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Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

origem

O meu elemento é o ar (o nome do alter-ego não é acaso). É onde me sinto mais em casa, com alguma distanciação do terreno e do material. É lá por entre as nuvens que me encontram a divagar, muitas vezes a construir castelos ou a conversar com os pássaros. Sem pesos nem amarras, num mundo alternativo.

É nesse plano que os encontros de pernas para o ar fazem sentido, sem norte nem sequência. Pode-se começar do fim e remar montanha acima, sem prestar contas a ninguém. 

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Dói-me o Rossio todo. A cada passo, cem mil vidas ali escolhidas. Em cada pedra da calçada, uma miséria. Cada memória é uma vida.

Desde a plataforma do metro ao topo das escadas, do banco de pedra ao D. Maria, do Largo à estação de comboios. Doem os primeiros beijos, e também doem os segundos. Os olhos verdes, os castanhos e os azuis, o joelho no chão, o convite que recusei. Dói todos os dias, à ida, à chegada, e sempre sem hora marcada. Doem as varandas por serem cúmplices, pois se não me impediram!... Testemunhas ausentes, caladas, de todo o enredo condensado em tantos actos, iguais sem nada em comum.

Podia ser uma curta, toda filmada ali. Cenário perfeito, a chuva, o drama, tapetes lilases. Doem os olhares dos taxistas e dos turistas, dos amigos habituais e inimigos pontuais. Dói o sem-abrigo que favoreço com os trocos que me destroçam. Também me dói a Rua do Ouro, a Rua da Prata, os Restauradores que serviram para fingir que se restaurou o que permaneceu na mesma, a Praça do Comércio e a Av. Ribeira das Naus. Dói-me a Praça da Figueira, dói-me o Largo do Intendente em que aos poucos as dores vão sendo reparadas, entre beijos novos e abraços antigos com cheiro a casa. Dói-me o Largo de São Domingos, em que sempre recordo entre uma e outra ginja um pedido de casamento à chuva, continuamente negado. Doem-me os encontros perfeitos, todos, a vigia de Dom Pedro IV, altivo e seguro, e os enredos que escorrem apartados até ao Cais das Colunas, até Santa Apolónia, comigo espalhada um pouco por todos os barcos ao largo, em fuga até à margem mais que certa onde posso esconder-me atrás do rio.

Dói-me tudo até ao Cais do Sodré, cais do meu fim.

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Fizeste-me mil maldades 
e uma maldade muito grande 
que não se faz 
acho que devo ter sido a pessoa 
a quem fizeste mais maldades 
nem deves ter feito a ninguém 
uma maldade tão grande 
como a que me fizeste a mim 
não sei se tens remorsos 
tu dizes que não tens remorsos nenhuns 
porque dizes que és um vil criminoso 
para mim 
eu também sou uma vil criminosa 
mas não para ti 
desconfio que tens o remorso 
de ter alguns remorsos 
por me teres feito mil maldades 
e uma maldade muito grande 
a maldade muito grande está feita 
e não se faz 
acho que essa maldade muito grande 
nos aproximou um do outro 
em vez de nos afastar 
mas para mim é um drôle de chemin 
e para ti também deve ser 
mas com um vil criminoso nunca se sabe

 

Vídeo

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Num dia de São Pedro um vil criminoso trocou-me as voltas todas, fez-me uma maldade. Como vil criminoso que é, não descansou até me tornar numa vil criminosa. Eu não tenho remorsos de nada, só do que não fiz, porque deixei trocarem-me as voltas de novo, e o vil criminoso fez-me uma maldade muito grande, que não se faz, que nos aproximou em vez de nos afastar. O vil criminoso tem remorsos de ter remorsos mas nem por isso deixa de ser um vil criminoso. Escreveu a Adília Lopes e podia ter escrito eu. A diferença é que a vida seguiu depois do poema, o vil criminoso não sabe fazer senão maldades, as piores e mais cruas maldades e eu vou ter de ser a maior e mais vil (e brava) criminosa, porque há maldades que não se fazem e caminhos que se não se caminham lado a lado terão de ser para sempre apartados.

