"Blocos de gelo também derretem", prometera ela quando ele tornara a insistir no silêncio de uma solidão vazia e oca, erguida só com tristeza em vez de tijolos e com punhos cerrados em vez de braços abertos. Ele achou que seria a excepção, não queria deixar-se tocar, queria ficar só, não queria ser igual aos demais, seria sublimação antes de fusão. Ela também sabia que ele era diferente de todos os outros, mais especial, mais sensível às brutalidades quotidianas, mais carente e mais capaz de lhe virar o mundo de pernas para o ar sem aviso prévio. Ave rara de asas quedas, tolhidas numa gaiola que ele próprio escolheu fechar. Foram tantas as vezes que ela lhe estendeu a mão, o calor do seu peito e afagos abafados, para encontrar quase sempre silêncios, lágrimas e gritos também, um ou outro esboço de abraço ou de beijo, mas por regra, silêncios, que o que ela não antecipara era que fosse ela a transformar-se em gelo quando ele finalmente derretesse.
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"Mostra-me que o sol não brilha negro" pediu ele, despido. Ela apontou e mostrou-lhe o Sol de todas as cores, mas também lhe mostrou a Lua em gratidão pela noite e céus estrelados. Ela admira a persistência do Sol mas trata por tu a inconstância da Lua, que sempre a acolhe nas dúvidas e desejos. Ele não sabe que é ele quem traz o Sol no sorriso e é sempre ele que ela vê no horizonte quando namora o rio. Ela sabe que se vai queimar mas foi buscar um pedaço ao Sol para lho entregar.
Ela roubou um pedaço do Sol e, com dedos de carvão, atirou-o para ele apanhar, lá longe onde sempre está. Ele viu o pedaço de Sol a voar na sua direcção. Era fogo puro. Era quente como os abraços que ela tinha no caixote dos amores negados com o nome dele. Ele teve medo de queimar os dedos e os cabelos, ou talvez só tenha constatado que aquele pedaço singelo de Sol não lhe merecia o esforço, e não esticou um braço, não ergueu os olhos, só se agachou e deixou o Sol queimar outro lugar. Quando a Lua veio espreitar, ela já era só cinzas e ele chorava por não ter sol a brilhar.
O Sol continuou a nascer e a brilhar, às vezes atrás de nuvens. Ela tinha perdido o respeito pelo Sol, como sempre acontecia com os conformistas da vida, com quem encolhe os ombros, com quem se acostuma a viver pela metade. Como se atrevia o Sol a não protestar terem-lhe retirado um naco, a continuar como se o mundo seguisse igual, a sempre surgir onde era esperado, sem atrasos? Ia resignar-se a ser para sempre a constância fiável que dele se esperava? Tanto fogo, tantas explosões de alma e poder de fazer girar planetas à sua volta, e afinal era um imprestável, uma ovelha seguidista, incapaz de mudar de rota um dia, de girar ao contrário um instante, de fazer uma greve, uma birra que fosse. Que liberdade é essa de nunca sair dos eixos, nunca contestar, nunca exigir o que é seu? A liberdade de permanecer agrilhoado sem sequer agitar as correntes de aço que seguem dominando o universo e minando as Revoluções? Desprezo, só conseguia ter desprezo por uma estrela coxa que continua servindo cegamente os mestres, curvado a regras e a bons costumes.
Ele já há muito não a procurava. Marcava presença quando e só se ela o chamava. Na verdade, ele só a procurara quando ela o negava, quando ela ainda tinha medo das palavras, de se queimar, de ficar retida. Era o seu único medo e sempre se confirmava que era absolutamente fundamentado. Por muito que tentasse lutar contra as vontades do coração, acabava sempre por ficar colada às resistências, qual mosca electrocutada pelo fascínio da luz. Ele tinha ficado encantado com a sua liberdade e as suas ganas, com o seu vestido de ventos e vontades. Disse-lhe, afoito e apavorado, que ela tinha partido a muralha, apenas para passar quase todo o resto da vida a tentar erguê-la de novo, pedra a pedra (ás vezes atirava uma ou outra, ela não se desviava), com frieza gélida e musgos húmidos que não servem de cola.
