Quando nos dias maus, de abandono, de incertezas, de quebras, te surge uma nau de tinto alentejano por esse rio acima, com a promessa de céus estrelados e abraços doces, enxugas a lágrima teimosa e bebes um golo. Brindas às incertezas que podem ser surpresas muito boas e segues em frente, com mais uns epítetos na bagagem do quase nada que és.
Por este rio acima Deixando para trás A côncava funda Da casa do fumo Cheguei perto do sonho Flutuando nas águas Dos rios dos céus Escorre o gengibre e o mel Sedas porcelanas Pimenta e canela Recebendo ofertas De músicas suaves Em nossas orelhas leve como o ar A terra a navegar Meu bem como eu vou Por este rio acima
Por este rio acima Os barcos vão pintados De muitas pinturas Descrevem varandas E os cabelos de Inês Desenham memórias Ao longo da água Bosques enfeitiçados Soutos laranjeiras Campinas de trigo Amores repartidos Afagam as dores Quando são sentidos Monstros adormecidos Na esfera do fogo Como nasce a paz Por este rio acima
Meu sonho Quanto eu te quero Eu nem sei Eu nem sei Fica um bocadinho mais Que eu também Que eu também Meu bem
Por este rio acima Isto que é de uns Também é de outros Não é mais nem menos Nascidos foram todos Do suor da fêmea Do calor do macho Aquilo que uns tratam Não hão-de tratar Outros de outra coisa Pois o que vende o fresco Não vende o salgado Nem também o seco Na terra em harmonia Perfeita e suave Das margens do rio Por este rio acima
Meu sonho Quanto eu te quero Eu nem sei Eu nem sei Fica um bocadinho mais Que eu também Que eu também Meu bem
Por este rio acima Deixando para trás A côncava funda Da casa do fumo Cheguei perto do sonho Flutuando nas águas Dos rios dos céus Escorre o gengibre e o mel Sedas porcelanas Pimenta e canela Recebendo ofertas De músicas suaves Em nossas orelhas Leve como o ar A terra a navegar Meu bem como eu vou Por este rio acima
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Às vezes duvido que seja uma pessoa inteira. Sou antes duas metades, em permanente tensão, no fio da navalha, em oscilação compassada. Sou a céptica, ultra-racional, organizada, maníaca da limpeza e da arrumação, com gostos minimalistas. Sou também a criativa, espontânea, artística, que tira da cartola profundezas cósmicas e dá pedradas em todos os charcos. Sou da ciência e da arte, metade racionalidade e objectividade, a outra metade sonho e poesia. Quando me entorno para um dos lados submerjo com despudor, quase com desrespeito pelo outro lado. Depois tento equilibrar e lá me sumo para o lado oposto. A vertigem da queda é onde estou. Sou a personificação de todas as contradições, acto contínuo entre extremos opostos. Sou a mais meiga e doce ou a mais gélida e implacável das criaturas. Sou a indecisão em pessoa e a mais obstinada, que nunca volta atrás nas decisões que toma. Sou a calma e ponderada que analisa exaustivamente todos os prós e cada um dos contras, mas tem razões impulsivas que não sabe controlar. Sou a analítica, que tem sempre razão porque valida todos os dados e confirma todas as informações, e aquela a quem o instinto faz o diagnóstico completo só com base na intuição e dá ainda mais e mais fiável informação. Toda eu sou pela luz e vida, pelos inícios e fazeduras, desprezo a morte e o remorso, o arrependimento e o que já passou. Mas também sou fã da escuridão, da ausência, da penumbra silenciosa. Sou a lógica e o bom senso, a calma e a temperança, até a chama se atear e me fazer explodir em cacos, festim de paixões em brasa. Sei exactamente quem sou. Não sou é fácil de definir.
