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Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

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Balbuciaram duas ou três sílabas quando ele entrou. Teve de tocar à campainha, já havia entregue as chaves da casa no dia em que formalizaram a escritura e a casa passou a estar só em nome dela. O gato preto, Malaquias, espreguiçou-se e levantou-se pachorrento da pedra do parapeito da janela do quarto, que deixava de estar fresca com a incidência do sol do início de tarde. A última coisa que os unia, além do filho que fizeram juntos uma década antes, estava por fim a ser arrumada, devolvida ao seu lugar. Ele estendeu o livro de páginas amareladas e capa gasta, num tom de laranja que sugeria já ter sido vermelho. 
- Desculpa, parece que foi à guerra... Deixei-o ao sol muitas vezes, levava sempre na mochila quando ia... Quando saía por uns dias.
- Não tem importância, Miguel. – mentiu ela em voz pequenina e despachada.
Esticou o braço e pegou rapidamente no romance sem interesse que ele lhe havia oferecido pelo seu décimo oitavo aniversário, receando que um movimento mais lânguido denunciasse o tremor eléctrico que sentia por todo o corpo. Largou com suavidade na cadeira próxima o volume que lhe entregava aquele homem estranho que tinha sido seu amigo, confidente, namorado, depois noivo e marido durante alguns anos, até se tornar apenas uma cara familiar, que reconhecia das fotografias que ainda mantinha, por respeito ou solidão, nas cómodas e paredes. Sabia tudo deste homem, onde nascera, os nomes completos dos irmãos e pais e tios, a cor da porta da casa onde viveu na juventude, os pratos preferidos e a aversão que tinha ao sabor da hortelã, o jeito como coçava a testa quando tinha sono; porém, não o conhecia. Já não o conhecia nem sabia nada dele. A desabituação de um quotidiano que deixa de ser partilhado pode ser fatal quando a distância se instala, mais do que entre endereços, entre duas vozes caladas. O fosso entre aquelas duas vidas antes entrelaçadas tinha-se tornado fundo demais, sem pontos de contacto, todas as pontes ruídas, deterioradas pelo tempo e por bafios acumulados.
- Bom, então vou andando, não é? Na sexta-feira venho buscar o Pedro para o fim-de-semana, como combinámos.
- Então vá, não te atrases. Na sexta-feira, digo. O menino está ansioso por ver o quarto novo lá na tua casa. Não fala de outra coisa.
- Sim, eu sei. Tu também podes lá ir ver, pintámos o quarto de verde, está giro.
Iniciou um sorriso quase entusiasmado e depois pareceu-lhe despropositado. Que ideia tão descabida, convidar a ex-mulher para ir à casa onde vivia já com a namorada. Pausou.

