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Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

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Nunca lhe apertei a mão. Nunca lhe disse ao ouvido "obrigada". Sorvi todas as palavras que lhe ouvi, num anfiteatro gigante da que foi minha segunda casa e que rebentava pelas costuras, em 1998. Como sorvi, saboreando devagarinho, todas as que lhe li, em tantos cenários, de Mafra a uma jangada perdida no oceano.

Não li todas, ando a guardar algumas, a tentar racionar as doses que faltam, por serem finitas, sempre com receio que me fine eu antes de ter o privilégio de as ler.

Sou parcial. Das poucas pessoas que admiro enormemente sem ter conhecido, este será o maior. O mais admirável, pelas letras que compunha como nunca ninguém o tinha feito e muito mais pela humanidade. Tenho uma dívida de gratidão para com ele, cujas prestações de pagamento posso tentar ensaiar em cada linha que  escrevo e nunca, ainda que todas juntas e multiplicadas, serão suficientes  para balizar a emoção.

Deu-me tanto. Fez-me tanto. Escreveu a minha vida num século errado. Deu nome ao conjunto de sonhos que trago num molho, atados com corda de enforcar, dentro da algibeira. Deu-me um amor imenso e sem sentido que sobra em mágoa e em perdão. Fez-me rir, chorar, demoliu-me um par de vezes. E ajudou a construir coisas inquebráveis em mim. Uma certeza, uma força, uma verdade que se deve às palavras, a humildade perante a insignificante existência, a prostração perante o amor que nos molda. 

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Parabéns, José. E muito obrigada.

 

Decididamente, o melhor dia para ir à Feira do Livro é o primeiro. Ainda as melhores pechinchas estão disponíveis, ainda está tudo arrumadinho, cheira a novidade...

Como habitualmente, fui cheia de vontade de honrar o compromisso de não comprar nada - não faz sentido, com tantos livros ainda por ler e com a quota de espaço para os arrumar já esgotada há muito... Como habitualmente, não resisti e trouxe dois da Cotovia (ambos da Simone de Beauvoir) e dois da Quetzal (um da Alexandra Lisboa e outro da Ali Smith), a preços muito simpáticos. O namorado trouxe um traduzido, também da Quetzal, do Irvine Welsh.

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Numa nota sentimental, achei a menção aos 20 anos do Nobel do Saramango demasiado pequenina e breve perante o gigantismo do génio (para mim o maior de todos os tempos).

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[Eu sei que a minha visão não é imparcial, que eu sou daquelas que acha que Saramago devia ser celebrado diariamente, exultado incessantemente. É que na literatura, há histórias bonitas, há palavras bem colocadas e personagens profundas. Há exposição além de todos os sentidos da beleza e da fealdade do mundo. E depois, além de tudo isso, há obras que nos mudam, como viagens a sítios desconhecidos dentro de nós, fazem-nos reponderar algumas verdades que achávamos inquestionáveis, fazem-nos mudar de lentes. Foi com o Memorial do Convento que me apaixonei irremediavelmente pelo Saramago, mas a cada novo romance a paixão ficou confirmada, reforçada, tatuada em mim. Saramago será sempre o meu gigante literário, as palavras dele terão sempre o poder de me comover de maneiras que poucos conseguem. E eu serei sempre um bocadinho Blimunda, avessa a normas e a ver mais do que devo, aventureira e voadora assente nas muitas vontades que moram em mim.]

Não os suporto, não suporto ler nada deles, não gosto de os ouvir a falar e acho que são realmente maus, mesmo muito mauzinhos. Não consigo ter qualquer respeito intelectual por estes "escritores", que usam uma única fórmula batida para produzir livros que não acrescentam rigorosamente nada, a meu ver, nem à arte nem à Humanidade nem a coisa nenhuma. Desperdício de papel!

Bem sei que são best-sellers, mas eu não sou conhecida por gostar das mesmas coisas que a maioria. Pessoalmente, não tenho nada de mais contra nenhum deles, além de alguma irritação por serem os autores de "literatura" muito má.

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Paulo Coelho, o rei dos clichés e lugares comuns, todos os livros se podem resumir a um profundo e longo bocejo. 

 

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Margarida Rebelo Pinto, a.k.a. Guidinha, conhecida pela sua postura beta de super-tia snob, pela invenção do termo "auto-plágio" e por odiar gordas. Costumo dizer que o seu nível de escrita está ao nível de qualquer garota de 14 anos. 