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Deve chamar-se saudade, esta necessidade tão grande de um abraço teu, dos teus beijos tão cheios, em que não cabia mais nada além de uma história por contar, a começar e a terminar ali, tão fugaz. Beijos tão decisivos que nunca mais me permitiram paz. Os teus braços enrolados ao que há de cristalino e puro, como bóias, como âncoras, que me prendem e me mantêm à tona, que me desgraçam e me elevam.
Prometo-me não repetir, prometo-me a cura, vou vedando frestas. Volto sempre ao teu abraço, aos teus beijos tão cheios. Gosto de ti, gosto muito, gosto tanto de ti.
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Foi um ano bom. Muito bom. Fiz Amigos. Dos grandes. Estive com os Amigos de há 20 anos, que são tesouros. Aprendi. Viajei um punhado de vezes. Fiz uma série de coisas que tinha dito que nunca faria, lições de humildade, descoberta e auto-conhecimento. Apaixonei-me várias vezes pelas mesmas pessoas (é doença ou casmurrice). Comecei projectos pessoais gigantes. A minha saúde melhorou significativamente e a auto-estima também. Aprendi a gostar um bocadinho mais do meu corpo (é muito difícil e há dias de extremos, mas estou no bom caminho). Senti-me desejada, amada e valiosa. Equacionei mudar radicalmente de vida, em vários aspectos (é uma reflexão em curso e tendencialmente irreversível). Continuo a ter presentes todos os que me importam. Sindicalizei-me. Fiz nódoas negras, sobretudo sentimentais. Regressei ao blogue e voltei a escrever mais com o coração do que com o cérebro. Escrevi cartas em que me pus completamente a nu - e só perdi com isso. Sonhei alto e cheguei a achar que era tudo realmente possível. Arrependi-me de um instante em que não fiz o que queria ter feito. Continuo a ser a pessoa mais destemida que conheço. Consegui não bater em ninguém. Fartei-me de rir. Chorei menos do que me apetecia. Continuo a sentir-me muito mais nova do que diz o cartão de cidadão, quase adolescente. Continuo sem rumo e errática e sei que é esse mesmo o meu caminho.
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Um nome não é nada além de um aglomerado de sons, não tem significado intrínseco até lho atribuirmos. Ninguém deixa de ser quem é por ser chamar João ou José. Mas é quando ouves o teu nome ser dito por outra boca que o nome faz toda a diferença. Na entoação dos outros podes ouvir todos os discursos da história, se escutares atentamente. Os meus instintos sanguinários, que deixei de reprimir por ter permitido o espírito ser adulto e assumir a paixão pela destruição, gritam o vosso nome com paixão e faíscas, gratidão e doçura. Com vontade de dinamitar cada sílaba desse nome que dá e tira sem pedir permissão, de lançar ácido no acento e transformar em nada o desvio que vive em mim. Gosto que digas o meu nome. Completo ou não, com diminutivos palermas ou fofinhos, mas gosto que me chames pelo nome. Que saibas que sou eu e mais ninguém. Nem Alexandra nem Maria, sem margem para equívocos. Gosto que o sussurres baixinho, em súplica, ou que o digas com esse tom sério de sobrolho franzido, como quem quer repreender mas só me quer prender, chamar à razão, colar-me ao chão. Sabe que não podes! Eu só sossego quando quero, se me tentas agarrar eu vôo em vendaval. Desfaço-te em mil folhas de papel, as letras alvoraçadas, borrões de notas graves aos trambolhões. Todos os nomes são poesia se uivados à lua, soltos à toa. Que nomes tens, que nomes me dás? Incendeia-me o sangue, dobra-me, esmaga-me, estala-me os ossos, derrete-me. Escreve o meu nome nas paredes da rua, trarei a picareta para as fazer ruir. Destroços de ti nas minhas mãos, todo pó, todo ilusão.
