Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

origem

Tornou a sentir-se desconsolada. Pediu desculpa por não o ter abraçado, tinha sido essa a sua intenção, mas acabou por ficar meio esquecida, meio sem jeito, entre alguma pressa de subir para o autocarro que chegou cedo demais e uns acenos de cabeça para dissimular o desapontamento perante a distância que as escusas e recusas tornavam mais nítida de quando em vez. Na verdade, pedia desculpa a si própria por não ter agarrado uma pequena oportunidade de fingir que existia simetria onde se sabia não existir. Oportunidade de guardar o calor desse abraço como recordação preciosa que um dia serviria de testemunho de que alguma coisa bonita havia passado por ali. Por vezes necessitava, como de ar, de acreditar que tinha tido, por uma vez na vida, alguma poesia a brotar só porque sim, sem sede de tapar um lugar vago, sem finalidades utilitárias, sem comodismo ou resignação, sem mentiras ou fatalidades a esterilizar o terreno. Por vezes sentia-se mera ferramenta de um propósito estudado, oleada a custo por esporádicos beijos secos, isentos de emoção. Ou um conforto, um doce que não fazia salivar mas lá servia de prémio de consolação, deglutido sem particular entusiasmo, com a frustração inerente de quem suspira por um refinado e leve éclair mas só tem na mesa bolachas Maria moles e sem graça. Ou um penso rápido, descartável logo que a ferida esteja fechada ou novos golpes peçam tratamento fresco.
Sempre acreditou que o que não é necessário é supérfluo, o que não é desejado deve ser descartado, e ia alargando os passos para se afastar antes que já não tivesse como se poupar a uma rejeição.

éclair.jpg

Descartada. Desnecessária. Sozinha.

Achou-se novamente sozinha, sem ter quem a tomasse nos braços com vontade de abraçar com força e restaurar o que havia sido quebrado. Não que alguém o conseguisse. Deixou os pensamentos vagabundearem pelos caminhos proibidos que evitava quando embrulhava todas as fragilidades num canto e trancava as portas. Tremia de frio recordando outros abraços que tinham ficado por dar, em dias quentes e suados. Voltou a conciliar as coincidências com uma geografia pouco ousada que conta as mesmas histórias. Ali mesmo, onde o autocarro já havia terminado o seu percurso, as conversas já se tinham demorado no casulo abafado que era o automóvel onde se tinham beijado meses antes, ele ofegante e ela aterrada. A angústia e tensão andavam domadas por aqueles dias, coisa rara. Não quis estragar tudo com uma pequena manifestação da paixão insensata que a perseguia como a própria sombra. Ele falava de viagens, ela via-se a explorar os antípodas com ele pela mão por entre as copas das árvores. Ele contava episódios tristes, ela queria desdobrar o universo em dois para resgatar a infância do menino grande quebrado, romper-lhe a gaiola a que se agarrava. Ele a ecoar a voz grave que sabia que lhe agradava tanto, e ela com ganas de se atirar ao pescoço dele e calá-lo com beijos. Foi a última vez que um abraço podia ter mudado tudo, criado um desfecho inédito escrito por pássaros azuis, tão provável como os comboios mergulharem nos céus em serpentinas de destinos trocados.

bolacha.jpg

"Blocos de gelo também derretem", prometera ela quando ele tornara a insistir no silêncio de uma solidão vazia e oca, erguida só com tristeza em vez de tijolos e com punhos cerrados em vez de braços abertos. Ele achou que seria a excepção, não queria deixar-se tocar, queria ficar só, não queria ser igual aos demais, seria sublimação antes de fusão. Ela também sabia que ele era diferente de todos os outros, mais especial, mais sensível às brutalidades quotidianas, mais carente e mais capaz de lhe virar o mundo de pernas para o ar sem aviso prévio. Ave rara de asas quedas, tolhidas numa gaiola que ele próprio escolheu fechar.
Foram tantas as vezes que ela lhe estendeu a mão, o calor do seu peito e afagos abafados, para encontrar quase sempre silêncios, lágrimas e gritos também, um ou outro esboço de abraço ou de beijo, mas por regra, silêncios, que o que ela não antecipara era que fosse ela a transformar-se em gelo quando ele finalmente derretesse.

