Escrevi uma vez, ironizando, que “as mulheres são todas putas, e o pior que os homens podem ser é filhos da puta”. Contudo, pondo a ironia de parte, é uma frase que reflecte bem a dualidade de critérios em vigor na sociedade portuguesa (e obviamente não só, mas fiquemos por aqui, para já). Quem diz dualidade de critérios diz também diferenças sociais, diferenças no salário, no acesso a oportunidades de trabalho e de liderança, na carga de responsabilidades sociais e domésticas e até no compasso moral da sociedade. Já alguma coisa mudou nas últimas décadas, mas muito mais falta mudar. As mulheres têm de parar de vir em segundo lugar. E têm de parar de ter medo de serem feministas como se isso fosse uma coisa má. Tem de haver responsabilização e a paridade tem de estar na agenda de todos os partidos políticos democráticos. Os tabus e os preconceitos têm de ser derrubados, a bem ou a mal. O Estado tem de ser o primeiro a dar o exemplo, mas como se vê, não é o que acontece.
Uma mulher, perseguida e agredida pelo seu ex-amante e pelo seu ex-marido, viu a sentença dos dois ser resumida a multas e pena suspensa, com as seguintes patéticas “justificações”:
“O adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem. Sociedades existem em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte. Na Bíblia, podemos ler que a mulher adúltera deve ser punida com a morte."
Ficamos, portanto, a saber que:
a honra e a dignidade do homem são mais valiosas do que a honra e a dignidade (e a integridade física) da mulher;
o adultério é um crime mais grave do que perseguição, rapto, ameaças e agressões violentas (só que não está escrito na Lei);
foi a "deslealdade e imoralidade sexual" da vítima, e o facto da sociedade condenar fortemente o adultério da mulher que levam à compreensão da violência exercida pelo "homem traído, vexado e humilhado pela mulher";
os crimes passionais, quando cometidos por homens contra as mulheres, ainda têm uma margem de tolerância extra;
que ter sido perseguida, ameaçada e levado com uma moca com pregos não foi assim tão mau, porque noutro sítio podia ter sido apedrejada até à morte;
a Bíblia é uma fonte de jurisprudência;
há juízes bem conservados, que saíram do século XV e ainda estão em exercício de funções.
É inaceitável que o poder judicial perpetue as injustiças e violência contra as mulheres. Este juíz do Tribunal da Relação do Porto conseguiu não só colocar a culpa do lado da vítima, ou encontrar num caso extraconjugal a justificação para atenuar a pena criminal de dois agressores, como ainda colocou muita gente a beliscar-se para ter a certeza de que acordou em 2017. Além da urticária e asco profundo, isto causa-me uma série de dúvidas que gostaria mesmo de ver respondidas.
Com que direito se arrastam textos religiosos para ilustrar ou justificar um acórdão da justiça num estado supostamente laico? Como é que um juiz pode exibir, sem pingo de vergonha na cara, o seu fétido machismo e trazê-lo para a justiça, afectando directamente a vida de outras pessoas?
Pergunta ainda mais premente: quando é que este anormal vai ser demitido?
O argumento que vou apresentar de seguida já tive de defender anteriormente, era eu estudante universitária.
Havia um prazo para um trabalho importante e que valia uma boa parte da nota de uma disciplina, que não era comum a todos os estudantes (depois dos anos comuns tínhamos vários ramos da licenciatura e as disciplinas eram optativas de entre um variado leque). Calha que foi agendado um evento social de relevo para o dia antes do fim do prazo para entregar o trabalho. Os alunos daquela disciplina dividiram-se entre os que abdicaram do evento social para se dedicarem a ultimar o trabalho lectivo, e os que decidiram não abdicar do evento social e confiar que após muito choradinho o professor iria estender o prazo de entrega do trabalho. O professor não estendeu o prazo. Eu e vários outros colegas entregaram o melhor trabalho possível dentro do prazo. Os colegas que foram ao evento social entregaram o trabalho após o prazo. O professor aceitou os trabalhos de todos e classificou-os com os mesmos critérios. Foi justo? Não. Esta foi, é e será sempre a minha posição, que discuti exaustivamente com o professor na defesa do trabalho em questão. O professor, por outro lado, defendeu que não beneficiou ninguém, apenas não penalizou os colegas que entregaram o trabalho fora de prazo. Ora, sob este entendimento, é claro e objectivamente comprovado que alguns alunos tiveram efectivamente mais tempo para concluir o importante trabalho, de resto em igualdade de circunstâncias, já que não existiu penalização pelo atraso. A meu ver, o não prejuízo dos infractores traduz-se num prejuízo dos cumpridores, que completaram o trabalho num período mais curto sem qualquer benefício na avaliação. Para mim isto é bastante claro e nem seria passível de discussão, de tão óbvio. O professor, que era quem tinha o poder de decisão no caso, defendeu que estava a ser justo para todos, e manteve a sua decisão.
No caso da tolerância de ponto do dia 12 de Maio passa-se exactamente a mesma coisa.
