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Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

origem

A rubrica "Ventania convida" tem estado espaçada no tempo, mas não ausente, e regressa com uma autora que já sigo há algum tempo, apesar de a ter descoberto um pouco por acaso e mais por proximidades virtuais políticas do que outra coisa - acasos que acolho com um sorriso de gratidão.

A Maria Jorgete Teixeira tem o coração e a margem do lado certo e isso trespassa fluidamente para a sua poesia resoluta e interventiva. Já tem dois livros publicados, pela editora Alfarroba: “O coração é puta sempre à espera” (2015), prosa poética e "“Mulher à beira de uma largada de pombos” (2017), contos inspirados em canções do Zeca Afonso.

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Deixo-vos o poema que a Maria Jorgete escolheu para honrar este blogue, minúsculo à beira do seu talento, e a incumbência de irem visitar a sua página de Facebook, Margem Inquieta.

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A menina que há em mim dorme ao relento
Perdida no vento
À espera da asa
do anjo que a rejeitou
 
À procura
De um desejo largado de uma estrela
De uma pérola de ternura
De uma voz embalada no cabelo
do odor do rosmaninho nas gavetas
 
A menina que há em mim
Ficou sentada no pial da infância
Onde começou a mágoa
enjeitada de si
Perdida no escuro
no canto dos beijos silenciados
amarrotados em lenços
onde se assoa a tristeza
 
a menina que há em mim
vive à espera
que lhe estenda
a minha própria mão.

Dói-me o Rossio todo. A cada passo, cem mil vidas ali escolhidas. Em cada pedra da calçada, uma miséria. Cada memória é uma vida.

Desde a plataforma do metro ao topo das escadas, do banco de pedra ao D. Maria, do Largo à estação de comboios. Doem os primeiros beijos, e também doem os segundos. Os olhos verdes, os castanhos e os azuis, o joelho no chão, o convite que recusei. Dói todos os dias, à ida, à chegada, e sempre sem hora marcada. Doem as varandas por serem cúmplices, pois se não me impediram!... Testemunhas ausentes, caladas, de todo o enredo condensado em tantos actos, iguais sem nada em comum.

Podia ser uma curta, toda filmada ali. Cenário perfeito, a chuva, o drama, tapetes lilases. Doem os olhares dos taxistas e dos turistas, dos amigos habituais e inimigos pontuais. Dói o sem-abrigo que favoreço com os trocos que me destroçam. Também me dói a Rua do Ouro, a Rua da Prata, os Restauradores que serviram para fingir que se restaurou o que permaneceu na mesma, a Praça do Comércio e a Av. Ribeira das Naus. Dói-me a Praça da Figueira, dói-me o Largo do Intendente em que aos poucos as dores vão sendo reparadas, entre beijos novos e abraços antigos com cheiro a casa. Dói-me o Largo de São Domingos, em que sempre recordo entre uma e outra ginja um pedido de casamento à chuva, continuamente negado. Doem-me os encontros perfeitos, todos, a vigia de Dom Pedro IV, altivo e seguro, e os enredos que escorrem apartados até ao Cais das Colunas, até Santa Apolónia, comigo espalhada um pouco por todos os barcos ao largo, em fuga até à margem mais que certa onde posso esconder-me atrás do rio.

Dói-me tudo até ao Cais do Sodré, cais do meu fim.

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Aque nesta margem esquerda, a margem certa, a vida ocorre num universo paralelo em que o impossível desenrola-se perante os olhos muito abertos e queixos esquecidos. O insólito acontece a par e passo com o ritmo corriqueiro dos dias. Nada causa espanto, de tão espantoso que tudo é. Penso-me tantas vezes presa nas linhas de uma ficção, um qualquer conto da Alice Munro, só percebo que é real porque a paisagem é impossível de confundir. As coincidências são demasiado óbvias para que a realidade simplesmente exista porque sim. Os insólitos, o inexplicável, o sobrenatural que me pisca o olho a todo o instante e que teimo em renegar, como se as entrelinhas deste enredo tivessem saído da minha mente no seu estado mais perverso. É possível que seja só loucura, que se tenham esquecido de me sintonizar bem as antenas lá na fábrica onde montam as peças das pessoas. Somos todos demasiado inverosímeis, não achas?

