividades. Por muito que custe ficar de parte, por muito difícil que seja, por vezes, lidar com uma série de preconceitos e rótulos (o outro lado das doenças que não se vêem)... É bastante preferível ser a rapariga irritadiça que quando está com os azeites diz tudo, como os malucos, é brusca, antipática, demasiado honesta e deixa algumas pessoas de boca aberta ("chocadas", ouvi dizer). Prefiro mesmo, mil vezes, ter fama de ser arrogante e ter mau feitio do ser a desgraçadinha. Rio-me todos os dias, sorrio todos os dias, espanto-me e comovo-me com a beleza extraordinária da vida todos os dias. Mesmo nos dias em que tenho vontade de gritar com toda a gente. E por isso, venço, todos os dias.

Meia noite, deixar texto a meio com medo dos sentimentos que recorda.

 

Arrumar cozinha, deixar mais algumas coisas preparadas para fazer a mala.

 

Ir a cambalear de sono para a cama. Dar voltas e voltas, antecipando fantasmas que virão, culpar as dores nas costas.

 

Duas e qualquer coisa, eventualmente adormecer.

 

Seis e trinta, ouvir vozes de dentro dos sonhos que são o despertador, carregar no botão errado e adormecer até ao próximo berro.

 

Duche, lavagens e esfreganços vários, cremes e básicos a correr. Primeira desilusão da manhã, o cabelo ficou uma merda ("Porque é que nada funciona comigo?"). Porra, esqueci-me que hoje não posso ir de calças de ganga, o que vou vestir? A primeira mancha negra que apanho no roupeiro terá de servir. Já não há tempo de comer, abrir janelas e voar escadas abaixo. Repôr nas caixas de correio a correspondência dos vizinhos que o carteiro insiste em deitar na minha caixa. Corrida para os transportes públicos, atrasados de novo, fantástico. Pelo meio uns minutos para adiantar mais umas páginas e anotar na agenda o que faz falta comprar (pão, leite, detergente para roupa). "Faz-me falta o doseador..." e pensamentos que tomam a curva errada. Metro cheio, vai-se de pé. Chegar ao trabalho já com pensamento nas mil coisas que têm mesmo de ficar finalizadas hoje. Caras ensonadas que chegam a conta-gotas. E-mail de colega a pedir que ligue com urgência. Precisava de colo e de desabafar, e pelo caminho pedir que se pense nela quando houver uma vaga. Vou ver o que posso fazer. Colo uns slides que o chefe enviou numa apresentação importante, afinal aquilo estava tudo engatado. Chefe chega de trombas, da cefaleia e mais uma noite mal dormida, tenho de lhe dizer que o que enviou está uma bosta, de ouvir as suas justificações (porque chefe pode errar, índio é que não) e quando me farto, agarrar naquilo, que não é trabalho meu, e fazer bem. Amiga em crise larga notícias bombásticas, desesperada, e depois não atende o telefone. Ufff! Outra colega pede ajuda, eu ajudo. E mais uma pede um formulário duma área que não é a minha há mais de um ano, também envio. Esqueceu-se de agradecer, porreiro. Despacho mais umas coisas, respiro fundo, vejo que uma das Professoras a quem pedi para tentar mudar datas de exame (porque calham 3 num dia e mais 3 noutro), diz em termos fofinhos "temos pena". Reclamo com a cabeleireira, quer uma 2ª oportunidade, tudo bem. São quase 11 quando consigo tomar o pequeno-almoço em 10 minutos. Não chego a sentar-me no regresso porque o chefe quer a minha aprovação numas alterações que está a fazer. Vejo textos meus serem apagados, para voltarem a ser escritos sem regras gramaticais ou ortográficas, em palavras diferentes que soam mal e voltam enfim a ser as que eu tinha colocado.  Inspiro, expiro. Corrijo os erros, trabalho encerrado, passo ao próximo. Lembro-me que ainda não tomei os medicamentos, vão com 5 horas de atraso. Mais urgências, segue o baile. Reunião com chefe. Hora de almoço, ainda na reunião com chefe. Almoço com colegas, conversas da vida, da morte, de trabalho e dinheiro, palavras corriqueiras e palavras fulcrais, entre guardanapos descartáveis.