Nem falando no absurdo que é um estado (supostamente) laico dar tolerância de ponto a todos os funcionários públicos porque o Papa vem dar um pulinho a Fátima (onde uns chavalos inventaram uma peta que parece que esteve na causa de uma outra alucinação colectiva a outros tolinhos, mas isso são outros quinhentos), na prática temos os funcionários públicos a terem uma folga adicional não planeada, e o resto da população a ter de arranjar solução para lidar com este "imprevisto": crianças sem escola, consultas, exames, julgamentos e demais afazeres em organismos públicos adiados.
Em suma, um benefício atribuído a uma parte da população e que prejudica directamente o resto da população torna-se numa injustiça. Se a ideia era manifestar o respeito por uma maioria católica numa data aparentemente significativa, faça-se ao 13 de Maio o que se faz a 15 de Agosto (e tantos outros) - feriado nacional. Os motivos continuariam a ser deveras questionáveis, mas pelo menos o feriado seria para todos
Mais para ler
Causa-me uma estranheza, quase física de tão visceral, de sabor acre e incomodativo como um perpétuo ranger das portas dos meus, muito meus, ideais, a injustiça. Todas as injustiças quase por igual, mas ainda assim umas mais iguais do que as outras. Nas relações humanas, por exemplo de tão fundamental que tem de ser o primeiro, a injustiça será o factor primordial de desequilíbrio das dinâmicas. A vil culpa de lares desavindos e amigos de costas voltadas, muitas das vezes, senão todas, será de uma forma de injustiça. Porque um dá mais do que recebe, porque alguém tem expectativas impossíveis de alcançar, porque o esforço é o mesmo mas a compensação nem por isso, etc. e tal. E depois de identificar o problema, como se faz para resolvê-lo ou contê-lo antes que provoque danos irreparáveis? Pois, essa é que é mesmo a questão. "A vida é injusta", dizemos, todos nós, a dada altura. Mas como superar a frustração, a sensação de impotência que a injustiça generalizada nos provoca? O melhor caminho será a resiliência, criar calo e aguentar, conformados? Ainda não tenho uma resposta, uma decisão pessoal fechada. Mas até agora, parece-me que esta solução imediata só resolve o assunto interior: deixamos de sentir revolta, progressivamente. Contudo, a raiz do mal, as causas das injustiças que nos revolvem as entranhas ainda lá estão, provavelmente a agudizar-se cada vez mais, à falta de posição capaz de as travar. A revolver as entranhas de outros. É aceitável a distanciação, o não envolvimento, passar a bola, numa fuga em diante? O meu idealismo ainda não o permite, ainda acho que é possível mudar o mundo. Por isso vou continuando, frustrada, em permanente campanha eleitoral contra os males do Universo.
Mais para ler
Cravos vermelhos. 25 de Abril sempre. Fascismo nunca mais. A minha favorita de sempre e que tenho como lema de vida e pilar fundamental do meu sistema de crenças: o Povo Unido jamais será vencido.
Nasci no seio de uma família de fazedores de Abril. Da geração que cresceu na ditadura, com muitas dificuldades - dificuldades sérias, é preciso explicar, que a palavra se banalizou. De avós operários das fábricas, sem instrução, sem casa própria, que viviam em águas furtadas sem casa-de-banho, que tinham de fazer duas sardinhas e um ovo esticar para alimentarem três bocas. O 25 de Abril trouxe possibilidades inegáveis de uma vida melhor, a capacidade de ambicionar algo mais, direitos, participação cívica, desenvolvimento pessoal. Já não era necessário entrar à socapa nas salas onde se reuniam membros dos partidos políticos clandestinos, atrás da sede do clube de futebol local. Os meus avós ousaram então, só então, sonhar com uma casita alugada, paga do salário deles, com quartos e cozinha e casa-de-banho, até um quintal para poderem semear uns legumes. Os meus pais ousaram encerrar o ciclo: casar e constituir a sua própria família, sem a condenação inevitável da pobreza, sem ser necessário mandar os filhos trabalhar ainda pré-adolescentes para ajudar ao sustento da casa.
Eu, tendo nascido anos depois, sinto-me filha de Abril. Tudo o que sou deve-se àquele momento em que homens e mulheres valentes ousaram derrubar o sistema e entregar o destino do país às mãos do povo.
O 25 de Abril é o dia mais bonito. O cravo vermelho é a flor que toca todos os corações.
A Democracia está longe de ser perfeita e está, para mal de todos nós, desvirtuada. Ao 41º aniversário da Revolução dos Cravos as notícias dão-nos conta de mais um vil atentado à liberdade de imprensa pelo arco da governação das últimas décadas, mais um retrocesso nas portas que Abril abriu. Apelo aqui à memória da ditadura, na 1ª ou 3ª pessoas, para que não se ceda nem mais um milímetro dos direitos arduamente conquistados há quatro décadas (salário mínimo, direito à educação e saúde gratuitas, igualdade de géneros, direito à greve, a férias, Segurança Social, etc., etc., etc.), porque ainda há muito a conquistar para que esta sociedade seja realmente justa.