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Causa-me uma estranheza, quase física de tão visceral, de sabor acre e incomodativo como um perpétuo ranger das portas dos meus, muito meus, ideais, a injustiça. Todas as injustiças quase por igual, mas ainda assim umas mais iguais do que as outras. Nas relações humanas, por exemplo de tão fundamental que tem de ser o primeiro, a injustiça será o factor primordial de desequilíbrio das dinâmicas. A vil culpa de lares desavindos e amigos de costas voltadas, muitas das vezes, senão todas, será de uma forma de injustiça. Porque um dá mais do que recebe, porque alguém tem expectativas impossíveis de alcançar, porque o esforço é o mesmo mas a compensação nem por isso, etc. e tal. E depois de identificar o problema, como se faz para resolvê-lo ou contê-lo antes que provoque danos irreparáveis? Pois, essa é que é mesmo a questão. "A vida é injusta", dizemos, todos nós, a dada altura. Mas como superar a frustração, a sensação de impotência que a injustiça generalizada nos provoca? O melhor caminho será a resiliência, criar calo e aguentar, conformados? Ainda não tenho uma resposta, uma decisão pessoal fechada. Mas até agora, parece-me que esta solução imediata só resolve o assunto interior: deixamos de sentir revolta, progressivamente. Contudo, a raiz do mal, as causas das injustiças que nos revolvem as entranhas ainda lá estão, provavelmente a agudizar-se cada vez mais, à falta de posição capaz de as travar. A revolver as entranhas de outros. É aceitável a distanciação, o não envolvimento, passar a bola, numa fuga em diante? O meu idealismo ainda não o permite, ainda acho que é possível mudar o mundo. Por isso vou continuando, frustrada, em permanente campanha eleitoral contra os males do Universo.
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Estávamos em Madrid, a trabalho. Íamos todos jantar com mais colegas. Descemos a rua do hotel e caminhávamos em direcção ao ponto de encontro. Passa um casal abraçado que um momento antes estava parado, a beijar-se ternamente. Iam com aquele sorriso que só os apaixonados têm, sem saber porquê, só porque a outra pessoa existe. Uma colega volta-se para trás, boca aberta, às risadinhas. "Vocês viram?!", exclamava ela em busca de cúmplices. Ninguém lhe deu conversa. "Eram dois homens! Viram?", insistia, enquanto o resto do grupo fazia por ignorar a parolice. Alguém rematou (aliás, marcou golo) com "Era um casal de namorados, e então?".
Enquanto onde uns vemos um casal outros virem algo diferente, a igualdade continuará a ser um sonho.
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Nunca conheci um verdadeiro viajante (não confundir com o turista ocasional ou profissional) que não gostasse de ler. E ler, sobretudo, literatura.
Não se trata de um acaso. O verdadeiro viajante, o que viaja por paixão, o que viaja porque TEM de viajar para se sentir completo, tem esta compulsão de IR, sempre que pode, aonde não foi ainda, de se demorar mais em cada rua, absorver todos os cheiros e cores do céu, cada imagem com uma miríade de luminosidades e ângulos. E os livros permitem isso, uma experiência única, íntima, pessoal e intransmissível a cada um dos que viajam nas suas páginas. Fugas, pensarão alguns, os que desconhecem que, no tempo que se passa longe, o encontro com os que nos moram debaixo da pele estreita-se tanto. Começando pela imagem no espelho. Há viagens deliciosas que só os livros permitem, porque os livros permitem tudo, em qualquer tempo, lugar ou universo. E permitem fazer o mesmo trajecto vezes sem conta, sem que alguma vez seja exactamente igual ao que já foi. E permitem, como as viagens, que a variante maior seja o mundo interior do viajante, e quantas mais páginas de quilometragem tiver, melhor será a percepção que tem da sua própria diferença, logo, identidade. A bagagem, quanto mais se viaja, mais densa, mas leve, se torna; sabe-se ao que se vai cada vez com mais precisão, deixam de importar os destinos, como as capas dos livros, e cada partida à aventura sabe ao que aos outros sabe o conforto do regresso a casa.