O cabelo dela recebia da janela raios transversais de sol que nele acendiam um fogo alaranjado a emoldurar o queixo fino, escorrendo em fiapos pelo pescoço e pelos ombros encolhidos. Por um fragmento de instante, ele vislumbrou a miúda apagada com quem tinha dado o primeiro beijo na adolescência. Franzina, de voz aguda e débil como o corpo, cara sardenta e olhos mortiços. Viu-a então e agora como uma boneca de trapos que precisava de ser salva duma espécie de abandono, que se não fosse trazida à vida definharia prostrada, amarelecida e crespa como o Outono fazia às folhas das árvores, num banco de jardim ou em qualquer outra plateia de onde os picos de acção só são observados e aplaudidos, ancorada aos receios ou a uma qualquer irrealidade paralisante.
Ela passara toda a sua vida na hesitação, não experimentando a água até ser puxada para o mar, à espera que alguém lhe desse permissão para rir, para existir. Sentia que nunca tinha feito nada para conquistar o direito de ser dona de si, caminhava esgueirando-se dos obstáculos, como se a pedir licença para ser feliz, em bicos de pés, para não incomodar. Quando ele a olhou nos olhos antes de a beijar pela primeira vez, não resistiu, nem saberia como. Até a respirar o fazia de mansinho, ligeiro, quase sem se notar. Ele tinha salvo a menina tímida que não sabia quem era, injectou-lhe um fôlego fresco e encantado com os seus beijos e planos a dois. Mostrou-lhe que o mundo era dela se ela o quisesse, e ela ia sempre com ele para onde ele a levasse. De mãos dadas, ela tinha a direcção e o rumo que ele indicasse. Sem a mão dele a guiá-la, sentia-se perdida e sem propósito novamente. Naquele instante que sentia fatal como um ponto final, sentia que tinha falhado na sua única missão de vida: ser uma mãe exemplar, uma esposa dedicada. Só tinha de se ter mantido no plano. Quando, seis anos antes, ele tinha aceite uma proposta profissional a dois mil quilómetros, ela fez o que achou que esperavam dela. Aceitou a decisão que ele comunicou, sem mostrar sequer a mágoa que a roía de nem ter sido consultada. Afinal, era um bom dinheiro que entraria no orçamento, e não havia de demorar mais de dois ou três anos. Ficou, a bem do menino, da estabilidade, sozinha com ele. A vida não era fácil lá para onde o marido ia, as ruas eram inseguras, havia crime e dificuldades. "O pai foi ganhar dinheiro para nós, já está quase a vir ver-te", explicava sempre que o miúdo perguntava ou chamava pelo pai. As birras em que gritava desalmadamente pelo "papá" foram reduzindo e eventualmente foram sendo substituídas pelos pequenos actos de rebeldia, respostas tortas. "Aposto que se o pai aqui estivesse deixava." "Eu quero ir viver com o meu pai!", rosnava decidido para desconsolo da mãe. Ela também queria ter o pai dele ali, presente, a partilhar decisões e responsabilidades. E queria ter o marido ali, presente e a completar o pedaço que lhe faltava. Falavam ao telefone quase todos os dias, no início; ele contava os exotismos que o espantavam, ela dava conta do que se passava na escola do menino e das banalidades que lhe compunham os dias. Às vezes riam-se muito das estórias caricatas que guardavam para despoletar gargalhadas no outro, quase um simulacro das noites gostosas e serenas no sofá, em frente à TV, depois do miúdo estar deitado. Outras vezes ela confessava as saudades que tinha dele, para de seguida se sentir culpada por deixar no ar aquela fraqueza, por lhe infligir uma culpa da ausência dos papéis de marido e de pai, afinal ele estava a fazer o melhor que sabia e podia, a ganhar dinheiro - porque tudo se resume sempre ao dinheiro, porque a renda da casa não se paga sozinha, porque há contas para pagar, há a creche do menino, há as consultas e as vacinas, só em material escolar para cima de um dinheirão! "O pai foi ganhar dinheiro para nós", repetia-se por vezes em surdina, sozinha no quarto, de noite, a meio das insónias. Esticava o braço para o lado dele na cama e os lençóis frios e imaculados confirmavam a ausência, a distância, a falta de materialidade das memórias e o peso de chumbo das saudades. Tinha medo de estar em casa sozinha com o pequeno Pedro. Poucos meses depois da emigração de Miguel, o pequeno já dormia sem sobressaltos e bichos papões, e decidira passar a luz de presença para o seu quarto, com a desculpa de que o miúdo podia precisar de chamar a mãe durante a noite e assim ficava com o caminho iluminado. Desculpa pobre, a única pessoa que ali tinha medo do escuro e de dormir sozinha era ela. 

