O Jorge não sabe, mas é um dos meus melhores amigos. Falo com ele muitas vezes, e ele comigo. Nunca me nega amparo e um ombro amigo quando preciso de companhia para olhar o mundo pelo prisma azulado que só os olhos dos poetas (os tais das ondas de ternura) permitem. Quando o coração quer tomar decisões sozinho e seguir caminhos tortuosos, por mais que a razão lhe diga para ficar sossegado, vou sentar-me no Bairro do Amor à procura de cura para as nódoas negras sentimentais, algures no fundo de um copo. Todos os dias desejo ir morar para a Terra dos Sonhos e às vezes penso mesmo em fazer explodir numa gargalhada as fachadas dos edifícios públicos para chegar mais perto do meu ideal.
Já vi o Jorge no seu melhor e no seu pior em cima dos palcos. Visito-o amiúde, seja ao vivo ou numa gravação, e em tantas ocasiões apenas dentro da minha cabeça, que toca uma playlist que não consigo controlar. Dificilmente passa uma semana sem uma destas conversas intimistas em que falamos de Amor e Revolução, de Poesia e de tudo. Já visitei o Jorge em tantos, tantos sítios, em tantos, tantos, palcos, desde o ambiente mais sério do CCB (que logo descamba quando eu grito “Jooooorgeeee” ou um outro palmaníaco grita outro qualquer despautério) à poeira degradante do Festival do Sudoeste há mais de dez anos, desde as Festas Populares da minha terra (e outras) àquelas noites de mandar o Coliseu abaixo, noites de ventania ao ar livre ou nas muitas vezes em que a Festa atingiu a perfeição, com o Jorge a descrevê-la com música.
Já levei muitos amigos a ver o Jorge, já levei vários amores a ver o Jorge, já troquei alguns amigos e alguns amores e o Jorge continua presente, companheiro e confidente. Com banda, com o Sérgio, só com a guitarra ou só com o piano, o que nunca muda é a verdade daqueles acordes a dançar em perfeita sincronia naquelas palavras certeiras.
O Jorge tem idade para ser meu pai mas como é um companheiro desde há décadas, podíamos ser amigos de infância. Gosto das histórias que o Jorge canta e conta. Gosto da irreverência e da postura tão desprovida de vedetismos, que seja um gajo porreiro e “sem merdas”, com o coração e os ideais no sítio certo. Gosto que seja um músico excelente e perfeccionista, mas que não tem grandes pudores em recomeçar uma canção se se enganar na letra ou num acorde. Mas gosto, essencialmente, da forma como o Jorge canta, com a alma toda em cada sílaba, como se cantasse do âmago do meu ser, a dizer coisas que eu devia dizer mais vezes, da maneira mais certa e mais bonita.
O Jorge não sabe, mas já me lambeu algumas lágrimas. Já me ensinou a não esquecer que o meu amor existe, que o impossível seduz e que não há passos divergentes para quem se quer encontrar. O Jorge é protagonista na banda sonora da minha vida e continua a fazer-me descobrir verdades que já canto há anos sem saber que, afinal, o Jorge as escreveu só para mim.
Obrigada, Mestre!
[O Jorge vai comemorar mais anos de carreira do que eu tenho de vida, em Outubro, nos Coliseus, com a Orquestra Clássica do Centro e sob direcção artística do Rui Massena. E eu lá estarei, segura de que enquanto houver estrada p'ra andar, a gente vai continuar.]
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Não gosto de desvendar aqui dados pessoais, ou falar de detalhes da minha vida privada (o anonimato é insubstituível como escudo libertador), mas vou abrir uma excepção para dizer algumas coisas sobre a selvajaria que se passa na PT com a tomada de assalto por parte da Altice.
Passei pela PT em várias fases da vida, em várias posições na empresa, conheci desde o call-center aos gabinetes da administração, trabalhei até à exaustão e à depressão, aprendi muitas coisas e conheci muita gente. Alguma gente muito boa, de quem continuo amiga até hoje, anos depois de ter mudado de emprego, e alguma gente que não vale um tostão furado. Em termos de direitos laborais, de progressão na carreira e da forma como as pessoas são, ou eram, tratadas, uma palavra basta: vergonha. Muita coisa, se não quase tudo, assentava no bom velho factor C, na politiquice, nas quintinhas e raivinhas de dentes. Não tenho saudades nenhumas desse tempo de esforços em vão e inglórios a bem do brio profissional, das noitadas até de madrugada que eram tomadas não só como dado adquirido como uma obrigação, a troco de... zero, nem um agradecimento. Uma chefia teve a distinta lata de me acusar uma vez de "usufruir de todos os meus direitos" (o que até estava bem longe da verdade), e de me acusar de ter tido uma baixa por doença (para uma cirurgia major) numa má altura - não interessa que fosse a única altura possível, ao que parece deveria ter adiado a minha saúde por mais um ano ou dois, para minimizar o impacto no calendário de férias da chefia. Dá para ter uma ideia, certo?
Como comunista, estou e estarei sempre do lado dos trabalhadores, todos os trabalhadores, sejam eles quem forem. O que a Altice pretende fazer é passar por cima de todos os direitos e liberdades, dizimar postos de trabalho, fragilizar ainda mais os vínculos laborais e aproveitar ao máximo a permissividade política que existe (permitimos existir) em relação à precariedade, merecendo-me a mais absoluta repulsa.