Quando era criança (nunca fui, nasci já velhíssima) e estava muito mais próxima da verdade de todas as coisas e a cabeça fervilhava com teorias fantásticas e absurdas, tinha a certeza que vivia num mundo falso, com cenários montados para me estudarem os movimentos e lerem os pensamentos. Nada fazia sentido. Porque motivo estava eu presa no corpo de uma menina pequena, aquelas pessoas afáveis mas tão diferentes de mim a fazerem-se passar por família, vizinhos, amigos. Nunca me enganaram!

Nesta margem as coisas desaprendem-se com o tempo, o curso das águas e as rotações do planeta. Surreal é virar-te as costas quando te trago dentro de mim.

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Às vezes é no meio do silêncio
Que descubro o amor em teu olhar
É uma pedra
É um grito
Que nasce em qualquer lugar


Às vezes é no meio de tanta gente
Que descubro afinal aquilo que sou
Sou um grito
Ou sou uma pedra
De um altar aonde não estou


Às vezes sou o tempo que tarda em passar
E aquilo em que ninguém quer acreditar


Às vezes sou também
Um sim alegre
Ou um triste não
E troco a minha vida por um dia de ilusão
E troco a minha vida por um dia de ilusão


Às vezes é no meio do silêncio
Que descubro as palavras por dizer
É uma pedra
Ou é um grito
De um amor por acontecer


Às vezes é no meio de tanta gente
Que descubro afinal p’ra onde vou
E esta pedra
E este grito
São a história d’aquilo que sou


Às vezes sou o tempo que tarda em passar
E aquilo em que ninguém quer acreditar


Às vezes sou também
Um sim alegre
Ou um triste não
E troco a minha vida por um dia de ilusão
E troco a minha vida por um dia de ilusão


Às vezes sou o tempo que tarda em passar
E aquilo em que ninguém quer acreditar


Às vezes sou também
Um sim alegre
Ou um triste não
E troco a minha vida por um dia de ilusão
E troco a minha vida por um dia de ilusão



Não houve, em 33 anos, uma única vez em que tivesse ouvido esta canção belíssima e que não me arrepiasse. Haja poesia!

Nós também não temos carro, não nos faz grande falta. Usamos os transportes públicos diariamente, para as deslocações casa-trabalho-casa e, se muitas vezes reclamamos do tempo que demoramos e do preço dos passes, logo nos recordamos dos dias como o de ontem, em que tivémos boleia de carro para casa - e chegámos mais de uma hora (!) mais tarde em relação à hora habitual. Mas se um dia decidirmos que podemos e devemos, vai ser uma coisa parecida com esta*. 



 * Não é à toa que digo isto, já há um Leaf na família (modelo actual e não o protótipo do vídeo, naturalmente) e o balanço é muito, muito positivo. As vantagens são imensas, a começar pela poupança incrível e pelos ganhos ambientais. Eu já era fã da Nissan, foi um Sunny o único carro com que tive uma daquelas relações emocionais meio tolas (era conhecido na família como "o melhor carro do mundo", para terem uma ideia), mas o Leaf foi mais longe e as "emissões zero" conquistaram-me completamente.


 

Não falecemos nem fomos de férias, mas temos andado ainda mais baldas no que concerne à actualização do blog. Acho que o motivo principal é não termos nada de especial a relatar e a eterna desculpa de não ter tempo para nada também assenta aqui bem. Para terem uma ideia da pasmaceira da vida na margem certa, relato o meu dia até agora.


 