 

De volta ao PC, colega de curso reclama que não atendi a chamada, queria dizer que saiu mais uma nota. Porreiro, outro 19. Mais trabalho sob pressão, outra ajuda a uma colega. Querem ver que andei a adiantar bagagem p'ro galheiro?! A puta da espanhola deve estar a gozar comigo, a cena marcada e confirmada há 8 meses e agora, dias antes, diz que se enganou no ficheiro!?! Sai disparada uma reclamação e em português, acabou-se-me o stock de diplomacia. Ligo para avisar quem de direito, sai-me do outro lado uma má notícia na pior altura. Disfarço, com a brutidão habitual. "Ai viram qualquer coisa na mamografia? Deixa lá vir o relatório, isso deve ser um gânglio inflamado, não sejas piegas." São poucas as vezes que me apetece dizer palavrões, e é a única coisa que consigo verbalizar depois de desligar o telefone. "Outra vez não, outra vez não." Não posso ir abaixo. Penso num filho da grandessíssima puta que tanto prometeu que sempre que eu precisasse estaria lá para mim e sempre que precisei nunca esteve, agora ainda menos. Ao menos esse já não me suga as energias, pelo menos de forma consciente. Acabo o trabalho, saio mais cedo do que é costume (só uma hora depois da 'minha hora'). Encontro-me com amiga, rumamos à inauguração da exposição de outra amiga, finalmente liberta e a perceber que é capaz de tudo quando se liberta de grilhões. Algumas caras conhecidas, a primeira coisa que oiço é que estou mais gorda. Obrigadinha, não tinha ainda reparado, os espelhos lá de casa partiram-se todos com o horror. Discurso de ir às lágrimas, ou sou eu que ando demasiado sensível. Tenho de sair, que os transportes duplicaram o preço e reduziram a frequência para metade. Bonito, metro interrompido. Esperam retomar em 15 minutos, a espera acaba por ser mais de 30. Cereja em cima do bolo, de quem é aquela cabeça ali ao fundo? Porra, só faltava mais esta. Enterro a cabeça no livro e viro as costas, deixando ficar só a dúvida, "se calhar era só alguém parecido". Não sei, nem quero saber.

 

Olha, o chefe tentou ligar. Deve ter aparecido uma merda qualquer para lixar os grandes planos de amanhã. Pergunto o que se passa. "Só queria dizer que a apresentação está perfeita." Isto é raro, note to self: "guardar mensagem para referência futura". A seguir acrescenta que o filho está doente, afinal parece que os planos vão mesmo pelo cano.

 

Nove da noite, só mais um transporte. Amiga a meio de crise existencial combina conversarmos na net, não pode ser ao telefone.

 

Nove e meia da noite, chego a casa. Ligo o PC enquanto os restos para o jantar aquecem no microondas. Falo para o boneco. Respondo a uma das raras mensagens. Engulo qualquer coisa com aspecto de comida, mas tenho é sede. Trouxe uma coisa para fazer em casa, do trabalho, mas já não tenho forças. Tenho estudos em atraso, menos forças encontro. Começo a escrever este post, o PC morre a meio. Os fios estão a descarnar. Talvez se não estivesse há 3 meses à espera que me devolvam a merda dos parafusos. Até os parafusos, porra, não tinhas melhor recuerdo para guardar que parafusos, o doseador de detergente, os panos de pó e os meus guaches? Porra, desaparece do meu pensamento, idiota. Onze e meia, a outra já não aparece, eu já dou cabeçadas na atmosfera.

 

Meia-noite outra vez.

 

 

 

Que post vazio, que vida vazia. Tantas palavras desperdiçadas.

 

 

 

Tantas voltas para um dia vazio, mais um. Tão cheio de nadas, tão pobre.

O sofrimento é péssimo, tanto na pele como na pele de quem se quer bem. Pelo menos para mim, que tenho uma inevitável capacidade de esponja: absorvo as alegrias e tristezas dos que me rodeiam e são queridos. Se estão contentes, fico contente, se estão a sofrer, eu sofro também.


 


Quando alguém mesmo muito muito próximo sofre horrores, vilanias terríveis, também eu preciso dum calmante e também choro entredentes. Estou tão desolada como se fosse na minha pele. Pudesse eu chamar a mim a tua dor e isentar-te dela, fá-lo-ia sem hesitar. Ao menos eu já estou habituada a desilusões deste calibre.


 


Fuck bananas.

Estou presa num loop. A enlouquecer, tonta, num loop que se repete ad eternum.

 

Os mesmos nomes, as mesmas caras, as mesmas frases. As aproximações, as fugas, as rejeições, o medo, os argumentos, as expectativas, os sorrisos, a audácia, o risco, a entrega, a paz, a ausência, o conflito, a dor, a mágoa, o perdão, a mágoa maior, o amor, a confiança, a desilusão, a ruptura, a dor maior, o luto, a revolta, o amor, a saudade, a dor, a desilusão, as fugas, a saudade, o amor, as cicatrizes, as aproximações, as fugas...