Sabia racionalmente que a culpa que sentia naquele final era descabida, mas nem por isso a sentença lhe parecia mais leve. Não tinha sido ela a quebrar os votos que tinham feito um ao outro. Tudo na vida dela a fazia sentir em dívida para com o mundo, inferior aos exemplos da mãe e da irmã, super-mulheres, fadas do lar, tolerantes para com as falhas dos seus maridos. Sentia os olhares condescendentes e jocosos quando, no trabalho, no refeitório partilhado com colegas confessava que se esquecera novamente de colocar sal na comida ou quando perguntava por alguma receita ou procedimento culinário muito básico. As outras mulheres faziam tudo parecer tão simples e natural. Divorciadas que orientavam sozinhas a casa e dois e três filhos, solteiras que namoravam e saíam com amigos e viajavam, decididas e sem hesitações. Invejava cada uma, não pelo que tinham, mas pela força que imprimiam em cada decisão, em cada argumento. Quando lhe perguntavam em conversa sobre uma polémica qualquer da actualidade, remetia-se quase sempre à mesma resposta: “não sei, não percebo nada disso” ou “não me meto em política, para mim são todos iguais.” 

Recorda-se das recomendações maternas antes de se casar, aos 22 anos. Sobre a lida da casa, as poupanças, e outras inutilidades que, grosso modo, lhe passaram ao lado. Ninguém lhe tinha dito como lidar com a solidão. Nenhum conselho falava do que fazer quando se sentia oca, sem força para nada, perdida. Sobre quais os passos correctos que podia tomar, sem manchar a reputação ou ofender o marido, quando queria dizer-lhe que tinha falta dele, que tinha vontade dos abraços nocturnos de antigamente, em surdina para não acordar o menino, que a preenchiam e lhe mostravam o mais próximo que conhecia da plenitude por alguns instantes. Não sabia, nem sabia que podia perguntar, por isso continuou sempre, obstinadamente, a fazer o que sabia fazer bem: calar. Viver em fuga. Passo ligeiro. Não incomodar. Quando a relação começou a ver as lonjuras distendidas, os silêncios prolongados, continuamente a ser esmagada com o peso da ausência, sabia que provavelmente devia ter feito alguma coisa, devia ter dito alguma coisa. Nunca o questionou sobre os dias em que ficava incontactável, supostamente a sul, nem mesmo quando lhe chegaram rumores que era por vezes visto com uma mulata muito bonita, de mãos dadas, ou quando viu uma fotografia de um almoço de amigos a que ele a levou. Pensou muitas vezes que o silêncio tinha sido sinónimo de conivência, de permissão até. Não que lhe fizesse uma enorme diferença que houvesse outra mulher, ela nem era dada a ciúmes ou sentimentos de posse, só não queria perder o suporte de que dependia. Nunca lhe disse “preciso de ti”, apesar de ser essa a maior questão. Talvez se tivesse estado disponível para passar algum tempo com ele na vida lá longe, fazer-se corpo presente. Talvez se mostrasse mais entusiasmo pelos relatos dele, se tivesse feito mais perguntas, perguntas diferentes. Talvez se naquele dia em que ele estava a passar umas férias forçadas em casa, à conta do calendário do trabalho, ela não se tivesse esquecido que podia ter sido ele a ir buscar o menino à escola quando ligaram a dizer que estava com vómitos e febre. Como é que ela podia ter-se esquecido da presença tantas vezes desejada do marido e pai do filho? Tinha-se habituado a ser mãe e pai. Tinha-se habituado a depender só dela, a contar só consigo própria, a largar tudo quando fosse preciso. Foi nesse dia que, desnorteada, soube que estaria sempre sozinha. Percebeu que afinal era sozinha que estava já há alguns anos, e até tinha sobrevivido. Privada de muitas coisas, com a solidão por única companhia todas as noites, mas sem precisar tanto de muletas como acreditara até então. Os regressos têm destas coisas. Por vezes passa-se tanto tempo a desejar recuperar uma fotografia difusa do passado que, quando o regresso se dá, reparamos que toda a harmonia que se pretendia recuperar deixou de fazer sentido e deixou de ser, afinal de contas, desejado. A saudade do que tinha, outrora, sido, não pode ser apaziguada senão com uma saudade do que está para vir, novo a estrear. Naquela tarde, depois de fechar a porta, surpreendeu-se quando suspirou de alívio. Não fazia a menor ideia do que se seguiria, mas tinha finalmente a certeza inabalável de que havia um caminho a percorrer e que o faria, passo a passo, com maior ou menor segurança, em qualquer direcção por que optasse. Já não havia ninguém que lhe puxasse a mão, mas também nunca mais admitiria uma outra mão que a travasse.