0gelo.jpg

0solelua.jpg

 

"Mostra-me que o sol não brilha negro" pediu ele, despido. Ela apontou e mostrou-lhe o Sol de todas as cores, mas também lhe mostrou a Lua em gratidão pela noite e céus estrelados. Ela admira a persistência do Sol mas trata por tu a inconstância da Lua, que sempre a acolhe nas dúvidas e desejos. Ele não sabe que é ele quem traz o Sol no sorriso e é sempre ele que ela vê no horizonte quando namora o rio. Ela sabe que se vai queimar mas foi buscar um pedaço ao Sol para lho entregar.

Ela roubou um pedaço do Sol e, com dedos de carvão, atirou-o para ele apanhar, lá longe onde sempre está. Ele viu o pedaço de Sol a voar na sua direcção. Era fogo puro. Era quente como os abraços que ela tinha no caixote dos amores negados com o nome dele. Ele teve medo de queimar os dedos e os cabelos, ou talvez só tenha constatado que aquele pedaço singelo de Sol não lhe merecia o esforço, e não esticou um braço, não ergueu os olhos, só se agachou e deixou o Sol queimar outro lugar. Quando a Lua veio espreitar, ela já era só cinzas e ele chorava por não ter sol a brilhar.

O Sol continuou a nascer e a brilhar, às vezes atrás de nuvens. Ela tinha perdido o respeito pelo Sol, como sempre acontecia com os conformistas da vida, com quem encolhe os ombros, com quem se acostuma a viver pela metade. Como se atrevia o Sol a não protestar terem-lhe retirado um naco, a continuar como se o mundo seguisse igual, a sempre surgir onde era esperado, sem atrasos? Ia resignar-se a ser para sempre a constância fiável que dele se esperava? Tanto fogo, tantas explosões de alma e poder de fazer girar planetas à sua volta, e afinal era um imprestável, uma ovelha seguidista, incapaz de mudar de rota um dia, de girar ao contrário um instante, de fazer uma greve, uma birra que fosse. Que liberdade é essa de nunca sair dos eixos, nunca contestar, nunca exigir o que é seu? A liberdade de permanecer agrilhoado sem sequer agitar as correntes de aço que seguem dominando o universo e minando as Revoluções? Desprezo, só conseguia ter desprezo por uma estrela coxa que continua servindo cegamente os mestres, curvado a regras e a bons costumes.

Ele já há muito não a procurava. Marcava presença quando e só se ela o chamava. Na verdade, ele só a procurara quando ela o negava, quando ela ainda tinha medo das palavras, de se queimar, de ficar retida. Era o seu único medo e sempre se confirmava que era absolutamente fundamentado. Por muito que tentasse lutar contra as vontades do coração, acabava sempre por ficar colada às resistências, qual mosca electrocutada pelo fascínio da luz. Ele tinha ficado encantado com a sua liberdade e as suas ganas, com o seu vestido de ventos e vontades. Disse-lhe, afoito e apavorado, que ela tinha partido a muralha, apenas para passar quase todo o resto da vida a tentar erguê-la de novo, pedra a pedra (ás vezes atirava uma ou outra, ela não se desviava), com frieza gélida e musgos húmidos que não servem de cola.

Ambos sabiam que as mensagens crípticas que se dedicavam a largar no mar, sem garrafas a garantirem a integridade da mensagem, ou em aviões de papel toscos, destinados ao colapso, só batiam de frente no peito do outro.
Ela deixou de o chamar. Cansada de nunca ser a sua vez de colher as palavras mais bonitas, os elogios mais abertos, de ter tempo de antena ou um mínimo de visibilidade. Nunca era ela nas fotografias, nunca era ela a aplaudida, para ela nunca mais houve risos tolos ou piropos mal disfarçados. Sim, também ela se revoltou contra si e a sua impassividade na espera de alguma coisa incerta que nunca vinha. Deixou de aguardar a sua vez para ser oportuna, admirada, desejada. Jamais se sujeitaria novamente ao papel da amigalhaça de coração destroçado na fila das migalhas de afecto. 