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Da próxima vez
Que eu voltar a cair
Se me vires a insistir
Não olhes p'ra trás

Eu não vou estar em mim
Se te quiser mais uma vez
Mesmo que diga que é de vez
Vou estar a mentir

E se eu disser que foi tudo confusão
Não falo com o coração, não falo com o coração
E se eu disser que ainda não é tarde
Não é amor, não é verdade

E se eu tiver ainda saudades
Deixa-me curar a ferida que arde
Deixa-me ficar com as melhores memórias
Acabou-se a história
Não olhes p'ra trás

E se eu disser que foi tudo confusão
Não falo com o coração, não falo com o coração
E se eu disser que ainda não é tarde
Não é amor, não é verdade
Não é verdade

E se eu tentar falar contigo para voltar
Não há volta a dar
Se eu me iludir que te vou perdoar
Não vale a pena acreditar

E se eu disser que foi tudo confusão
Não falo com o coração, não falo com o coração
E se eu disser que ainda não é tarde
Não é amor, não é verdade
Não é verdade

E se eu disser que foi tudo confusão
Não falo com o coração, não falo com o coração
E se eu disser que ainda não é tarde
Não é amor, não é verdade
Não é verdade

Mestre, meu mestre querido!

Coração do meu corpo intelectual e inteiro!

Vida da origem da minha inspiração!

Mestre, que é feito de ti nesta forma de vida?

 

Não cuidaste se morrerias, se viverias, nem de ti nem de nada.

Alma abstracta e visual até aos ossos,

Atenção maravilhosa ao mundo exterior sempre múltiplo,

Refúgio das saudades de todos os deuses antigos,

Espírito humano da terra materna,

Flor acima do dilúvio da inteligência subjectiva...

 

Mestre, meu mestre!

Na angústia sensacionista de todos os dias sentidos,

Na mágoa quotidiana das matemáticas de ser,

Eu, escravo de tudo como um pó de todos os ventos,

Ergo as mãos para ti, que estás longe, tão longe de mim!

 

Meu mestre e meu guia!

A quem nenhuma coisa feriu, nem doeu, nem perturbou,

Seguro como um sol fazendo o seu dia involuntariamente,

Natural como um dia mostrando tudo,

Meu mestre, meu coração não aprendeu a tua serenidade.

Meu coração não aprendeu nada.

Meu coração não é nada,

Meu coração está perdido.

 

Mestre, só seria como tu se tivesse sido tu.

Que triste a grande hora alegre em que primeiro te ouvi!

Depois tudo é cansaço neste mundo subjectivado,

Tudo é esforço neste mundo onde se querem coisas,

Tudo é mentira neste mundo onde se pensam coisas,

Tudo é outra coisa neste mundo onde tudo se sente.

Depois, tenho sido como um mendigo deixado ao relento

Pela indiferença de toda a vila.

Depois, tenho sido como as ervas arrancadas,

Deixadas aos molhos em alinhamentos sem sentido.

Depois, tenho sido eu, sim eu, por minha desgraça,

E eu, por minha desgraça, não sou eu nem outro nem ninguém

Depois, mas porque é que ensinaste a clareza da vista,

Se não me podias ensinar a ter a alma com que a ver clara?

Porque é que me chamaste para o alto dos montes

 

Se eu, criança das cidades do vale, não sabia respirar?

Porque é que me deste a tua alma se eu não sabia que fazer dela

Como quem está carregado de ouro num deserto,

Ou canta com voz divina entre ruínas?

Porque é que me acordaste para a sensação e a nova alma,

Se eu não saberei sentir, se a minha alma é de sempre a minha?

 

Prouvera ao Deus ignoto que eu ficasse sempre aquele

Poeta decadente, estupidamente pretensioso,

Que poderia ao menos vir a agradar,

E não surgisse em mim a pavorosa ciência de ver.