Ambos sabiam que as mensagens crípticas que se dedicavam a largar no mar, sem garrafas a garantirem a integridade da mensagem, ou em aviões de papel toscos, destinados ao colapso, só batiam de frente no peito do outro. Ela deixou de o chamar. Cansada de nunca ser a sua vez de colher as palavras mais bonitas, os elogios mais abertos, de ter tempo de antena ou um mínimo de visibilidade. Nunca era ela nas fotografias, nunca era ela a aplaudida, para ela nunca mais houve risos tolos ou piropos mal disfarçados. Sim, também ela se revoltou contra si e a sua impassividade na espera de alguma coisa incerta que nunca vinha. Deixou de aguardar a sua vez para ser oportuna, admirada, desejada. Jamais se sujeitaria novamente ao papel da amigalhaça de coração destroçado na fila das migalhas de afecto.
Talvez tivesse chegado sem aviso o dia em que os recomeços se viam cansados de o ser. Talvez a distância ganhasse espaço para arrumar um ou outro vislumbre da paz do abraço que nunca chegou, como fiapos de cabelo a esvoaçar ao vento, rebeldes, apesar das mil estratégias para os domar. Talvez navegar fosse só isso, sem rumo ou destino, só embarcar e deixar ir, devagar, onde a corrente nos quiser levar. Talvez um dia a luz não seja hipócrita e não se deixe usar para esconder à vista de quem souber ver o que é tão simples e puro. Talvez nesse dia não seja necessário fingir.
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"Isso acabou." "Não haverá próxima vez."
Ela não lhe via os olhos mas sabia que ele provavelmente acreditaria nas suas próprias palavras e sabia de cor que os olhos dele vagueavam cabisbaixos, à procura da certeza que ela tinha na voz, ou de uma confirmação divina de que bastavam as suas melhores intenções para lhe evitarem os desvios.
Ele não sabia que mentia porque não é preciso mentir quando todo o caminho ainda por percorrer existe num plano passado a limpo em cadernos quadriculados, e está fotografado de antemão em película por revelar. Ela tinha o condão de ler as pessoas e de saber, com uma certeza inexplicável que nunca se enganara, tudo o que precisava de saber, qual mística Blimunda. Ainda assim, insistia em dar o benefício da dúvida, uma e outra e mais outra vez. Recolhia os cacos do seu ego estilhaçado e lambia as próprias feridas, quase pedindo desculpa por incomodar com as marcas de sangue nos degraus.
Que teimosia era aquela que a fazia avançar sem hesitações quando sabia, por ter visto por dentro, que cada novo tropeção lhe esfolaria novamente os joelhos já em osso?
Que perdão concedido à partida era aquele que, por amor ou condescendência, garantia a quem (sem querer?) a agredia, repetidamente?
"Vive as coisas com naturalidade" - aconselhava ele antes de mudar de assunto, com ingenuidade forçada, como que a dar uma odiosa palmadinha nas costas, e talvez seguro de que uma próxima agressão não seria ainda a última, não seria ainda o limite, não seria ainda suficiente para ela sair sem bater com a porta, de mansinho, a meio de um Domingo distraído e solarengo em que nenhuma promessa se havia cumprido.
Enquanto descia as escadas devagarinho, a esconder os olhos do Sol que a abraçava e com toda a bagagem enrolada debaixo do braço, ela pensava nele e em quão desorientado ele se encontraria nos meses todos que ia demorar a notar que ela não regressaria, tinha saído para sempre, sem dar explicações, empurrada com toda a violência por uma leve palmadinha nas costas.