Talvez tivesse chegado sem aviso o dia em que os recomeços se viam cansados de o ser. Talvez a distância ganhasse espaço para arrumar um ou outro vislumbre da paz do abraço que nunca chegou, como fiapos de cabelo a esvoaçar ao vento, rebeldes, apesar das mil estratégias para os domar. Talvez navegar fosse só isso, sem rumo ou destino, só embarcar e deixar ir, devagar, onde a corrente nos quiser levar. Talvez um dia a luz não seja hipócrita e não se deixe usar para esconder à vista de quem souber ver o que é tão simples e puro. Talvez nesse dia não seja necessário fingir.

 

0sol.jpg

é muito subjectivo. Protestei tanto que não fazia sentido, nunca fez, e cada vez faz menos sentido. Mas já não importa porque fazer sentido nunca foi importante.

Depois de tanto que se passou sem se ter passado nada, voltei a reler as coisas tão bonitas que me dizias há tão pouco tempo. Parece que foi há décadas e permito a confissão das saudades de me sentir como me fazias sentir. Faz parte do exercício de exorcismo, passar por cima de cada ponto, remoer para escaqueirar e varrer porta fora. Medir a distância do que prometia ser ao que nunca foi - anos-luz! Em menos de um fôlego passei do tudo, dos planos e promessas, à transparência indiferente de coisa nenhuma; ao silêncio - obrigada pelo silêncio.

Prefiro mil vezes saber que sou nada à interrogação, às meias palavras, reticências e desculpas vazias. Não faz sentido? A indefinição é apenas mais uma forma de indiferença, de unilateralidade; é apenas mais uma violência.

1f3823885128a2caddd25d92138ddd81.jpg

knees.jpg

"Isso acabou." "Não haverá próxima vez."

Ela não lhe via os olhos mas sabia que ele provavelmente acreditaria nas suas próprias palavras e sabia de cor que os olhos dele vagueavam cabisbaixos, à procura da certeza que ela tinha na voz, ou de uma confirmação divina de que bastavam as suas melhores intenções para lhe evitarem os desvios.

Ele não sabia que mentia porque não é preciso mentir quando todo o caminho ainda por percorrer existe num plano passado a limpo em cadernos quadriculados, e está fotografado de antemão em película por revelar. Ela tinha o condão de ler as pessoas e de saber, com uma certeza inexplicável que nunca se enganara, tudo o que precisava de saber, qual mística Blimunda. Ainda assim, insistia em dar o benefício da dúvida, uma e outra e mais outra vez. Recolhia os cacos do seu ego estilhaçado e lambia as próprias feridas, quase pedindo desculpa por incomodar com as marcas de sangue nos degraus.

Que teimosia era aquela que a fazia avançar sem hesitações quando sabia, por ter visto por dentro, que cada novo tropeção lhe esfolaria novamente os joelhos já em osso?

Que perdão concedido à partida era aquele que, por amor ou condescendência, garantia a quem (sem querer?) a agredia, repetidamente?

"Vive as coisas com naturalidade" - aconselhava ele antes de mudar de assunto, com ingenuidade forçada, como que a dar uma odiosa palmadinha nas costas, e talvez seguro de que uma próxima agressão não seria ainda a última, não seria ainda o limite, não seria ainda suficiente para ela sair sem bater com a porta, de mansinho, a meio de um Domingo distraído e solarengo em que nenhuma promessa se havia cumprido.

Enquanto descia as escadas devagarinho, a esconder os olhos do Sol que a abraçava e com toda a bagagem enrolada debaixo do braço, ela pensava nele e em quão desorientado ele se encontraria nos meses todos que ia demorar a notar que ela não regressaria, tinha saído para sempre, sem dar explicações, empurrada com toda a violência por uma leve palmadinha nas costas.

 

No outro dia escrevi para mim própria o seguinte:

 

"É difícil conter a vontade de te mandar beijos aleatórios a qualquer hora, despedir-me sem abraços nem lábios colados. É difícil manter uma capa de aparente sangue frio e descontracção quando o coração aos pulos ameaça desintegrar-se em salpicos. É muito difícil não te contar da vontade de fazer planos a dois e das outras vontades que ainda me assombram. Podias ser menos perfeito, podias não me ler os pensamentos, podias não ter sido desenhado à minha medida. Facilitaria a minha tarefa. Assim, sobra-me apenas a esperança de que venhas a ser um calhorda para poder odiar-te em paz."