Para que me tornaste eu? Deixasses-me ser humano!

 

Feliz o homem marçano,

Que tem a sua tarefa quotidiana normal, tão leve ainda que pesada.

Que tem a sua vida usual,

Para quem o prazer é prazer e o recreio é recreio.

Que dorme sono,

Que come comida,

Que bebe bebida, e por isso tem alegria.

 

A calma que tinhas, deste-ma, e foi-me inquietação.

Libertaste-me, mas o destino humano é ser escravo.

Acordaste-me, mas o sentido de ser humano é dormir.

 
 
15-4-1928

#dias 7 a 10

O teu umbiguismo continua a afligir-me e tenho vontade de te bater, de gritar contigo, de culpar-te de todos os males do mundo. Prefiro não falar de ti quando surge o teu nome. Tenho saudades, interrogo-me por quem me terás substituído enquanto tento substituir-te a ti.

Ainda te defendo de quem te desdenha em privado, de quem te acusa, de quem te desvaloriza. Argumento e contraponho, mesmo sabendo que se fosse ao contrário não o farias por mim. Disseram-me há pouco que achavam que eu era tua namorada. Ri, com vontade de chorar, como se fosse uma ideia muito tola e por demais inconcebível.

Vai-te embora. Pára de assombrar cada esquina de mim. Preciso de tréguas...

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#dia 6

 

Velhos hábitos são muito difíceis de largar. Ainda sigo atentamente as tuas palavras, ainda te corrijo as gralhas que mais ninguém corrige. Não se sou eu que confundo ou tu que estás muito determinado, leio tudo o que dizes ou não dizes como ódio para comigo. Demasiada dedicação pode dar a ideia oposta, suponho. Desprezar-me não me dá força aos propósitos, só me faz ter rasgos em que lamento a decisão. Se pudesses tratar-me como a uma pessoa seria mais saudável.

As evidências tornam-se mais claras, apesar de gostar de ti ser muito mais fácil do que odiar-te. Faço um esforço acrescido, lavo as mãos peganhentas de não te tocarem. Será que alguma vez tiveste vergonha de mim? Vais pedir satisfações aos outros como fazias comigo? Mostras o que almoçaste? Partilhas as cabeçadas?...

 

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Ouve como o silêncio é feito de frio, de rachas no gelo, de distâncias sem humor. As palavras começam a ter aquele tinido metálico que deixa um gosto amargo na boca depois do último gole. As fotografias ganham ruído, electricidade estática. As portas fechadas, blindadas, deixam ver o calor macio lá dentro, onde dormes de cara esborrachada nas almofadas de penas. Longe.

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#dia 5

 

Pus um pé na água, para ter certeza de que ainda molha, e a água estava fria, mais fria do que antecipei. Não sei se levo a mal ou se agradeço. Não sei se percebeste bem ou bem demais, ou se te encomendaram a distância.
Reparei que arranjei um destinatário substituto da verborreia e tornei a constatar o que a Sinéad já sabia, mas a diferença está mais do meu lado do que no outro. Respirei fundo uma mão cheia de vezes mas mantive os olhos secos. 

 

Sinéad O'Connor - Nothing Compares 2U

It's been seven hours and fifteen days Since you took your love away I go out every night and sleep all day Since you took your love away Since you been gone I can do whatever I want I can see whomever I choose I can eat my dinner in a fancy restaurant But nothing I said nothing can take away these blues 'Cause nothing compares Nothing compares to you It's been so lonely without you here Like a bird without a song Nothing can stop these lonely tears from falling Tell me baby where did I go wrong I could put my arms around every boy I see But they'd only remind me of you I went to the doctor and guess what he told me? Guess what he told me? He said girl you better try to have fun No matter what you do, but he's a fool 'Cause nothing compares Nothing compares to you All the flowers that you planted mama In the back yard All died when you went away I know that living with you baby was sometimes hard But I'm willing to give it another try 'Cause nothing compares Nothing compares to you Nothing compares Nothing compares to you Nothing compares Nothing compares to you