 

Consegui contigo, como nunca antes tinha conseguido, visualizar o futuro das imagens que me plantaste. Nós dois a correr mundo de mãos dadas e sorrisos ao alto, a chegada dos bebés que tanto me pedias, os nossos abraços cada vez mais estreitos, os sorrisos cada vez mais cúmplices, envelhecermos juntos no campo, na quietude que tanta falta nos faz. Visualizei netos a ouvirem embevecidos a nossa história, a mais linda de todas, passeios de bicicleta com aquele perfume do nosso rio, milhares de disparos de obturador a perpetuar o que foi nosso desde sempre, os passos gigantes nas promessas que nos fizémos.


Vi claramente todas as imagens.


E acreditei que seria assim. Tu fizeste-me acreditar. Tinhas a certeza, repetias. Era o nosso destino, que escolhemos de entre todos por ser o mais bonito, o mais certo, o único feito de luz.


 





Se já nem na minha cabeça podia confiar, se o nosso filme foi cortado e a bobine quebrou, que mais podia eu fazer?


No, you weren't for real. You should have told me.

Amor burguês





Havemos de engordar juntos.


 


Normalmente, toda a gente está demasiado preocupada em colocar a barra que diz "cliente seguinte", estão ansiosos, nervosos, têm medo que aquele que está à frente lhes leve os iogurtes, têm medo de pagar o fiambre daquele que está atrás. Enquanto não marcam essa divisão, não descansam. Depois, não descansam também, inventam outras maneiras de distrair-se. É por isso que poucos chegam a aperceber-se de que a verdadeira imagem do amor acontece na caixa do supermercado, naqueles minutos em que um está a pôr as compras no tapete rolante e, na outra ponta, o outro está a guardá-las nos sacos.


 


As canções e os poemas ignoram isto. Repetem campos, montanhas, praias, falésias, jardins, love, love, love, mas esse momento específico, na caixa do supermercado, tão justo e tão certo, é ignorado ostensivamente por todos os cantores e poetas românticos do mundo. Bem sei que há a crueza das lâmpadas fluorescentes, há o barulho das caixas registadoras, pim-pim-pim, há o barulho das moedas a caírem nas gavetas de plástico, há a musiquinha e os altifalantes: responsável da secção de produtos sazonais à caixa 12, responsável da secção de produtos sazonais à caixa 12; mas tudo isso, à volta, num plano secundário, só deveria servir para elevar mais ainda a grandeza nuclear desse momento.


 


É muito fácil confundir o banal com o precioso quando surgem simultâneos e quase sobrepostos. Essa é uma das mil razões que confirma a necessidade da experiência. Viver é muito diferente de ver viver. Ou seja, quando se está ao longe e se vê um casal na caixa do supermercado a dividir tarefas, há a possibilidade de se ser snob, crítico literário; quando se é parte desse casal, essa possibilidade não existe. Pelas mãos passam-nos as compras que escolhemos uma a uma e os instantes futuros que imaginámos durante essa escolha: quando estivermos a jantar, a tomar o pequeno-almoço, quando estivermos a pôr roupa suja na máquina, quando a outra pessoa estiver a lavar os dentes ou quando estivermos a lavar os dentes juntos, reflectidos pelo mesmo espelho, com a boca cheia de pasta de dentes, a comunicar por palavras de sílabas imperfeitas, como se tivéssemos uma deficiência na fala.


 


Ter alguém que saiba o pin do nosso cartão multibanco é um descanso na alma. Essa tranquilidade faz falta, abranda a velocidade do tempo para o nosso ritmo pessoal. É incompreensível que ninguém a cante.


 


As canções e os poemas ignoram tanto acerca do amor. Como se explica, por exemplo, que não falem dos serões a ver televisão no sofá? Não há explicação. O amor também é estar no sofá, tapados pela mesma manta, a ver séries más ou filmes maus. Talvez chova lá fora, talvez faça frio, não importa. O sofá é quentinho e fica mesmo à frente de um aparelho onde passam as séries e os filmes mais parvos que já se fizeram. Daqui a pouco começam as televendas, também servem.


 


Havemos de engordar juntos.


 


Estas situações de amor tornam-se claras, quase evidentes, depois de serem perdidas. Quando se teve e se perdeu, a falta de amor é atravessar sozinho os corredores do supermercado: um pão, um pacote de leite, uma embalagem de comida para aquecer no micro-ondas. Não é preciso carro ou cesto, não se justifica, carregam-se as compras nos braços. Depois, como não há vontade de voltar para a casa onde ninguém espera, procura-se durante muito tempo qualquer coisa que não se sabe o que é. Pelo caminho, vai-se comprando e chega-se à fila da caixa a equilibrar uma torre de formas aleatórias.