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Faz hoje um mês de espanto pela espinha abaixo. Roubaram-me um beijo a meio caminho de outro destino. Tentaram roubar mais beijos, abraçaram-me com força e com ternura. Fizeram-me festas nos braços e no ego. Ouvi coisas bonitas pingar de uma voz de mel, que sorria, toda minha. Faz hoje um mês que a minha cabeça deu um nó e qualquer coisa selvagem se desamarrou do coração. Sou arrastada a galope do temporal, sem saber se naufrago ou afundo.
Fui roubada naquele dia.
Faz hoje um mês de tormenta, de infinito e de poesia. Faz um mês de Ventania.
(Estou de volta.)
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Os primeiros beijos contam toda a história da relação que selam. Um pouco como a máxima da ontologia recapitular a filogenia em reverso. O quando, o onde e o como dizem tanto sobre os enamorados.
Às vezes penso nestas coincidências que o Universo nos apresenta, ou que teimamos em escarafunchar até as descobrir.
À porta de casa, como nos filmes, beijo de cinema, longo e lento, uma mão que levava a chave para se despedir, num final já antecipado - e que afinal saiu tão ao lado.
Um atrevimento num comboio lá do outro lado do mundo, com a noite estrelada a lambuzar de azul dois rostos que brilhavam, espantados, mais que nunca, além da projecção imaginada. Ao som de carris a cantar às constelações, a marcar com sinais atabalhoados a surpresa na vida de cada um. Algo mágico que só funciona noutro continente e com outra pele, como um capítulo inteiro entre parêntesis rectos - a retomar um destes dias, bem sei.
E depois os beijos roubados, de repente, a meio de uma rua da cidade, no dia (instante?) em que nos conhecemos, coração a palpitar e pernas a tremer - e agora, o que é que eu faço?!
Beijos inesperados, antecipados num outro cenário ou com outro guião, que saem do plano, que trocam as tintas e as voltas - sou pião, barata tonta, nómada sem mapa. Ainda não lhes sei antever rumo certo, ou suave. Destinados a ser desde a primeira sílaba, inevitáveis, fatais como o destino de que tentamos escapar a todo o custo. Como se acreditássemos em fados, como se não fosse o nosso âmago cristalizado em qualquer coisa sem nome certo, alma ou coração ou quem somos, que nos empurrasse para aquele momento, aquela fuga. Desastre, ruína, sangue e entranhas a escorrer, e tudo está certo e no seu lugar, que o único desfecho possível é morrer de amor de todas as vezes.
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Estou com problemas de expressão. Ora porque me faltam as palavras, ora porque sobram as tantas coisas que queria dizer-te. É que as palavras são pequenas, são poucas e indignas do que te quero dizer. Queria dizê-lo com olhares e sorrisos pendurados ao peito, queria que os lesses com avidez e te lambuzasses em cada sílaba. Nem todas doces, algumas mais amargas, como o tempero que nos traz de volta ao inverno, que te permite comparar as realidades que tens e os sonhos que podem ser teus, nossos.
A incerteza move-me, sabes que adoro aquela adrenalina da descoberta pela descoberta, a dúvida e as possibilidades exponenciais que me significam sonhos sem rédeas. Pesadelos e dores, também tenho encontrado. Mas não me queixo senão quando a escuridão não me permite ver mais além. E tu és a luz. Iluminas e arrepias, calor doce e pura ventania.
Queria dizer-te que sei. E que estou dentro de ti. Que quando te sentes a perder o fio condutor, sou eu. Que quando a lógica impera, também sou eu. E que quando sentes a minha falta, não sentes apenas a falta da companheira de aventuras. Queria que fosses tu a reconhecer a capacidade que tens de fazer alguém feliz. Queria que te entregasses ao sabor dessa maré que tens dentro, que pousasses esses remos obstinados. Os planos antigos que traçaste eram bonitos, eu sei. Aconteceu como não devia. Faz as pazes com o passado, com os erros e as razões. Começa de novo, planos novos, que nunca poderão ser iguais... mas serão planos onde cabes tu por inteiro, onde nenhuma dimensão tem de ser vergada. Onde possa caber todo um mundo além do teu.