 

Dia após dia, constato repetidamente o que sempre soube e nunca escondi, nomeadamente de ti. Não tenho vocação para relações superficiais e ainda menos para mentir, esconder ou ocultar. Sou o que sou, quem não gosta pode pôr à borda do prato (como tu). Não vou deixar de ser quem sou. Não vou esconder que (ainda) gosto de ti e sempre que me der na real gana digo-o ou faço o que bem entender. Beijos mil.

1503480418925562_tall.jpg

Porque hoje é dia 29. Se pudesse voltar atrás, já sabes o que faria. O primeiro momento teria sido diferente e talvez a partir daí tudo tivesse sido diferente também. Mesmo com todas as complicações e frustrações, mesmo virada do avesso e sem bússola, e mesmo sabendo que nada é exactamente o que parece, mas antes tudo o que o instinto me diz. Em voltando àquele outro dia 29, faria hoje tudo diferente, sem resistência nem hesitações. Atirava-me de cabeça para os teus lábios e deixava-me ficar aninhada nos teus braços até serem horas da vida real. Não largava. Não me afastava. Tu ficavas à mesma com o meu perfume nas mãos, mas as nossas mãos já não ficariam vazias. Nunca mais vazias.

8622826549_39e098d515_b.jpg

Odeio que sejas perfeito, talentoso e provocador. Odeio a torrente inconstante que és, num dia comportas escancaradas de emoção e no outro o deserto mais árido. Odeio que me tenhas apanhado de surpresa e que te tenhas entranhado em mim. Odeio que sejas birrento e mimado e que queiras tudo como tu idealizas, quando queres, sem dares espaço às necessidades dos outros. Odeio as saudades que tenho tuas e tu não tens minhas, odeio a falta que me fazes, odeio a poesia que pediste e depois apagaste. Odeio que tenhas tanto poder sobre mim, que as tuas palavras me rachem de cima a baixo ou me encham de luz. Odeio que me conheças tão bem sem me teres conhecido o suficiente. Odeio a tua retórica à prova de bala, o mel da tua voz, odeio o teu sotaque adorável e a maneira como franzes a testa. Odeio a tua barba desalinhada longe dos meus dedos, odeio as tuas dentadas. Odeio, mais que tudo, as tuas fugas, as tuas urgências e os teus silêncios. Odeio que estejas em todo o lado, em todas as canções, em cada memória do que quero repetir para poder viver tudo de novo mas contigo. Odeio o avesso em que me tornaste. Odeio a inevitabilidade do desastre que eu sou.

 

O primeiro me chegou
Como quem vem do florista:
Trouxe um bicho de pelúcia,
Trouxe um broche de ametista.
Me contou suas viagens
E as vantagens que ele tinha.
Me mostrou o seu relógio;
Me chamava de rainha.

Me encontrou tão desarmada,

Que tocou meu coração,
Mas não me negava nada
E, assustada, eu disse "não".

O segundo me chegou
Como quem chega do bar:
Trouxe um litro de aguardente
Tão amarga de tragar.
Indagou o meu passado
E cheirou minha comida.
Vasculhou minha gaveta;
Me chamava de perdida.

Me encontrou tão desarmada,
Que arranhou meu coração,
Mas não me entregava nada
E, assustada, eu disse "não".

O terceiro me chegou
Como quem chega do nada:
Ele não me trouxe nada,
Também nada perguntou.
Mal sei como ele se chama,
Mas entendo o que ele quer!
Se deitou na minha cama
E me chama de mulher.

Foi chegando sorrateiro
E antes que eu dissesse não,
Se instalou feito um posseiro
Dentro do meu coração.