Contudo, não deixo de achar interessante a ironia de também quem ajudou (e, tantas vezes, levou mais longe) a mão exploradora e opressora do patronato quando estava em posições de chefia a despertar agora - só agora - para a defesa dos interesses dos trabalhadores. Claro que não os vejo nas manifestações nem a dar a cara na televisão, mas vejo os seus apelos e suspiros nas redes sociais, leio os seus desabafos e pedidos de protecção. Talvez agora tenham percebido que não são "chefias" nem "pessoas importantes em cargos importantes" (de um poderzinho medíocre que só se revela no espezinhamento alheio), mas apenas e só trabalhadores como os outros, que valem apenas os números que representam, a quem gostavam de chamar "colaboradores" ou, ainda mais ridículo, "as minhas pessoas".
Daqui lhes envio a minha genuína solidariedade, revestida de benefício da dúvida, porque mais vale tarde que nunca. Tomara que sim, que realmente tenham percebido onde está a linha nem-por-isso-ténue que separa a justiça da exploração, e que não voltem a esquecê-la. Que mantenham os vossos postos de trabalho e posições hierárquicas, para no futuro defenderem os direitos dos trabalhadores nas vossas equipas. Para que não permitam a adulteração de avaliações de desempenho, para não usarem gritos, ameaças de despedimento, chantagens e ofensas como método de "liderança", para não permitirem a perseguição de quem faz greve, para deixarem de incentivar as horas extra não remuneradas, para exigirem condições de trabalho dignas para todos.
Dedico-lhes esta canção do Jorge, Vermelho Redundante.
Já perdi a conta a quantas vezes escrevi sobre a Festa. Não tenho a respeito da Festa opiniões isentas. Sou comunista convicta desde muito antes de saber que as minhas ideias (sempre, desde criança sem saber ler nem escrever, me pareceu tão óbvio, não havia como não concordar) tinham este nome, por decisão própria e absolutamente isenta de influências familiares ou outras. Nem sempre estou totalmente de acordo com o Partido, mas isso não vem ao caso, porque a Festa não é só para comunistas nem só do comunismo, é a Festa de todos!
Fui à minha primeira Festa do Avante ainda habitava o útero de minha mãe. Não fui todos os anos (falhei duas por me encontrar fora do país, falhei outra por estar em recuperação de uma cirurgia e estar impossibilitada de caminhar), mas fui muitas vezes, e muitas mais irei, conquanto esteja viva e capaz. Já fui com namorados, com amigos e amigas (de todos os quadrantes políticos, note-se), com família, com menores, já fui com calor infernal, com frio e com muita chuva e trovoada também. Foi no Avante que comi o meu primeiro kebab, que enjoei cerveja (calma, só durante uns tempos, já passou), que vi os Xutos tantas vezes (e no Domingo verei novamente), que encontrei amigos e conhecidos que só já encontro no Avante, que lhes conheço a prole e as voltas da vida.
Sou daquelas pessoas que em Outubro já têm saudades da Festa, que sonham com ela o ano inteiro e que basta ouvirem a Carvalhesa para que o espírito de encha de ânimo, alegria e confiança. Emociono-me muitas vezes ao som da Carvalhesa, com lágrimas nos olhos e tudo. Estes três dias são, para mim, uma amostra de como um mundo podia ser: não perfeito, mas tão bom, tão melhor do que o que enfrentamos diariamente. Não há formalismos, somos todos iguais, sem cor nem credo nem género nem idade. Milhares de pessoas reúnem-se naquele espaço belíssimo, com interesses diferentes, com tradições e gostos diferentes, com histórias diferentes, cada uma com um universo dentro de si. E há lugar para todos. Há música (de todos os géneros), cinema, teatro, dança, desporto, debates, feira do livro e do disco, há gastronomia de todos os cantos do país, há representações internacionais (muitas delas também com gastronomia ou venda de artigos típicos), há debates, há política, há ciência, há espaços e actividades para as crianças. Há alegria. Tanta alegria. Há realmente camaradagem. Há famílias inteiras, há uma tão grande paz entre toda a gente, os grupos de adolescentes com as hormonas aos saltos e os reformados que trazem farnel de casa sorriem uns para os outros, mete-se conversa na fila para as bifanas com desconhecidos como se fossem amigos do peito, se porventura entornas o teu copo nos pés de alguém, levas uma palmadinha nas costas e dizem-te "tudo bem, amigo, não há azar, boa festa!" Ninguém olha de lado para ninguém. Não há desacatos. Não há mesmo Festa como esta!
Talvez seja orgulho de estarmos todos a respirar o aroma a baía misturado com aroma de pinhal, talvez seja por dançarmos todos ao som da mesma Carvalhesa. Há qualquer coisa de mágico, de indescritível, que se passa no Seixal no primeiro fim-de-semana de cada Setembro. Não sei se o Mestre (Jorge Palma, para os amigos) estava inspirado pela Festa quando escreveu o refrão da Terra dos Sonhos, mas é para lá que sou transportada sempre que oiço esta canção.
Na terra dos sonhos, podes ser quem tu és, ninguém te leva a mal Na terra dos sonhos toda a gente trata a gente toda por igual Na terra dos sonhos não há pó nas entrelinhas, ninguém se pode enganar Abre bem os olhos, escuta bem o coração, se é que queres ir para lá morar