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José Rodrigues dos Santos, conhecido por apresentar noticiários sem qualquer noção da isenção que lhe devia ser exigida, há quem diga que usa ghost writers para produzir romances à velocidade da luz e surfar a onda que é a vantagem da sua popularidade. 

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Nicholas Sparks, o mais lamechas de todos os escritores lamechas de historinhas lamechinhas, muito choronas e cheias de sentimentos profundos, que são adaptadas para o cinema (filmes lamechas, de lagriminha fácil e pateta). Tenho um ex-namorado que o tinha por escritor favorito e eu devia ter fugido mais depressa. Não fugi, mas por algum motivo é ex. 

 

 

 

No outro dia passei com o gajo em frente a um alfarrabista, já fechado. Como ele costuma reclamar que é muito difícil oferecer-me prendas, que eu sou muito esquisita (mentira, tenho é gostos distintos da maioria), e ainda por cima temos uma longa discussão em curso desde que nos conhecemos sobre o facto de eu preferir quase sempre literatura e ele preferir quase sempre não literatura, sugeri dois livros que me fariam feliz como presente de aniversário. De valor simbólico, dois livros não literários que têm tudo a ver comigo. Sugeri que tirasse foto para não se esquecer.

Faço anos daqui a mais ou menos dois meses. Quem aposta comigo que, mesmo com este post, ele vai esquecer-se ou pelo menos trocar-se e não traz os livros certos?

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Aqui há dias, a sorte bafejou-nos (que invulgar!) e vencemos um passatempo promovido pela plataforma Blogs Portugal em parceria com a Chiado Editora.


O prémio foi o romance "Serás Sempre uma Dádiva", de Carla Costa Fonseca, e já chegou cá a casa. Estou curiosa, sobretudo por se basear em factos reais.


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Fica prometida a resenha para breve!


 


Para já, ando a ler um dos novos autores portugueses que mais interesse me suscita, o João Tordo, no seu "O Bom Inverno", um romance que já tinha comprado há bastante tempo mas só agora comecei a ler. Tal como já tinha acontecido com o "Hotel Memória", o primeiro que li do autor, a escrita é escorreita e límpida, mas complexa e profunda, cheia de insinuações que fazem querer virar página atrás de página. Em comparação, "O Bom Inverno" parece-me mais plano em termos de acção narrativa, mas talvez mais maduro e subtil.


O tom melancólico, pessimista, impregnado das fatalidades banais que podem facilmente suscitar empatia do leitor, presente em ambos, agrada-me bastante (apesar de num registo completamente diferente, faz lembrar um pouco das construcções da Alice Munro). Muito, muito bom! Tenho vontade de ler a bibliografia toda do João Tordo, e lá chegarei!


Nunca conheci um verdadeiro viajante (não confundir com o turista ocasional ou profissional) que não gostasse de ler. E ler, sobretudo, literatura.

 

 

Não se trata de um acaso. O verdadeiro viajante, o que viaja por paixão, o que viaja porque TEM de viajar para se sentir completo, tem esta compulsão de IR, sempre que pode, aonde não foi ainda, de se demorar mais em cada rua, absorver todos os cheiros e cores do céu, cada imagem com uma miríade de luminosidades e ângulos. E os livros permitem isso, uma experiência única, íntima, pessoal e intransmissível a cada um dos que viajam nas suas páginas. Fugas, pensarão alguns, os que desconhecem que, no tempo que se passa longe, o encontro com os que nos moram debaixo da pele estreita-se tanto. Começando pela imagem no espelho.
Há viagens deliciosas que só os livros permitem, porque os livros permitem tudo, em qualquer tempo, lugar ou universo. E permitem fazer o mesmo trajecto vezes sem conta, sem que alguma vez seja exactamente igual ao que já foi. E permitem, como as viagens, que a variante maior seja o mundo interior do viajante, e quantas mais páginas de quilometragem tiver, melhor será a percepção que tem da sua própria diferença, logo, identidade.
A bagagem, quanto mais se viaja, mais densa, mas leve, se torna; sabe-se ao que se vai cada vez com mais precisão, deixam de importar os destinos, como as capas dos livros, e cada partida à aventura sabe ao que aos outros sabe o conforto do regresso a casa.

 

    • Quem fala de política sem medo de divergir da maioria.

 

    • Quem é fiel aos seus princípios e defende até ao fim aquilo em que acredita.

 

    • Quem trata bem os animais.

 

    • Quem sorri quando fala e ouve falar de viagens boas.