Queria dizer-te que gostava que me desses flores. Que cometesses uma daquelas loucuras anunciadas, tão tuas. Que me convidasses para um passeio. Queria contar-te da vontade que tenho de te oferecer presentes de Natal todos os dias, de levar-te sumo de laranja à cama e de nunca mais ter saudades tuas.
Queria que pudesses apagar algumas palavras, que as quisesses retirar para sempre. Queria que pedisses desculpa.
Queria dizer-te para perderes esse medo. Queria ensinar-te a amar de novo, melhor. Queria mostrar-te o que me comove no nascer do sol e queria aprender todos os teus risos e olhares. Queria caminhar lado a lado contigo, de dedos entrançados nos teus.
Sei que te encontras nas minhas palavras, sei que a perturbação também chega a esse lado. Queria dizer-te para não resistires... Para arriscares. Para experimentares. Queria que, se no futuro houvesse lugar para arrependimentos, que os houvesse pelo momento em que valeu a pena e não pela ausência duma estória.
Queria dizer-te que há dias em que um beijo vale tudo. E que há beijos que me dão vontade de chorar.
Deixa-me ser tua namorada por um dia. Assim como que à experiência. Tirávamos as dúvidas e eu podia morrer em paz, tendo sido feliz mesmo que só por um dia. Só pedia um dia. Um dia que ia querer esticar ao infinito para lhe caber tudo o que quero fazer contigo, tudo o que quero dar-te. E dava-te os meus dias, todos, inteiros, e as minhas noites com lua e estrelas. Ama-me um dia. Um que seja. Pausa a vida que te afasta de mim, esquece tudo o que já aconteceu e dá-me um dos teus dias. Como se eu fosse novidade. Deixa-te amar por um dia. Tenho mais beijos que minutos, mais sorrisos que palavras. Só um dia. Acordamos juntos e chamamos o sol para as nossas mãos. Não precisas de bagagem nem relógio, traz só o coração limpo e dois braços abertos. Deixa-me fazer dum dia o primeiro nosso dia. Todo nosso, de verdade. Mesmo que a seguir tornes a partir sem olhar para trás. Queria um dia. Um dia em que não tivesse de chamar por ti com todas as energias que já não tenho. Um dia de ti.
Sorríamos sem saber porquê. Roídos pela dúvida, pela surpresa. Borboletas no estômago, todos os clichés, conferiam. O futuro estava ali no beiral da porta. Tu tinhas medo do confronto com a verdade, sempre tiveste. E eu não conseguia respirar sem a esventrar. Disse-te que só havia uma maneira de saber. Como sempre, atirei-me de cabeça e agarrei-te pelo pescoço no caminho.
Devia ter sabido logo que os teus olhos arderam na minha pele em vez de me invadirem a alma. Fiquei presa nos segredos verdes e indolentes desses teus olhos, anzóis em mim. Devia ter percebido quando seguia à tua frente e queria que estivesses a meu lado. Soube, quando antecipei que as promessas eram só palavras e que as palavras não eram todas. Quando as tuas cartas deixaram de ser folhas toscas arrancadas com paixão a cadernos maltratados e passaram a ser postais com corações. Sabia, e não to disse, quando as flores me desiludiam, o tempo e os momentos nunca chegavam e os beijos tinham hora marcada. E fui eu que tentei fintar as inevitabilidades e substituir magia por esforço, também fui eu que caí das nuvens. E a seguir percebi que sempre quis ir para além das estrelas. ...