 

#dia 1

Foi a olhar para o pinheiro do lado de fora de uma janela que não era a minha, numa cama que não era a minha que os conselhos desapareceram e ouvi só a voz da consciência, que há tanto me dizia o mesmo que as vozes em uníssono no coro regado a álcool. Decidi. Fixei prazos e metas. Suspirei. Tive vontade de me afundar num outro corpo sedento à procura do desejo que não encontrei em ti. Decidi escrever e não te escrevi uma palavra.

 

#dia 2

Silêncios que estranhas, que vou convertendo em palavras e frases que não são inéditas. Tento começar pelo fim, para não perder o rumo. Suspiro e arrumo coisas nas gavetas, na cabeça também. Reparo que tenho mais tempo livre quando não estás. Escrevo em chorrilho. Abro e fecho o mesmo documento mil vezes. Hesito. Tenho raiva. Odeio que perguntes por mim.

 

#dia 3

Reparo que é só a saudade que me desata as lágrimas. São ribeiros encharcados de saudade. Ultimo os escritos, apago farpas. Tenho saudades de te abraçar, de te falar, de me rir dos disparates e de te beliscar o ego. Mergulho em músicas que contrariam o meu estado de espírito para não fraquejar. Fraquejo, repenso tudo, equaciono tudo. Respiro fundo e avanço. Aceitas com a leveza que te admiro e ressinto. Pondero fazer uma lista de coisas que terei para te contar quando regressar. Aceito que serei sempre ridícula. Adormeço a chorar.

 

#dia 4

Ainda respiro, com alguma surpresa. Tenho amigos maravilhosos. O mundo segue lá fora e o dia será bom. Tenho orgulho de ter feito algo só por mim, movida a egoísmo. A música ainda ajuda e o chocolate não atrapalha.

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Expulsei-as, uma a uma, sem condescendência nem palmadinhas nas costas. Xô, não vos quero mais. Empurrei-as pelas escadas, pontapeei-lhes as barrigas, incendiei-lhes as sombras. São tóxicas, são ocas, ocupam todo o espaço, consomem a luz, prendem-me os movimentos. Não mais. Expulsei-as ou fingi, se alguém perguntar diz que nunca estiveram aqui.

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De cada vez que brigamos, ou melhor, que andamos às turras, saio sem perceber se te perdi mais um pouco ou se me dei demais novamente. Quanto mais dou de mim, mais te perco, parece-me. Exigirias de mim, se pudesses, que estivesse sempre presente sem estar inteira, com o coração aberto para não te resfriar. De ti só exijo o que sempre repito, a verdade e respeito. Queres que me passe tudo o que tenho entalado, sem teres ainda percebido que tu não vais passar, tu não podes passar, tu estás-me atravessado na goela, por mastigar, a seco. Bebo mais um copo à procura da solução, mas todas as equações têm o teu nome na incógnita, a tua pele, os teus segredos, tu és a constante incontornável de todas as conversas que ficam por ter, com as palavras todas a nú, erectas e festivaleiras.

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Onde eu estiver, estarás tu. Aonde eu for, tu irás comigo. Nos silêncios e nas verborreias, que nada fique por dizer. Saber que tu existes alargou o meu mundo, ampliou o meu coração e multiplicou o meu amor. Meu Amigo, irmão, camarada, amante. És espantoso, sim, e eu adoro-te, sim.