 

    • Quem leu pelo menos dez vezes mais livros do que teve namoros.

 

    • Homem com barba.



Che Guevara sexy barba comunismo política

 

 

 

Disclaimer: as minhas definições, a vocês (os três) que me lêem, estejam à vontade para discordar.

Que merda de sociedade nojenta, preconceituosa, racista, xenófoba, iludida, alienada, equivocada, é esta, em que ler o Corão é considerado perigoso, em que é possível e aceite com naturalidade que se faça uma queixa por suspeitas de alguém estar pacificamente sentado a ler um livro electrónico, e que um cidadão seja detido, inquirido e tratado como um criminoso porque, repito, estava a ler um livro?!

 

Que nojo é este em que nos estamos a tornar? Ainda há uns meses eram todos Charlies, os mesmos Charlies que apontam e olham desconfiados para pessoas com outra cor de pele, ou com um traje diferente!

 

Não se conhece e não se compreende o que está escrito num livro e até se assume que é um outro livro - e se fosse? Por favor, alguém que me explique porque é que ler o Corão constitui algum tipo de ameaça! 

 

Eu li o Corão quando era adolescente, da mesma forma que li a Bíblia e os Versículos Satânicos do Rushdie, e o Evangelho Segundo Jesus Cristo do Saramago e O Capital de Marx, e muitas dezenas de outros, até policiais manhosos e os livros condensados das Selecções. E Torga, e Urbano Tavares Rodrigues, e Sartre, e Jorge Amado... E se me apetecer levar o Corão na próxima viagem de avião, isso é motivo para me mandarem prender e interrogar?

 

Nestas alturas, e digo isto com a maior sinceridade, fico grata por não ter filhos. Não estou preparada para trazer alguém a este mundo a quem tivesse de explicar estas idiossincrasias, nem a Humanidade merece ter grande futuro enquanto isto for tudo aceite como se não se passasse nada de absolutamente aberrante e perverso. É que este tipo de segregação também é terrorismo. Livros considerados proibidos e perigosos e subversivos eram outra coisa aqui há umas décadas. Caminhamos para lá novamente?

 

 

 

Regra geral. Tal como não repito viagens, regra geral.

 

Apoquenta-me constantemente a consciência da finitude, da perenidade, do tempo que só escoa num sentido. Preocupa-me não conseguir chegar a tudo quanto sonho (quem manda sonhar demais?), não ter tempo para concretizar. Arrelia-me pensar que estou a repetir um caminho conhecido, um parágrafo já saboreado. A segurança das rotinas faz-me espécie e por isso evito as evitáveis. Ir jantar aos mesmos restaurantes, ouvir playlists na mesma ordem, entrar sempre pela mesma porta, cria-me uma espécie de desassossego de estar a perder alguma coisa de novo que se passe do outro lado.

 

Igual com os livros, igual com os sítios. Reler o mesmo romance é tirar o lugar (ou o tempo, esse tirano) a outro que ainda não li. Voltar ao mesmo sítio, quando são tantos mais os que ficam por visitar.

 

Claro que há excepções que confirmam a regra. Sítios que foram visitados com pressa e ficou a sensação de que a experiência não ficou completa, ou que de outra perspectiva as sensações seriam tão distintas. A "alma de cientista" (não fui eu que disse) que me habita obriga-me a tirar a limpo as dúvidas, tenho de saber, e lá vou eu. A companhia (ou ausência dela) transforma uma viagem, isso está comprovadíssimo. Tal como entre ir em "excursão" (blhargh, ptui) é o oposto de ir numa aventura independente.

 

Os livros, por sua vez, assumem significados distintos consoante o ponto da vida em que nos encontramos, também não tenho dúvidas. Reler os livros que na adolescência nos marcaram e nos 'mudaram o mundo', em que nos sentimos espelhados ou chocados ou deslumbrados, ou que nos acompanharam em momentos particulares, em fases da vida mais ou menos viradas "para dentro", é uma experiência que não se repete, por forçosamente não se poder repetir.

 

 

 

E depois há as obras-primas. Há os autores geniais. Aqueles que, quanto mais lemos outros, quanto mais aprendemos, quanto mais sabemos apreciar, mais e mais gostamos, mais e mais admiramos. Aquelas palavras em que em cada esquina de página descobrimos uma nova verdade de bolso, uma reflexão mais certeira, um presságio mais afinado. Aqueles que nunca se esgotam. A literatura que faz parte do nosso íntimo e ao nosso ritmo, que se cola às sinapses e nela se canoniza. Os sublimes.