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O meu Falecido* está apaixonado. Aposto! Porque o conheço quase tão bem como ele a mim e, quando ele se apaixona não há como esconder, mesmo com distâncias e silêncios. Torna-se na criatura mais romântico-lamechas que possam imaginar. :) Do género canções românticas até à exaustão, flores e passarinhos. Comédias românticas e mimos. Muito Nicholas Sparks. (Pois, nada a ver comigo.) Estou feliz por ele e quase me apetece passar por cima duma série de coisas e abraçá-lo. Fico mais descansada. Não que me sentisse culpada (até porque foi ele quem tomou a melhor decisão das nossas vidas, de me "abandonar" quase no altar), mas porque acho que ele andou muito tempo a procurar o que não se encontra assim, ou surge ou não, e temia que a insistência nessa procura lhe esgotasse os sonhos que eu conheço bem. E caramba, gosto dele, é uma pessoa boa (com os seus defeitos como os comuns mortais, naturalmente), foi uma pessoa tão importante no meu passado, fez-me feliz, deu-me momentos mágicos, pediu-me em casamento (twice), apoiou-me e aturou-me as loucuras, foi um grande companheiro. E merece encontrar quem o complete e faça feliz como eu nunca faria. Que seja desta vez!!!
*Petit nom para tipo de ex que morreu no coração. Não confundir com Parvalhão, outra coisa, mais ambígua, que, à falta de melhor, descrevo com as palavras da minha querida Eva: "Os Parvalhões são aqueles por quem estamos apaixonadas."
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Há qualquer coisa nos primeiros beijos que nunca se esquece. A emoção, a surpresa, a interrogação...
É que os beijos falam, dizem coisas que as palavras não podem, dizem ao que vêm e as promessas que trazem. Acho mesmo que os primeiros beijos retratam aquilo em que as relações se tornam...
O meu primeiro beijo dos primeiros beijos foi sôfrego de tanta ansiedade, foi diferente do que havia imaginado, não foi doce e mágico e puro e tímido. Mas foi o primeiro e jamais o esquecerei. Uns anos depois chegou o primeiro beijo terno e carinhoso e quase escondido, de surpresa, como se quer. O mais cinematográfico dos meus primeiros beijos foi num hospital, cheio de paixão e encanto e analgesia, e marcou um amor cúmplice muito bonito, um amor que também terminou com um beijo de despedida. E o meu favorito dos primeiros beijos foi na bochecha (imagine-se!), às escuras, com tanta ternura e carinhos na ponta dos dedos que só não pareceu mais irreal porque o cenário era do mais insólito que há memória. E recordo os que se lhe seguiram, recordo o que eles diziam e o que tentavam calar. E já não sei onde meti as memórias do último, talvez de tanto desejar que não o tivesse sido.
E depois há os beijos que ficaram por trocar, e esses dizem estórias de mil e uma noites que mais vale calar.
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Virada para dentro, como sempre tinha sido a minha postura aqui, só o via a ele. E a mim, com ele, sem ele. Ele, na presença e na ausência. E decidi deixar de falar com ele por estas linhas, ou fingir, porque é sempre ele que me sabe ouvir e ler nas entrelinhas, mesmo se não o chamo à acção. Voltei-me para fora, para lhe virar as costas. Vou espreitando por cima do ombro, porque sei que ele lá está, que ainda lá está, que sempre estará. Onde estiver eu, estará a presença dele, e a ausência, maior e mais sentida. E assim vou-me virando para fora, voltando as costas também a mim, a uma parte incontornável de mim. E vou fingindo que não quero saber, vou fingindo que não me pesa, fingindo que não me afecta ele perguntar por mim. E se preciso for virar-me do avesso, eu viro. Se é a fugir que deixo longe a tristeza e um coração inerte, continuarei a fugir, para além do horizonte.
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Soube pelos sorrisos. E sei, porque o conheço tão bem, que aqueles sorrisos são de ocasião, são honestos, mas não são aqueles que brilham com uma luz que vem de dentro da alma. Sei, porque já lhe vi muitos sorrisos. E cheguei a ver um ou outro que se escapuliram pelo meio das realidades, esses sim, sorrisos plenos de magia. Pode mais ninguém saber, mas sei eu. Aqueles sorrisos podiam ter sido outra coisa, uma coisa que não é, nem nunca passa a ser por força da vontade que seja.