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De entre as coisas mais estúpidas que o ser humano pode sentir deve estar a saudade por antecipação. Sobretudo quando a saudade não faz sentido, porque na prática a distância sempre existiu, geograficamente ou de outra forma. Mas a distância é também um factor psicológico de peso, saber que se precisarmos um do outro de repente, de um abraço (sou só eu que preciso, bem sei) ou de ajuda para carregar um peso, figurado ou não, não é fácil ou rápido combinar na estação onde sempre nos desencontramos, beber uma cerveja a acompanhar aquelas discussões em que ninguém diz nada de novo.
Fazes-me falta. Não há mistério, ambos sabemos que em breve vais esquecer-te de mim, vai chegar o dia em que não trocamos uma palavra ou piadola e esse dia vai passar a semanas e meses. Eu vou continuar a fingir que tenho uma vida preenchida e imensas outras fontes de conversas estimulantes (tenho, mas não chegam perto das nossas conversas), a procurar os dejà vus que me lembrem das ilusões com o teu nome, a projectar bocadinhos de quem podia ser contigo no que sou com os outros.
Tenho saudades tuas. Só te conheço desde sempre há uns meses e queria não ter perdido um instante. Sei que não irei contigo, mas tu não sabes que vens sempre comigo. Fazes-me falta, já disse?

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Desaprendi a chorar por amor, pensava eu. Talvez tenha só desaprendido a calar.

Tu gostas que eu esteja aqui, à distância de segurança, a ver passar ao largo tudo o que podia ter sido, e eu vejo que podia ter sido tudo. Podíamos ser para a vida toda.

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Gostar de ti é um exercício perpétuo do ridículo. Só te ter condicional e parcialmente ajuda a criar as hipérboles mais peregrinas. Às vezes, muitas vezes, apetece-me só encostar a cabeça ao teu peito, sem dizer nada, só estar ali na tua companhia a desfrutar do silêncio e da tua presença, a espaços fazer uma festa na barriga ou na barba. Há conversas profundas que acontecem sem dizer uma única palavra, porventura só na minha cabeça que tende a galopar entre castelos nas nuvens. Às vezes preciso de um abraço e não sei como pedi-lo sem mostrar esta dependência de ti que me arrasa. Então não digo nada. Fico a olhar-te, a ti ou à tua presença distante, à espera que me leias o pensamento e me digas qualquer coisa selvagem e bonita como tu. Raramente já dizes o que quero ouvir. Mas sabes que preciso de ti e talvez já tenhas sentido que precisas de mim.

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[Deitei-me ontem ansiosa, a pensar em como terei de digerir e lidar com mais uma distância que há-de surgir, em data por anunciar. Pensava em como a distância não trará substancial diferença, ponderava suposições e tentava adivinhar cenários, sempre com o peso da antecipação já doer como nunca devia ter doído. Como habitualmente, a antena mística que capta no ar o que ainda não é estava a adivinhar sem saber o que nem tu sabias ainda.]

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Pilar diz, sobre Saramago, que era um homem arrasador, e que conhecê-lo foi uma maldição. Consigo compreender bem. É extraordinariamente difícil seguir com a vida depois de conhecer uma pessoa que nos abala a estrutura toda, que supera largamente tudo o que ousámos desejar, que acreditávamos não poder ser real, tangível, próximo, humano.

Quando alguém assim, arrasador como Shiva, nos surge na vida, palpável e concreto, todo o nosso futuro se torna numa mentira. Tudo o que vier depois é insuficiente, é ridículo e deprimente, se posto em perspectiva. A solução será fingir que não se vê, que não se sabe, que não se deseja com ardor respirar aquela existência a tempo inteiro, viver e morrer nos seus braços.

Se calhar o amor é muito isto, uma inesgotável admiração, o carinho e o instinto de proteger e de consumir aquela beleza até à última gota, que até poderá passar despercebida aos olhos do resto do mundo, mas é inesgotável para quem ama, para quem deseja, para quem constrói mundos assentes em toda a poesia por nascer de entre dois lábios e combate uma luta perpétua entre a vontade de o calar com beijos ou continuar a conversar sobre tudo o que existe. É esta batalha que vai sustendo a compostura e bastando para dobrar noites de ausências.