 

O problema dos lugares é que ficam tatuados nas memórias, acoplados aos cheiros, às emoções [coração no túnel, fora do peito], ao tacto, ao som de cada palavra [tuas dentadas, bochechas salgadas]. Não se consegue dissociar o lugar das memórias fortes, felizes ou infelizes, e isso gera toda uma expectativa inconsciente de que os lugares, só por existirem, asseguram para a eternidade os sentimentos que outrora testemunharam. Por isso se recomenda não voltar aos sítios onde já se foi feliz. O cérebro adora encontrar padrões na realidade que apreende e espera a reprodução daquela outra felicidade [os beijos de nuvem, boca macia de volúpia]; claro que o mais certo [o amor não é física, não se reduz a explicações nem a fórmulas matemáticas] é a realidade não encaixar na expectativa. Se a História se repete é por falha no guião, alheio à natureza mutável do mundo e dos homens [podia bem ser a tua mulher]. Culpa da memória que vai lapidando e erodindo as recordações, às vezes forjando algum pormenor [as tuas mãos nas minhas mãos, o meu nariz aninhado] ou submergindo-o por inteiro.

Insisto na teimosia [camarada]. Lugares há em que deambulo todos os dias, vão massacrando pela repetição da ausência, raspando ao de leve a pele com uma lixa suave e meiga [a tua barba negra, os caracóis], mais e mais, até a ferida aberta já não ter pele nem carne nem osso nem sangue nem vazio [fome de ti]. Comprarei um seguro contra desgostos. Uma mezinha para me untar, inteira, loção de aço, à prova de corações partidos e promessas de poesia [Teresinha]. Não tenho como atravessar os mesmos lugares de primeiros beijos [tão doces] e joelhos no chão, com os cacos espalhados, enterrados.

Como é que se esquece, como é que se cala, como é que se ignora que estamos a ir no sentido oposto - e não era nada disto que eu queria [à nora]? Caramba, como é que se respira?!

19866484_10155482276534913_1797819644_n.jpg

 

Um nome não é nada além de um aglomerado de sons, não tem significado intrínseco até lho atribuirmos. Ninguém deixa de ser quem é por ser chamar João ou José. Mas é quando ouves o teu nome ser dito por outra boca que o nome faz toda a diferença. Na entoação dos outros podes ouvir todos os discursos da história, se escutares atentamente. Os meus instintos sanguinários, que deixei de reprimir por ter permitido o espírito ser adulto e assumir a paixão pela destruição, gritam o vosso nome com paixão e faíscas, gratidão e doçura. Com vontade de dinamitar cada sílaba desse nome que dá e tira sem pedir permissão, de lançar ácido no acento e transformar em nada o desvio que vive em mim. Gosto que digas o meu nome. Completo ou não, com diminutivos palermas ou fofinhos, mas gosto que me chames pelo nome. Que saibas que sou eu e mais ninguém. Nem Alexandra nem Maria, sem margem para equívocos. Gosto que o sussurres baixinho, em súplica, ou que o digas com esse tom sério de sobrolho franzido, como quem quer repreender mas só me quer prender, chamar à razão, colar-me ao chão. Sabe que não podes! Eu só sossego quando quero, se me tentas agarrar eu vôo em vendaval. Desfaço-te em mil folhas de papel, as letras alvoraçadas, borrões de notas graves aos trambolhões. Todos os nomes são poesia se uivados à lua, soltos à toa. Que nomes tens, que nomes me dás? Incendeia-me o sangue, dobra-me, esmaga-me, estala-me os ossos, derrete-me. Escreve o meu nome nas paredes da rua, trarei a picareta para as fazer ruir. Destroços de ti nas minhas mãos, todo pó, todo ilusão.

A Revolução não é feita só de tiros nem de cravos. A Revolução também é feita de beijos que atingem em cheio o peito -  uns ferem, outros matam - e de beijos perdidos, disparados sem mira e sem pontaria, para o ar.
A Revolução não se acompanha só de música de intervenção. Também se instiga com estrofes melosas cantadas baixinho ao ouvido, com poemas de Cortázar, e com a canção do bandido.
A Revolução sou eu, foi o que ele disse. Não acreditas? Ou tens medo de ir à luta sem armas?
Quero cuidar-te. Lamber as tuas feridas.
O amor não oprime, ou não é amor. E não havendo maior Revolução que o amor, também não existirá amor maior do que a transformação revolucionária do que está errado, injusto e triste. Eu sou a Revolução, tu és a Revolução. Seremos mártires ou carrascos, mas jamais amordaçados, jamais apenas vítimas sem nome, águas estagnadas e conformadas. Não me renderei.