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Detesto sabê-lo a ir. Porque vai sem mim, porque não sei quem vai ao seu lado. Provavelmente, uma substituta de mim, que ele ainda não sabe o que já lhe ensinei sobre as impossíveis substituições. Porque o tempo passa e aumenta a distância à última memória de ter ido comigo. Porque já não é a mim que escolhe para ir. E eu, preciso de ir indo. Preciso de ir longe. Se não com ele, irei sem ele. Não tornarei a ficar à espera, essa lição já está bem aprendida há muito tempo.
Vou. Se há coisa de que gosto, é de ir.
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Porquê, em cada foto, a vontade de me colar em beijos a ti? Esses olhos de amêndoastristes que me gritam e me imploram que os devolva à vida, quando os lábios dizem não.
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Nunca tinha sentido a pele a reivindicar tanto um toque, como um pólo dum íman debaixo dela, da pele, a chamar, a instigar o outro. Duas peles que têm apetite pela outra, que partilham temperaturas e o mesmo cheiro.
É muito mais do que a pele, porque é tudo o mais no seu expoente máximo. Mas é, sem dúvida, toda a pele. Toda a mordaz tentação a que o tacto não consegue resistir.
É a química, as feromonas que se encaixam tão na perfeição. É o fogo líquido que exige ser saciado.
É a textura de leite nos ombros e naquela curva que eu gosto, no pescoço. É um lóbulo da orelha mordiscado, e depois o outro, lambido. É a ponta do meu nariz a acariciar os mamilos, a subir até ao queixo, a aspirar com vagar e dedicação os aromas das maçãs do rosto ali ao lado.
É a doçura que derreto e faço pingar em cada gesto e o picante dos sentidos atiçados.
É a pouca vergonha com que me toca. É o umbigo perfeito a beijar o meu num namoro provocante. É a ousadia do joelho que me arrepia as coxas.
É a força nos braços que me guiam e os lábios sempre tímidos a revelar segredos monossilábicos. É a masculinidade imponente, a rebentar de vigor. São os dentes esfomeados nos meus seios e os dedos curiosos nas minhas costas. É a língua, deliciosa e exploradora. São os dedos, enterrados na posse dos corpos.
É o arrepio do abraço pela cintura e a audácia do ritmo inconstante.
Dois desejos entrelaçados, num festim de sexos húmidos e de carnes palpitantes.
É o sal de lágrimas e suor.
É o momento em que o tempo pára para contemplar o prazer.
É a expressão dos olhos fechados, límpidos, inegáveis. É a posição em que dorme cansado e a vontade de tornar a cansá-lo.
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Sim, continuo a sonhar acordada com uma cena digna de filme, vista de bem perto, mas ao lado.
Ela chega a casa mais tarde do que o costume, desejosa de um duche e do conforto do sofá. Está alguém de pé, junto à porta, de costas. Ela sobe os degraus com a chave na mão e prepara-se para evitar contacto visual com o suposto vizinho ou visita de vizinho. Ao aproximar-se, reconhece a posição, as pernas, o casaco. O coração tenta saltar pela boca no momento em que esta ia começar a balbuciar um “boa noite” tímido e incógnito. Não chega a dizer nada. Ele vira-se e os olhos dele encolhem, de surpresa, alívio e terror. “Pensava que não me querias abrir a porta. Boas noites.” “O que estás aqui a fazer?” – responde ela com o tom mais seco que consegue e a chave ainda imóvel a meio caminho da fechadura. E são as últimas palavras que trocam naquela noite.