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O conto "A Mãe sem nome", da minha autoria, foi publicado este ano na colectânea "Ei-los que Partem! - Vol II", da Papel D'Arroz.

A desinformação é uma coisa que me aflige. Aflige-me não se debater os temas importantes, que a informação esteja a ceder espaço ao espectáculo, que o interesse do público seja moldado de acordo com o sensacionalismo barato que se faz valer da velha falácia burguesa de ser "o que o povo quer". O "povo quer" fast food pouco nutritiva porque sabe bem, porque é barata, mas sobretudo porque não tem como aceder ao filet mignon e à santola. O "povo gosta" de música pimba porque as festas da aldeia não têm como pagar o cachet ou presença do Coro Gulbenkian ou da Orquestra Metropolitana de Lisboa e porque nenhum trabalhador que viva do (miserável) salário mínimo pode fazer de ir à ópera ao São Carlos o seu programa de lazer. E não há nada de errado em gostar de música pimba ou telenovelas, cada qual gosta do que gosta. Os gostos discutem-se sim, obviamente, o que é idiota é a sobranceria de julgar que certos gostos traduzem alguma espécie de valor qualitativo das pessoas, quando o acesso à cultura, sobretudo à pretensiosamente erudita, está vedado "ao povo".

O mesmo se passa com a (des)informação. Se os noticiários abrem e dão mais tempo de antena às futeboladas e à polémica do dia em repetição, o consumidor (porque é o que somos todos em capitalismo - não somos cidadãos nem indivíduos, apenas consumidores, importa recordar) só alcança alguns conteúdos se os procurar activamente, se for ao encontro de outras visões que não as amplamente difundidas pelos mass media. E esta procura não é fácil, não está ao alcance de todos, dá trabalho e, como sempre, marginaliza quem não tem “privilégios burgueses” como internet, smartphones e tempo livre para se dedicar quer à procura quer à reflexão.

Temas prementes, de significância local ou globalmente importantes vão sendo relegados para segundo plano em detrimento do espectáculo, da celeuma tantas vezes sem fundamento, dos picos mediáticos estrategicamente seleccionados por quem tem esse poder.

E por favor não nos deixemos cair na ingenuidade de achar, por um momento, que a informação e o entretenimento que consumimos não é manipulador ou não tem uma agenda clara.

"Ai, tu vês política em tudo", dizem-me. Sim, vejo. O motivo é simples: tudo é política! As televisões elegem presidentes (olá Marcelo, olá Trump!), derrubam governos, criam certezas absolutas que não podiam estar mais longe da verdade ("fascismo e comunismo são igualmente maus", "feminismo é o contrário de machismo"). Bebe-se com avidez e replica-se nas conversas de café o que quer que os senhores comentadores debitem, com ou sem propriedade, sobre tudo e sobre nada (creio que em tempos usei aqui a minha expressão favorita para designar este fenómeno: a nunorogeirização da massa acrítica). À falta de oportunidade de reflexão sobre os factos sem artefactos, consome-se uma opinião pré-fabricada, instantânea, pejada de falácias que não convém ao poder instituído serem esclarecidas.