18425018_1881394972136640_3845682733902916017_n.jp

Faz hoje um mês de espanto pela espinha abaixo. Roubaram-me um beijo a meio caminho de outro destino. Tentaram roubar mais beijos, abraçaram-me com força e com ternura. Fizeram-me festas nos braços e no ego. Ouvi coisas bonitas pingar de uma voz de mel, que sorria, toda minha. 
Faz hoje um mês que a minha cabeça deu um nó e qualquer coisa selvagem se desamarrou do coração. Sou arrastada a galope do temporal, sem saber se naufrago ou afundo.

Fui roubada naquele dia.

Faz hoje um mês de tormenta, de infinito e de poesia. Faz um mês de Ventania. 

(Estou de volta.)

1500590985849576.jpg

Olhar para o calendário consegue deixar-me ainda mais boquiaberta. Foram precisos apenas 20 dias (menos, bem menos) para questionar quase tudo. Do avesso, repito, foi o que me aconteceu. Virada do avesso.
Talvez tenha sido precipitação, mas já sou crescida o suficiente para não ter medo de mergulhar. Não sei mergulhar, não sei suster a respiração e desconheço os segredos das sereias lá no fundo dos oceanos, mas sei que os travões da razão não podem nada contra o sonho. É apenas e só pelo sonho que vamos, que ninguém se iluda. Se pudesse fazer chegar conselhos a mim própria numa viagem ao passado, dizia-lhe isso, em jeito de confirmação do que já sabia há muito e teimo em contrariar. Aliás, pudesse eu e espetava com essa verdade na minha própria tromba diariamente, com força, para doer.

Se o sonho se materializa, ali à tua frente, sem plano e sem rede, num qualquer Largo do Regedor, atira-te de cabeça. Não o deixes escapar, porque talvez nada volte a ser feito dos mesmos sonhos que aqueles, no mesmo plano terreno, porque não há outro daqueles e em havendo, que importa, se é aquele o teu sonho, o único que queres viver, com que queres ir à luta e mudar o mundo. Se o sonho te quiser beijar, não fujas. Beija-o com toda a vontade que tens - tanta!, como nunca antes tiveste. Agarra-te ao pescoço dele e não largues. Roça-lhe os dentes pela barba, agarra-lhe as duas mãos e diz o que estás a calar, até hoje. Faz todas as promessas que não podes fazer, dá por completo o que tens tanto medo de dar, aceita o que é bonito e genuíno - e teu se o quiseres. Sem garantias de nada, só com a subtil magia da antecipação de ter o mundo todo, ou tudo o que interessa do mundo, naquelas duas mãos que te querem, que te procuram desde sempre. Se te chamarem quando segues para norte, fica. Deixa de armadilhar o caminho enquanto dormes e de inventar desvios. Se acaso tiveres o privilégio de sentir o sonho a teu lado, tão real, de mãos dadas e com os lábios colados aos teus, não penses. É quando pensas demais que falas demais e dizes o que não queres para ouvir o que queres. Tão independente, tão aventureira e destemida em tudo o resto na vida, e encolhes-te toda quando o amor te puxa. Pensas que não é verdade, que não mereces, e borras-te toda com medos mil. Tanto tempo passado a lamentar fugas alheias e rejeitas o sentido disto tudo só porque vem numa hora difícil, sob formatos inéditos, com dificuldades acrescidas. Sabes bem que isso não vale, quando o fim vale muito mais. As Revoluções não se fazem sem vítimas. Venham os cravos. O que vale é o Sonho. Pelo sonho é que vamos. Cola-te ao sonho como se lhe pertencesses mais do que o sonho pertence a ti, cobre-o de beijos em rajadas, navega nas barbas dele, manda-o ao chão indefeso, entrelaça os teus pés nos dele, adormece-o com festas nos caracóis.

1500915326852065.jpg

Os primeiros beijos contam toda a história da relação que selam. Um pouco como a máxima da ontologia recapitular a filogenia em reverso. O quando, o onde e o como dizem tanto sobre os enamorados.

Às vezes penso nestas coincidências que o Universo nos apresenta, ou que teimamos em escarafunchar até as descobrir.

À porta de casa, como nos filmes, beijo de cinema, longo e lento, uma mão que levava a chave para se despedir, num final já antecipado - e que afinal saiu tão ao lado.