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Já pensei um milhão de vezes em pedir desculpa. Mas não peço. Não posso pedir só porque lhe sinto a falta e lamento as consequências. Pedir desculpas de quê? Se não fiz nada que não fosse exactamente o correcto, aquilo em que acredito e se assumi sempre todas as minhas opções e opiniões. Não peço desculpas por ser quem sou, pensar e sentir como penso e sinto. Orgulhosa? Sim. E sobretudo segura de estar certa, pura e em paz com a consciência.
Ele tem muitos motivos para me pedir desculpas a mim. E eu fui sempre desculpando, sem os pedidos. E continuo a magicar desculpas para negar que uma pessoa que tanto idealizei pode ter falhas daquela dimensão.
Já pensei um milhão de vezes. Como um meio para atingir um fim. Mas teria de passar por cima dos meus princípios. E ele pode até merecer quase tudo, pode até ser tão especial que eu (ainda) ache que valha a pena os sofrimentos, as mágoas e as lágrimas. Mas nada, nem mesmo o grande amor da minha vida, vale mais que os meus princípios.
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Sinto-me a viver uma vida dupla. No trabalho, ou perto de outras pessoas, comporto-me como sempre. Bem disposta, mau feitio, sempre pronta a ajudar, concentrada, empenhada, irritável, arrogante e com as sensibilidades à flor da pele. Ninguém diria que por dentro me sinto desfeita. Os melhores amigos sabem que algo está errado. Quando perguntam, digo-lhes. Os outros, que não perguntam, sabem só que ando com o olhar mortiço e posto no infinito. Continuo a rir como dantes, mas não a sorrir, dizem. Continuo sempre disponível para ouvir, mesmo quando tenho outras urgências a requerer atenção. Ninguém sabe o aperto que tenho no peito e que me faz querer deixar de respirar. Poucos seriam capazes de compreender. Ninguém diria que uma fotografia, uma canção, uma memória, uma cena na TV, são capazes de apertar o peito até que o ardor o faça rebentar. E eu rebento juntamente com os cacos de coração e sangue e tripas, a cada dia que passa. E tenho medo de chegar o dia em que não consiga levantar-me e erguer a cabeça para viver o lado B, para viver a personagem que não posso ser eu. Já o tenho dito, tenho saudades de mim. E dele, tantas. A ideia do "nunca mais" apavora-me. Porque meti na cabeça uma ideia vinda das profundezas da alma: que o sentido da vida está nos olhos dele, que o amor mora nos beijos dele, que a sensualidade está debaixo da pele dele. Ninguém diria que as minhas definições pudessem ser tão redutoras.
Mais que a ausência, mais que uma separação, dói que ele nunca tenha sentido o suficiente, nunca tenha gostado de mim o suficiente, que eu nunca tenha sido boa o suficiente para lhe merecer uma brecha de oportunidade. Ninguém diria que há palavras que mesmo a toda a distância ainda magoam e martelam os pensamentos, e ninguém diria que podem doer tanto, paralisar o coração, dar vómitos e mandar ao chão os joelhos desistentes.
Ninguém diria que não passa um minuto em que não me lembre, e tente esquecer. Ou que quando sonho acordo com o cheiro dele na almofada e posso jurar que sinto uma mão quente nas costas e a respiração dele no meu pescoço. Tão racional, tão pragmática que eu era. Ninguém diria que ainda espero estar um dia já em pijama quando a campainha tocar e for ele que me chega sem palavras, ao reencontro de tudo o que nunca chegou a ser.
Nem eu diria.
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São 5 da manhã. Estou a jantar. Fui fazer uns rissóis de frango com caril e feijão com linguiça. Tenho vontade de lhe enviar um sms e pedir para vir cá ter, ajudar-me a comer aquele feijão todo. Ele não gosta muito de rissóis, mas nunca provou dos meus, que não são fritos.
Acordei pelas 02:30, estava ele a chegar a casa de outro alguém. Talvez tenha pensado em mim e me tenha acordado com a força do pensamento.