E isto choca-me. E talvez me choque mais que quem possa não ter veículo no mainstream de grande consumo, mas tem oportunidade de ter algum público, algum tempo de antena, o faça em “modo silly season”, em modo light, pronto-a-consumir sem ser necessário um raciocínio crítico. Não falo, naturalmente, de fóruns de entretenimento ou vocacionados para algum tema específico, é óbvio que há espaço para tudo e para todos os gostos. Mas em espaços opinativos, que se pretendem de debate colectivo, de troca de ideias, não compreendo como é que alguém se dá ao luxo de ocupar linhas e linhas, às vezes páginas e páginas, a falar de coisa nenhuma, a abordar temas que são desde logo “não temas”, como relatos na primeira pessoa de eventos particulares sem qualquer tipo de 'mensagem' que faça trabalhar a massa cinzenta. Não há nada de errado em partir de um evento ou episódio pessoal para colocar questões com potencial de relevância ou premência. Só acho um enorme desperdício de potencial interventivo quando esses episódios pessoais são completamente irrelevantes para os leitores/espectadores, só uma pasta insípida para encher chouriços. As publicações em que isto sucede não são caso raro, pelo contrário.

Pergunto: o que fazem os editores se nem conseguem manter uma linha editorial coerente?

Já sei que também só faço perguntas parvas e sem interesse, mas se calhar é essa a linha editorial aqui do blogue.

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Dêem um desconto, a pessoa só dormiu quatro horas e picos e não está em condições.

Odeio clichés, mas efectivamente não me ocorre forma mais assertiva e completa de dizer isto: Lara Barradas é uma força da natureza, ponto.

A escrita da Lara é absolutamente estrondosa! Com meia dúzia de palavras, meticulosamente esculpidas com o fogo todo da alma, consegue deixar-nos prostrados, boquiabertos e comovidos, seja na poesia portentosa ou na prosa tecida com tanta força como com suavidade.

Escrevi, há algum tempo, a seguinte crítica na sua página: "Tudo o que a Lara Barradas escreve pode ser sorvido em camadas. Primeiro, vem o perfume das palavras e da harmonia; a seguir, vão-se descobrindo novos significados, uns estridentes, outros quase sussurrados, cada vez mais profundos, até se chegar a um íntimo que já não percebemos se é o nosso ou o dela, em cruzadas empatias." Não sei como dizer melhor que a página da Lara é mesmo incontornável! É imperioso seguir de perto esta autora, que está só no início de uma carreira literária que tem tudo para ser longa, produtiva e brilhante.

Já daqui a um mês, é lançada a primeira obra a solo da Lara, o livro infanto-juvenil Anchieta, com ilustrações do Rodrigo Estiveira e sob a chancela da editora Alfarroba Edições.

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"A obra original, conta a história de uma indiazinha que vive na Amazónia, e que é muito curiosa em relação ao mundo de betão. Anchi conta com a companhia do seu irmão Eke, nas brincadeiras na selva, e do seu macaquinho de estimação. Tal como todas as outras crianças, tem um medo que quase a domina, e vai contar com o apoio dos seus amigos para o ultrapassar, sendo no entanto, constantemente importunada pelo malvado Xinfrim.

A obra conta com personagens inspiradas na tribo Guarani, no folclore Brasileiro e faz alusões a personagens do âmbito fantástico, que vão estimular a criatividade das crianças. Tem uma forte componente de consciencialização para a preservação da natureza."

 

Estou em pulgas para ler a história e a rebentar de orgulho desta miúda com quem partilho uma empatia enorme sem nunca lhe ter botado a vista em cima (mas as pessoas extraordinárias que nos entram de rompante vida adentro são como as cerejas, é o que vos digo). 

Segunda.

Maior, sinto obrigação de dizer. A primeira vez que vejo em formato físico de livro um dos meus textos sob o pseudónimo Ventania, um pequeno conto escrito sob o tema da saudade, emigração e partidas, na colectânea "Ei-los que partem - Vol. II", da editora Papel D'Arroz. Somos 23 autores. O meu conto é o último apresentado e chama-se "A Mãe sem nome".

