Dos que morreram sem saber porquê Dos que teimaram em silêncio e frio Da força nascida no medo E a raiva à solta manhã cedo Fazem-se as margens do meu rio.
Das cicatrizes do meu chão antigo E da memória do meu sangue em fogo
Da escuridão a abrir em cor Do braço dado e a arma flor Fazem-se as margens do meu povo
Canta-se a gente que a si mesma se descobre E acorda vozes arraiais Canta-se a terra que a si mesma se devolve Que o canto assim nunca é demais
Em cada veia o sangue espera a vez Em cada fala se persegue o dia E assim se aprendem as marés Assim se cresce e ganha pé Rompe a canção que não havia
Acordem luzes nos umbrais que a tarde cega Acordem vozes e arraiais Cantem despertos na manhã que a noite entrega Que o canto assim nunca é demais
Cantem marés por essas praias de sargaços Acordem vozes, arraiais Corram descalços rente ao cais, abram abraços Que o canto assim nunca é demais O canto assim nunca é demais
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Isto é o que acontece quando se acredita na música, na poesia, na arte. Isto é o que acontece quando se põe de parte o complexo de inferioridade que nos leva a imitar os demais, com a mesma fórmula já batida e enorme disparidade de meios. Isto é o que acontece quando se tem orgulho no que se é, sem tentar ser outra coisa qualquer. É também o que acontece quando se vai a um festival de canções com uma canção, não com apenas uma imagem, ou com apenas uma exibição vocal, ou apenas efeitos especiais ou apenas uma boa voz com uma canção colada com cuspo.
E isto é também o que acontece quando se assume um discurso real, coerente, genuíno, sem embaraço ou pudor de dizer o que deve ser dito. Isto é apenas o que temos de melhor.
Salvador Sobral é um portento. É muito mais que a lindíssima "Amar pelos Dois" que venceu o Festival Eurovisão da Canção 2017. Escutem aquela que é a minha canção favorita do primeiro álbum do Salvador, Excuse Me - Change.
Obrigada, Salvadorzinho. Além de se ter agravado a vontade que tenho de te dar beijinhos e fazer festinhas, tenho agora dois novos sonhos na vida:
1 - Ouvir-te no palco 1º de Maio, ou mesmo no palco 25 de Abril, na Festa do Avante.
2 - Ouvir-te em dueto com o Jorge Palma.
Seria a felicidade suprema, o êxtase total.
Ah, e ainda me fizeste ganhar uma aposta, um almoço num sítio muito catita - se quiseres podes vir também, não sou eu que pago!
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Não é demais repetir até à exaustão porque há muito mais para dizer, para viver, ouvir e sentir.
É oficial, estou apaixonada pelo Salvador Sobral. Pela voz, firme e cristalina, pela alma, pelo ritmo, pela simplicidade, pela espontaneidade, pela postura perante a exposição mediática, pela rejeição do aproveitamento da doença, pela brutal honestidade, pela graça do seu jeito despreocupado. Pela imensidão do talento concentrado num só ser humano. Arrebatador.
O Salvador é um dos grandes, dos maiores, dos fora de série. Todo ele música, todo ele sentimento. Tão bom que chega a ser dramático, doloroso até. De ir às lágrimas, literalmente. "Voz de anjo", dizem. Coração de anjo, digo eu. Frágil, sofrido, leve, e com a força de uma trovoada. Não deixa ninguém indiferente, ama-se ou odeia-se. Só com a voz e a capacidade de reinventar cada canção em cada actuação, simples ou gutural, nada nesta criatura é normal, medíocre ou morno. Tudo é beleza pura.
(Posso ser parcial, e sou, que quando gosto sou exagerada, tudo-ou-nada kind of love, mas para mim o Salvador está hoje ombro a ombro, mano a mano, com o Benjamin Clementine. Acima deles, de entre os vivos, só o Mestre Jorge Palma, único e inigualável e para sempre o melhor do mundo.)
Não me canso de ouvir o disco (Excuse Me), não me canso de repetir o maravilhoso concerto a que tivémos o privilégio de assistir ao vivo, no Fórum Municipal do Seixal, e que passou na madrugada de sábado passado na RTP 1. Com a agravante de toda a febre da Eurovisão estar ao rubro, com uma enorme expectativa e mediatismo em torno da canção portuguesa, sorvo os vídeos dos ensaios, das entrevistas e das opiniões. E isto tem de ser dito com ênfase na real distância que me separa de todo o fenómeno eurovisivo. Eu, que já fui daquelas pessoas para quem o Festival da Canção era um "happening" musical todos os anos e que até já estive para compôr uma canção com uns amigos para participar (há 7 ou 8 anos), nos últimos tempos tenho ignorado o evento e, lamento constatar, apenas como consequência da pobre qualidade das canções escolhidas. Portanto, para deixar bem claro: que eu acorde com o Nada que esperar ou o Change a tocar dentro da cabeça é mérito integral do génio do Salvador Sobral; e é perturbador e é uma explosão de alegria.
Em dia de semifinal lá na Eurovisão, não deixa de ser curioso observar alguns fenómenos tão "tugas" - dos tugas que vivem de redes sociais, de CM TV, que se exaltam com as vitórias e derrotas futebolísticas, os que acham que Fátima é um lugar sagrado que serve para fazer e pagar promessas, e a volatilidade das suas marés. Como as pessoas passam de bestas a bestiais num sopro!... Os que torceram o nariz à canção "Amar pelos dois", seja por não percebem um caracol de música ou por acharem que a canção não é "festivaleira" o suficiente, parece que agora andam ansiosos e em vias de mudar de opinião porque a canção que representa Portugal na Eurovisão está bem cotada e tudo parece indicar que vai ter um bom desempenho em termos de classificação. Passeando um pouco pelo YouTube é fácil de perceber a quantidade de gente, de todas as nacionalidades, arrebatada pela canção e pela interpretação. Não é para menos, a canção é realmente perfeita. Per-fei-ta.
Mas nada disso interessa, o resultado da Eurovisão pode ser o que for, que já ganhámos. O Salvador Sobral ganhou projecção internacional e nós todos ganhámos um portento musical. Um dos grandes, dos maiores, dos fora de série.