Um atrevimento num comboio lá do outro lado do mundo, com a noite estrelada a lambuzar de azul dois rostos que brilhavam, espantados, mais que nunca, além da projecção imaginada. Ao som de carris a cantar às constelações, a marcar com sinais atabalhoados a surpresa na vida de cada um.  Algo mágico que só funciona noutro continente e com outra pele, como um capítulo inteiro entre parêntesis rectos - a retomar um destes dias, bem sei.

E depois os beijos roubados, de repente, a meio de uma rua da cidade, no dia (instante?) em que nos conhecemos, coração a palpitar e pernas a tremer - e agora, o que é que eu faço?! 

Beijos inesperados, antecipados num outro cenário ou com outro guião, que saem do plano, que trocam as tintas e as voltas - sou pião, barata tonta, nómada sem mapa. Ainda não lhes sei antever rumo certo, ou suave. Destinados a ser desde a primeira sílaba, inevitáveis, fatais como o destino de que tentamos escapar a todo o custo. Como se acreditássemos em fados, como se não fosse o nosso âmago cristalizado em qualquer coisa sem nome certo, alma ou coração ou quem somos, que nos empurrasse para aquele momento, aquela fuga. Desastre, ruína, sangue e entranhas a escorrer, e tudo está certo e no seu lugar, que o único desfecho possível é morrer de amor de todas as vezes.

1500831439290137.jpg

 

Estou com problemas de expressão. Ora porque me faltam as palavras, ora porque sobram as tantas coisas que queria dizer-te. É que as palavras são pequenas, são poucas e indignas do que te quero dizer. Queria dizê-lo com olhares e sorrisos pendurados ao peito, queria que os lesses com avidez e te lambuzasses em cada sílaba. Nem todas doces, algumas mais amargas, como o tempero que nos traz de volta ao inverno, que te permite comparar as realidades que tens e os sonhos que podem ser teus, nossos.

A incerteza move-me, sabes que adoro aquela adrenalina da descoberta pela descoberta, a dúvida e as possibilidades exponenciais que me significam sonhos sem rédeas. Pesadelos e dores, também tenho encontrado. Mas não me queixo senão quando a escuridão não me permite ver mais além. E tu és a luz. Iluminas e arrepias, calor doce e pura ventania.

Queria dizer-te que sei. E que estou dentro de ti. Que quando te sentes a perder o fio condutor, sou eu. Que quando a lógica impera, também sou eu. E que quando sentes a minha falta, não sentes apenas a falta da companheira de aventuras. Queria que fosses tu a reconhecer a capacidade que tens de fazer alguém feliz. Queria que te entregasses ao sabor dessa maré que tens dentro, que pousasses esses remos obstinados. Os planos antigos que traçaste eram bonitos, eu sei. Aconteceu como não devia. Faz as pazes com o passado, com os erros e as razões. Começa de novo, planos novos, que nunca poderão ser iguais... mas serão planos onde cabes tu por inteiro, onde nenhuma dimensão tem de ser vergada. Onde possa caber todo um mundo além do teu.

Queria dizer-te que gostava que me desses flores. Que cometesses uma daquelas loucuras anunciadas, tão tuas. Que me convidasses para um passeio. Queria contar-te da vontade que tenho de te oferecer presentes de Natal todos os dias, de levar-te sumo de laranja à cama e de nunca mais ter saudades tuas.

Queria que pudesses apagar algumas palavras, que as quisesses retirar para sempre. Queria que pedisses desculpa.

Queria dizer-te para perderes esse medo. Queria ensinar-te a amar de novo, melhor. Queria mostrar-te o que me comove no nascer do sol e queria aprender todos os teus risos e olhares. Queria caminhar lado a lado contigo, de dedos entrançados nos teus.

Sei que te encontras nas minhas palavras, sei que a perturbação também chega a esse lado. Queria dizer-te para não resistires... Para arriscares. Para experimentares. Queria que, se no futuro houvesse lugar para arrependimentos, que os houvesse pelo momento em que valeu a pena e não pela ausência duma estória.

Queria dizer-te que há dias em que um beijo vale tudo. E que há beijos que me dão vontade de chorar.

veru.jpg

(publicado inicialmente a 26.12.2009)