 

 

Fui contigo o que nunca tinha sido, e tanto criticava nas outras. Fui gaja, fui cabra. Dizia que não estava interessada, mas ia surfando a tua atenção, que me aconchegava o ego. Piscando o olho desinteressadamente, mas recusando. Sem sentido.

Só que afinal havia um sentido. Afinal não era desinteresse, era corpo e alma despertos para qualquer coisa muito especial, espantosa, insólita. Tu.

É universalmente óbvio que os nossos caminhos não poderiam continuar apartados e é aparatosamente despropositado que os mantenhamos hermeticamente contidos.

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E agora, como fazer marcha atrás a toda a velocidade, de preferência voltando atrás no tempo e desfazendo equívocos com erros crassos?

Nua, em frente ao espelho da casa de banho, revejo o meu corpo. Percebo que falta algo que não identifico de imediato. É mais do que a habitual falta de correspondência com a imagem que tenho de mim própria. Falta algo em todo o corpo, no conjunto, como uma embalagem, como se ao litro de leite faltasse o tetrapack. Falta algo que contém, mas mais, falta algo que dá forma e que confere todo um sentido. Como se este corpo tivesse sido engenhado para corresponder a uma origem, ou a um fim.

A água a correr, o cheiro familiar e herbal de espumas doces e terapêuticas.

Percebo, ainda de olhos fixos na imagem reflectida, que vejo mais do que o que realmente o espelho devolve. Vejo-te a ti por trás de mim, cabeça entretida em beijos no meu pescoço, o teu peito contra as minhas costas, os teus braços a cobrirem-me peito e barriga, os meus braços a cobrirem os teus, os meus dedos a dizerem aos teus que sim, que os quero para sempre colados a mim. É isso que falta. Faltas-me tu, no lugar onde pertences, junto a mim.

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Caminhava como vivia, em contra-corrente, de peito feito e olhar obstinado, fixo no ponto onde as portas automáticas não descansavam, escancaradas, parindo em golfadas ritmadas dezenas de caras ténues, sem expressão, uma previsível mancha de corpos amorfos, transpirados, diluídos, que marchavam em círculo, sem princípio nem destino. Tinha a sensação de ter perdido o momento certo para o fazer e sabia até que se iludia novamente, mas a ambição era demasiado sedutora para não apostar todas as fichas naquele momento.

[Gostava de presentear-se com fugazes parênteses irreais em que podia ser quem gostaria de vir a ser, sem hesitações nem amarras. Logo a seguir, numa rajada, furava em penitência as palmas, num estouro rebentava os balões, reduzia a carvão tudo o que pudesse florescer de uma ou outra verdade caída no chão.]

Não se enganou, bastou um sorriso para João saber que chegara ao sítio onde desde sempre era esperado.

[Ali podia demorar-se a criar o excepcional, a apreciar o raro, a saltar por cima do impossível. Nunca tinha feito tanto sentido, nunca lhe parecera mais próximo do sonho do que naquele momento, na doce materialização daquela mulher.]

Ela parou e olhou-o, nervosa, com o sorriso a abrir-se numa espantosa confiança que sempre lhe era alheia, enquanto o peito se erodia em galáxias distantes que lhe fugiam ao entendimento. Reconheceu os prenúncios anunciados em flashes desde o primeiro momento; sabia que seria ali, nos braços daquele homem, o seu fim, a morte inevitável da personagem idealizada que quase tinha conseguido alcançar, e ali mesmo o seu começo, o insólito nascimento da mulher inquebrável que se desfez em cacos e passou a incendiar o ar só com as chamas das palavras.

Ele não se deteve. O olhar verde escuro, recto, mantinha-se cativo nas azeitonas sumarentas e risonhas que eram suas, a partir daquele instante e até ao fim dos dias. Continuou a avançar sem desvios e só travou quando os lábios todos se encontraram, sedentos, macios, sôfregos, nuvens doces, línguas molhadas e as mãos seguras onde pendurar todos os sonhos.

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