As pequenas edições, as colectâneas de pequenas editoras, de autores pouco ou nada conhecidos, muitos que nunca publicaram em nome próprio, são uma espécie de lotaria. Pode ser muito bom, muito mau ou outra coisa qualquer. Normalmente uma mistura ecléctica de tudo isso. Podem ser um primeiro passo para uma caminhada auspiciosa ou podem não ser mais do que efectivamente livros que nunca ninguém compra ou lê senão os próprios autores, o que é uma autofagia esquisita mesmo para os egos mais cheios de si. Mas são importantes para a divulgação, ainda que de dentro para dentro, de novos talentos literários, para realização de sonhos pessoais, para criar um legado e, sobretudo, para aprender a lidar com uma série de frustrações que se sabem permanentes no mundo editorial e literário. Daí que esteja muito grata pela oportunidade. =)

Mais novidades em breve!...

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Duas!

Primeira.

Mais de mil 'likes' na minha página de facebook (sigam e comentem, às vezes há discussões giras, lamechices e gargalhadas). Já foram bem mais, noutros endereços, mas este recomeço está a saber-me de forma diferente, a figos maduros, a sorrisos entrançados. Desta vez há mais pessoas mais especiais, que se multiplicam e me enchem o rosto de sorrisos e o coração de gratidão pura, de amizade límpida. Há admiração genuína por autores ainda desconhecidos, maioritariamente, com tanto talento e valor, alguns à procura de oportunidades no mundo literário, outros a fugir delas ou a deixá-las escapar por entre os dedos. Todos a enriquecerem quem tem a sorte de os ler. 

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Vivia na escuridão ia para duas décadas, mirrado e seco por dentro, escudado numa samarra rota que sempre o cobria. Uivava fados tristes na hora das corujas, bramava impropérios quando o dia o ofendia com raios solares. Era na penumbra que se sentia em casa, com as paredes forradas a melancolia e ecos nas gavetas perras. "Desgosto de amores" dizia-se entredentes quando passava cambaleante no largo, ébrio de tristezas sem teor etílico. Numa madrugada fria de um Junho quente, rompida por brilhos cintilantes em silêncio, pensou ver um arraial em distonia, tantas as luzes e música muda. Chegou perto a esbracejar, pirilampos por certo em acasalamento. Caiu o queixo. O céu estrelado havia desabado, logo ali, no seu colo vazio, com ternura e vagareza, para lhe plantar no rosto um beijo macio.

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(Do desafio da Papel D'Arroz Editora.)

Porque é que temos medo das palavras? Meras letras atabalhoadas, embrulhadas, engasgadas, atadas sem rumo, atiçadas sem faísca. As palavras, imateriais poderes sem forma, não ferem, não matam, são frágeis impressões desconjuntadas. Porque nos desviamos suados das farpas esdrúxulas? Atiro com força novelos de palavras pesadas como culpa, como amor, como paixões em brasa. Trespassam os alvos como fantasmas, espectros imaginários que só eu vejo. Escrevo para quê se as palavras são inócuas, se nem se dão ao trabalho de decifrar a sua composição molecular, de responder ou plantar uma semente de palavra viçosa, como carinho, a ver se pega e cria raiz? Fugimos de verdades sussurradas como se fossem quedas certas ao abismo. Visto uma capa grossa de navalhas apontadas às palavras mansas que me tecem com uma doçura que desprezo, repetida a papel químico. Nunca me escreveram um poema, sequer uma bula médica ou manual de instruções, alguma coisa só minha. Sempre leitora, jamais musa. Nem amores nem amantes, todos com medo de ficar reféns das palavras que não lhes mereço. Tolos, coleccionam exclamações para me impressionar mas, cobardes que são, deixam rastos de reticências pelo chão.
A chuva de Verão bombardeia as janelas e é nesse transe que as percebo, às palavras, na aleatoriedade das pingas, como se de ofensas líquidas se tratasse. Temos medo das palavras como temos medo da chuva. Medos inúteis, que ninguém se dissolve na água ou nas letras e a mudança de que são capazes é apenas temporária. Inundem-me, pois, de palavras molhadas para que as navegue, para que nelas te ensine a nadar, ou para ser capaz de naufragar.