 

 

 

 

 

De onde se conclui que, para o Saramago, meia dúzia de Nobel não teriam sido demais. E que o Zé Luís caminha a passos largos para este destino.

 

 

 

 

 

 o melhor de todos os escritores, de todo o sempre, para mim. Porquê?

 

 

 

Porque escreve com a intimidade de quem conta uma estória no sofá, enquanto beberica um chá morno, porque se demora em particularidades deliciosas, porque constata o óbvio que de tão óbvio e comum se teria tornado inominável para outros escritores. Porque cada sílaba tem uma sensibilidade amável, quase condescendente, de quem estudou a humanidade por dentro e foi ao âmago das questões. Porque tem um sentido de humor absolutamente extraordinário, mordaz, surpreendente. Porque esgrime a razão com um sentido de justiça inteligentíssimo e porque tem a imaginação duma criança de oito anos. Porque consegue plantar lágrimas em frases insuspeitas, tão cheias do que é mais puro.

Bendito velhote carrancudo, fazes tanta falta nesta dimensão dos tolos...

A Boneca de Luxo, do Truman Capote. Às tantas, uma frase conhecida. Olá... Exactamente o que o sr. metade-da-laranja me disse há umas semanas. Não sendo propriamente exlusiva, é uma frase duma superlatividade rara. E que me agrada, ainda mais nos lábios dele, porque eu estou aqui e nós não somos ficção. ;)


 


O amor não resolve nada. O amor é uma coisa pessoal, e alimenta-se do respeito mútuo. Mas isto não transcende o colectivo. Levamos já dois mil anos dizendo-nos isso de amar-nos uns aos outros. E serviu de alguma coisa? Poderíamos mudá-lo por respeitar-nos uns aos outros, para ver se assim tem mais eficácia. Porque o amor não é suficiente.

 

“Saramago, el pesimista utópico”, Turia, Teruel, nº 57, 2001

Nos "outros cadernos de Saramago".

Ainda ontem falávamos disto. E anteontem também. Eu insisto, bato na mesma tecla, para me lembrar e para esfregar pelos olhos adentro dos outros, que teimam em não lembrar. De vez em quando, deixo olhos tristes e molhados. E deixarei, sem comiseração por misérias pequenas, que são as da alma. Quando me dizem que sou tão positiva ou tão forte, é porque não me esqueci, naquele momento, de relativizar. Não sou mais forte, sou da mesmíssima profana matéria que todos nós, banal e esmagada com a pequenez da humanidade. Alimento um mundo inteiro, não parcial, dentro de mim, esforço-me por não esquecer, por ver a big picture, e se diferença houver é apenas esta. Se tenho problemas, dores? Como toda a gente, carradas deles e montanhas delas. Se me lamento? Sim, demasiado para o meu gosto, apesar de quase ninguém me ouvir, de "gritar para dentro" como me diz a minha mãe. Se os problemas são capazes de me abater? Só se eu deixar. E não posso deixar de acreditar, "em mim e no infinito".


E porque o Zé Luís o diz tão brilhantemente, como eu nunca poderia, e porque se aprende mais com os homens que puxam riquexós nas ruas de Deli do que em dúzias de anos dentro de salas de aulas lisboetas. E porque olho em volta e vejo pessoas de quem gosto tanto, tanto, que merecem tanto, tanto, motivos para sorrir. Acreditar é preciso.




 


Saber é lembrar-se.


Aristóteles, Poética


 


Zé Luís, nunca te esqueças dos homens que puxam riquexós nas ruas de Deli. Nas subidas, levantam-se do banco das bicicletas para usarem o peso inteiro do corpo em cada pedalada. No banco do riquexó, podem ir sentadas três pessoas, quatro, uma família com filhos ao colo, pode estar empilhada uma altura de sacos, madeira, pedras, barras de ferro. Os homens que puxam riquexós nas ruas de Deli têm vinte, trinta ou sessenta anos, parecem ter setenta, e vestem todos os dias a mesma camisa rasgada, os pés desfazem-se nos chinelos, as mãos agarram o guiador da bicicleta porque esse é o seu ponto de apoio no mundo, é ele que os impede de se afogarem no pó: terra castanha que se cola ao suor. Os homens que puxam riquexós nas ruas de Deli são capazes de sorrir debaixo dessa terra que os cobre, os seus olhos existem; são capazes de dizer algumas palavras em inglês, thank you, sir.