 


Quando se teve e se perdeu, a falta de amor é estar sozinho no sofá a mudar constantemente de canal, a ver cenas soltas de séries e filmes e, logo a seguir, a mudar de canal por não ter com quem comentá-las. Ou, pior ainda, é andar ao frio, atravessar a chuva, apenas porque se quer fugir daquele sofá.


 


E os amigos, quando sabem, não se surpreendem. Reagem como se soubessem desde sempre que tudo ia acabar assim. Ofendem a nossa memória.


 


Nós acreditávamos.


 


Havemos de engordar juntos, esse era o nosso sonho. Há alguns anos, depois de perder um sonho assim, pensaria que me restava continuar magro. Agora, neste tempo, acredito que me resta engordar sozinho.


 


 


 


José Luís Peixoto, in revista Visão (Janeiro, 2012)



 

Sim, já cometi erros. Os suficientes. Alguns bem grandes. E já sofri com erros alheios.

De todas as vezes aprendi qualquer coisa, sobre mim, sobre outros ou sobre alguma coisa.

E também aprendi quando perdoei erros que me magoaram. Aprendi quando pedi perdão.

 

É que é preciso ter humildade para aprender. Para tentar correndo o risco de se falhar, para aceitar a derrota, para assumir que se erra. E é preciso ter humildade quando se perdoa também, porque perdoar é saber que toda a gente erra, e que nós ta,bém errámos e vamos tornar a errar.

Não perdoar é uma atitude arrogante. E não digo que no perdão esteja implícita uma mensagem permissiva de voltar a permitir que o mesmo erro ou a mesma pessoa nos torne a afectar. Mas digo que o perdão é uma tolerância que traz sabedoria e traz paz.

 

Por saber tudo isto, por já ter alguns calos da vida, já perdoei muitos erros. Alguns demoram muito tempo a processar até chegar lá.

Os mais difíceis de perdoar são os que eu cometi, talvez porque quase todos os dias sinto as consequências na pele.

E os erros que foram cometidos contra mim por conta de erros meus, por quem já eu havia perdoado tanto e tantas vezes... Tenho a capacidade de perdoar dentro de mim, porque sei que sou capaz. Só acho que pode demorar dois ou três milénios...

Ele odeia que ela não responda às mensagens e e-mails que lhe envia com tanto carinho.


Ele odeia que ela pareça não sentir falta dele, a não ser quando acha que está em risco de perdê-lo.


Ele odeia saber que ela finge ser mais ocupada do que realmente é para não partilhar mais tempo com ele.


Ele odeia perceber que ela já estava em casa há hora e meia antes de ter pegado no telefone e, à pressa, dizer até amanhã.


Ele odeia que ela ache que ele lhe rouba tempo, privacidade ou liberdade.


Ele odeia que ela nunca se lembre de, por mimo ou graça, lhe enviar uma fotografia de que tenha gostado, um texto, comprar aquela insignificância que mostrasse que pensou nele.


Ele odeia sentir o desequilíbrio de quem carrega todo o peso das coisas.


Ele odeia que ela não escreva uma frase a pensar nele.


Ele acha que nunca será bom o suficiente para ela.


Ele sabe que nunca chegará aos calcanhares do outro em quem ela sorri quando recorda.


Ele odeia estar cativo dum amor assim.


 


 



 


 

Queria começar de novo. Queria limpar o coração (o meu e também o teu) das mágoas todas, mesmo das que já lá estavam antes. Queria não ter medo. Queria que nos apaixonássemos outra vez um pelo outro sem termos os pesos atrelados do que já passámos. Queria que puséssemos as mãos direitas numa parede e nos descobríssemos, queria que nos déssemos as mãos esquerdas e o corpo todo e a alma toda. Queria que voltássemos a ficar tão encantados um pelo outro. Gostava de ter noites de sorrisos eternos só por sabermos que existimos. Gostava que me escrevesses um pouco do tanto de ti, que te desses aos poucochinhos e que ficasses a braços com a avalanche do excesso de mim.


Gostava que voltasses a gostar de mim.