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As massas aplaudem, em êxtase colectivo, mãos cheias de nada. Embalagens bonitas, imaculadas na forma, limpas e ternas, a apelar ao sentimentalismo de veludos redondos, unânimes, consensuais, que a toda a gente cai bem. Eu tenho cá dentro esta maldição do descontentamento, de ansiar pelo que arranha, pelo que irrita, pelo que dói na alma e inquieta. A constatação de factos conhecidos não é estimulante, nem estética nem simbolicamente. O que choca, faz pensar, antagoniza, isso sim, tem o condão de ensinar, de contrapôr, de incomodar, dar náuseas, repulsa. As perguntas sem resposta fácil, os avessos de cada estória, são esses os talentos que me fazem vibrar.

Vôos serenos não ficam na memória. Dêem-me caminhos tortos em terrenos escarpados, lava a sangrar das profundezas, rugidos fora de contexto. Raiva de espumar pela boca, faíscas, suor, chapadões. Sabores picantes e ventos cortantes. Rejeito as emoções almofadadas, suavizadas com açúcar e glacé. 

Dêem-me amor sem filtros, sem capas, amor de tudo ou nada, de gritos e uivos pela noite dentro, dêem-me abraços em brasas, palavras que mordem, beijos mortais.

Desafia-me se me queres ver por dentro. Dá-me só o que sai do âmago de ti, das tripas retorcidas, do que é feio e que sufoca, a tua verdade de entranhas que em mim é poesia.

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Queria escrever coisas sensatas, coisas credíveis e cheias da racionalidade que me vai faltando. Mil e um textos começados, mil e uma ideias à deriva. Ia escrever sobre o turismo, sobre o racismo e a caridadezinha. Não consigo escrever nada além de duas frases, nada me sai escorreito, o tema na minha cabeça é sempre o mesmo, em repetição perpétua. Sinto-me presa e isso vai ter de acabar. Se não há quem corte suavemente este limbo, dar-lhe-ei uma machadada, não quero saber se sangra ou não.

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O problema dos lugares é que ficam tatuados nas memórias, acoplados aos cheiros, às emoções [coração no túnel, fora do peito], ao tacto, ao som de cada palavra [tuas dentadas, bochechas salgadas]. Não se consegue dissociar o lugar das memórias fortes, felizes ou infelizes, e isso gera toda uma expectativa inconsciente de que os lugares, só por existirem, asseguram para a eternidade os sentimentos que outrora testemunharam. Por isso se recomenda não voltar aos sítios onde já se foi feliz. O cérebro adora encontrar padrões na realidade que apreende e espera a reprodução daquela outra felicidade [os beijos de nuvem, boca macia de volúpia]; claro que o mais certo [o amor não é física, não se reduz a explicações nem a fórmulas matemáticas] é a realidade não encaixar na expectativa. Se a História se repete é por falha no guião, alheio à natureza mutável do mundo e dos homens [podia bem ser a tua mulher]. Culpa da memória que vai lapidando e erodindo as recordações, às vezes forjando algum pormenor [as tuas mãos nas minhas mãos, o meu nariz aninhado] ou submergindo-o por inteiro.

Insisto na teimosia [camarada]. Lugares há em que deambulo todos os dias, vão massacrando pela repetição da ausência, raspando ao de leve a pele com uma lixa suave e meiga [a tua barba negra, os caracóis], mais e mais, até a ferida aberta já não ter pele nem carne nem osso nem sangue nem vazio [fome de ti]. Comprarei um seguro contra desgostos. Uma mezinha para me untar, inteira, loção de aço, à prova de corações partidos e promessas de poesia [Teresinha]. Não tenho como atravessar os mesmos lugares de primeiros beijos [tão doces] e joelhos no chão, com os cacos espalhados, enterrados.

Como é que se esquece, como é que se cala, como é que se ignora que estamos a ir no sentido oposto - e não era nada disto que eu queria [à nora]? Caramba, como é que se respira?!

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