 


Quando o trânsito não tem solução, quando a estrada é um muro de camiões feitos de lata e parados, motas a passarem pelas folgas estreitas de autocarros negros como galeras, carros antigos, vacas desentendidas, cães exaustos, e pessoas em todas as direcções, esses homens de ossos desenhados na pele do rosto são capazes de levantar os riquexós no ar, de passá-los sobre os separadores centrais e de continuar a puxá-los, todo o seu peso, no outro lado da estrada, em contramão. Não te esqueças deles, Zé Luís. Não te esqueças da sua vontade muito maior do que a miséria, muito maior do que todas as facas, todo o veneno. Esses homens foram aqueles meninos que, hoje, agora, caminham sozinhos nessas mesmas ruas de Deli e estendem a mão a pedir uma rupia ou brincam, esquecidos das buzinas que se embaraçam à sua volta. As suas mães, vestidas com saris, continuam a cavar buracos na berma da estrada, a carregar alguidares com terra e pedras à cabeça. Os seus pais continuam a atravessar a cidade a pé apenas para chegarem ao outro lado e regressarem sem nada. O calor queima-os a todos por igual.


 


Por isso e por mais do que isso, não te esqueças dos homens que puxam riquexós nas ruas de Deli, Zé Luís. Depois de quilómetros a puxarem um casal de namorados, o rapaz irá pagar-lhes 10 rupias (60 rupias = 1 euro, mais ou menos) e se o homem, ainda sentado no banco da bicicleta, achar que merece 20, se abrir a boca para dizer duas palavras abafadas em hindi, o rapaz há-de dar-lhe dois murros onde o apanhar, no peito ou na cara. E o homem que puxa o riquexó há-de encolher-se porque estará já rodeado por muitos outros rapazes, de castas mais altas, que o olham com o mesmo desprezo do casal de namorados. Como te atreves?


 


Durante o dia, os homens que puxam riquexós nas ruas de Deli poderão trocar uma nota suja por pão (naan) e água. Enquanto o estiverem a mastigar, terão os olhos abertos e sentir-se-ão privilegiados. À sua volta, monges com os braços cortados pelos pulsos, cegos agarrados às paredes, raparigas despenteadas a vasculharem montes de lixo. Ao serão, os homens dobrar-se-ão sobre o banco do riquexó e, após instantes, poderão adormecer por fim. Se alguém chegar e lhes empurrar os ombros, serão capazes de reconstruir a organização dos ossos, passar a palma da mão aberta pelo rosto, lixa, e pedalar até onde for preciso, 10 rupias. O que se espera da vida? Há um corpo, a pele, e há o sofrimento que se é capaz de conceber, o conforto que se desconhece. Zé Luís, os homens que puxam riquexós nas ruas de Deli estão neste momento a sonhar com aquilo que rejeitas e agradecer aquilo que deixaste de sentir. Não são eles que correm o risco de se esquecer da vida, és tu. O teu padrinho tinha uma bicicleta igual àquela com que eles puxam o riquexó. Lembras-te ainda de como soava a sua campainha à entrada da rua de São João? Lembras-te ainda da sua voz quando falava para ti?


 


Quanto estiveres a ponto de te preocupar com merdas, os dilemas da poesia portuguesa contemporânea, o IRS, o código do multibanco, os carros que te roubam o estacionamento, a falta de rede no telemóvel, as reuniões de condomínios, o tampo da sanita, lembra-te dos homens que puxam riquexós nas ruas de Deli. É essa a tua obrigação.


 


Nunca te esqueças do mundo, Zé Luís.


 


Podes estar descansado, Zé Luís. Eu não me esqueço.


 


 


José Luís Peixoto, in revista Visão (Abril, 2010)


 




Quando as coisas não correm como queremos, quando falta inspiração, quando andamos às voltas com decisões, ou quando precisamos porque sim, o melhor a fazer é mudar a perspectiva. Olhar de outro ângulo. Subir a uma árvore, a um telhado, a uma montanha. Apreciar a relatividade das coisas na 'big picture'. Os problemas talvez não sejam assim tão grandes, novas facetas são reveladas e a inspiração surge e invade cada centímetro. Experimentem! Há que tentar tudo, mas mesmo tudo, antes de nos darmos por vencidos.

E sobre o fascínio de olhar o mundo de cima das árvores, dos novos caminhos que se abrem, leiam "O Barão Trepador", de Italo Calvino.