Queria que soubesses o que eu sinto. Queria que soubesses pôr-te no meu lugar e ter uma ideia do quanto dói. Queria que te superasses para que deixasse de doer. Que estivesses disposto a ir à Lua e voltar só para me devolveres o sorriso. Queria que não achasses que é só com palavras que se restaura o que se perdeu. Queria perceber-te, saber ler-te por dentro. Queria que me acreditasses. Queria que estremecesses de cada vez que a ideia de nunca mais me teres te cruzasse a mente. Queria que te lembrasses sempre de quando me disseste a sorte que tens por eu acreditar em quem tu és no fundo de tudo. Queria que não andasses a dizer aos teus amigos que está tudo bem. Queria que não tivesses medo do confronto. Que não poupasses nas palavras. Queria que a meio da noite tivesses a absoluta necessidade de me abraçar. Queria que não soubesses pela minha voz que estou cativa deste maldito amor que me consome. Queria saber que me amas. Queria nunca mais duvidar.


 


 



 


 

Aquela conversa do dia de Natal terá decerto sido uma esquizofrenia para que prontamente avançaste uma justificação (não uma desculpa). Pena que nunca tenhas justificado todos os outros dias em que não era Natal.


 


Destroçaste-me, toda. O coração, o orgulho. Aos poucos levaste tudo.


A seguir dedico-te um texto que não é meu, mas sabes que podia ser. Atenta nele.


Tens a certeza que te desejo o melhor, e estás certo. Mas também desejo que não destroces mais ninguém e que ninguém mais te dê importância suficiente para que isso aconteça.


 


Feliz Natal!


Last Christmas I gave you my heart


But the very next day you gave it away


This year, to save me from tears


I'll give it to someone special

PPP - Pill-Poping People




"Eu sou, claramente, uma gaja optimista. Já vivi mais tristezas em 36 anos que muitos de vocês encontrarão numa vida inteira. Não ser optimista e feliz seria quase uma sobranceria para com o que a vida me permitiu fazer e um sinal, claro, de muito pouca inteligência. Por isso me incomoda este mau estar geral, esta infelicidade endógena que nos apodrece e paralisa. Esta conversa da crise, da contenção que nos exigem com medidas que não entendo. Como me aflige olhar à volta e perceber que a depressão, a tristeza e a total demissão pela própria vida é mais valorizada que o seu inverso.


 


Dizer que se está deprimido passou a ser um sinal de status. Trocar referências de «médicos amigos» é desbloqueador de conversa. E contar, à mesa de café, os nomes dos comprimidos que se enfiam bucho abaixo é tão normal quanto pedir uma bica escaldada. E pergunto-me: desde quando é que ser-se infeliz é bom? Em que momento da nossa patética existência como comunidade e projecto social passou a ser cool ser-se ansioso, viver com medo e existirmos em dormência farmacêutica? E quando é que mudámos de paradigma e ser feliz, optimista, responsável pelo seu bem-estar passou a ser um tratado de estupidez e perca de tempo?


 


Agora que escrevo isto até entendo. Stroke of insight. Ser optimista não é ser pateta alegre nem ver a vida com lentes cor de rosa. Mas dá trabalho. Oh se dá. Dá aquele trabalho que ninguém pode fazer por nós. Não há cábulas, internet nem relatos que nos valham. Estamos nós, sem aditivos, e nós mesmos. E acreditem, eu sei o quanto isso pode ser assustador. Mas estar atento e consciente do que a vida nos traz é um processo compensador. Além disso, expliquem-me os infelizes e depressivos crónicos: o negrume tem funcionado?


 


A tristeza acontece, as questões infelizes aparecem, sem que possamos fazer nada. Mas cultivar a natureza de um sentimento que nos faz mal, que nos oblitera, nos confunde e nos mata, através de um automatismo de pill-popping - vão ao Google - sem mais trabalho nosso ou pedido de ajuda, parece-me pouco. Vivemos rodeados de PPP com síndrome de KKK - este acho que não precisam de ir ao Google. E cada um faz o que quer, obviamente. Mas não me fodam. Não me olhem de lado quando me proclamo feliz, quando me meto nas merdas new age porque a old age não me faz sentido ou quando escrevo textos destes porque sei, melhor que muita gente, o que é morrer e nascer de novo.


 


E se eu consigo, vocês também."


 


Sissi


 


 


Assino por baixo.

Aqui está minha vida - esta areia tão clara
com desenhos de andar dedicados ao vento.
Aqui está minha voz - esta concha vazia,
sombra de som curtindo o seu próprio lamento.
Aqui está minha dor - este coral quebrado,
sobrevivendo ao seu patético momento.
Aqui está minha herança - este mar solitário,
que de um lado era amor e, do outro, esquecimento.


 


(Podia ser a minha vida também...)