Acordei à hora do costume, apesar de hoje ser dia de folga (a malta reclama, mas a empresa ainda tem umas coisas porreiras). Arrastei o homem da cama (a empresa dele é menos porreira). Tomei o duche da praxe, vesti-me, coiso e tal. Arrumei quase toda a roupa passada. Fui à cozinha reclamar com ele porque deixou a loiça suja espalhada pela mesa e pela bancada e ameacei matá-lo ou acabar tudo com ele (já não sei bem porque são os argumentos que vou alternando conforme o tempo e/ou a disposição das facas do pão, sujas, em cima da superfície visível). Saímos os dois juntos, como de costume, mas hoje cada um para sua direcção. Fui (finalmente!) cortar o cabelo. Corte valente (os olhinhos da cabeleireira até brilharam quando lhe disse isso mesmo). Disse-me que sou parecida com a minha mãe, cliente habitual. Não é verdade, mas aceito. Deve ser por causa da cara de bolacha. Regressei a casa ainda não eram 8 horas. Tirei selfie para enviar ao babe (para o preparar e minimizar o choque, na verdade). Troquei a roupa pelo outfit de dona-de-casa-abençoada. Lavei uma montanha de loiça, arrumei duas montanhas de loiça lavada. Meti roupa na máquina para lavar. Acabei de levantar a mesa de jantar (porque para ele "levantar a mesa" é mover a loiça suja de uma mesa para outra e mesmo assim consegue ficar loiça por mover - é uma luta com anos, mas jamais irei facilitar ou ceder à visão falocêntrica do "ele até ajuda", comigo não funciona!). Abri a mesa da sala para caber tudo logo à noite, a toalha não é grande o suficiente, torna a fechar uma parte da mesa. Pus a toalha e o centro e umas taças com mimos. Lembrei-me das flutes, torna a lavar mais loiça. E mais umas taças e umas chávenas, é aproveitar a embalagem. Separei uns papéis para a reciclagem. Porra, o vaso da varanda tombou outra vez com o vento. Fiz a lista de tarefas com que vou brindar o babe quando ele chegar. Limpei o chão da casa toda, mesmo sabendo que logo vou ter de repetir a limpeza da cozinha e da sala.Tomei o pequeno-almoço e as drogas do costume. Passei a base nas unhas ("garra de leão"), que estão estranhamente fracas, e a merda da tiróide que não atina. Vim ler uns posts e deixar a quem por aqui passar um abraço sem promessas nem listas de objectivos para 2016, mas com boa vontade, gratidão e esperança genuína num mundo melhor amanhã do que é hoje. Vou decidir o que vou cozinhar e voltar ao serviço à cozinha. E logo vou brindar à saúde, à paz, à justiça e aos espumantes brutos. May the Force be with you!


 

Eles pensam que ser cosmopolita é que é bom, que viver no centro das cidades ou "na linha" é um sinal qualquer de status.
Eles gozam que a nossa casa fica "lá para o deserto do Jamé" e eu deixo-os falar, sorrindo para dentro. Agora gozam com a "marca" Lisbon South Bay. E eu ainda me rio mais sem que eles vejam. É que eles não fazem ideia do quão melhor e mais simples a vida pode ser na Margem Certa. Sim, há subúrbios e há subúrbios, ok. E só quem partilha este segredo à vista de todos pode calcular o quanto nós somos, na verdade, privilegiados, porque vivemos no melhor sítio dos subúrbios da capital. Não é à toa que já vivi em 5 casas diferentes, todas num raio de 2 km (3 das quais num raio de 300 m). Não é a toa que o meu homem trocou de bom grado a "Linha" dele por este lado.

 

"Xiii, tu vens lá do outro lado, e de transportes públicos?!" - perguntam-me eles, os que ficam hora e meia presos no carro para andarem 8 Km no IC Caracol, os que têm de pagar estacionamento todos os dias e os que passam um terço do Verão nas filas para as praias da Costa.

 

 

 

 


A trocar a minha terra pelo centro da cidade, só o faria para uma zona com metro à porta, e ainda assim só por comodidade de transporte para o trabalho. (Ninguém manda ter mudado de emprego para o cú de Judas, verdade.) Talvez o Martim Moniz ou os Anjos - e eles aqui acham que nem estou a falar a sério, quando esta zona é das minhas preferidas já há uns 15 anos. Já pensei nisso, até já andei a ver casas. Mas a minha Margem ganha sempre.

Porquê?

A nossa casa tem vista para o rio de todas as janelas. E para 3 cidades. E para as duas pontes. Acordo com o canto dos passarinhos ao fim de semana. Tenho todos, absolutamente todos os serviços necessários a um máximo de 10 minutos a pé (supermercado, farmácias, centro de saúde, bombeiros, polícia, finanças, biblioteca, tribunal, escolas, lares, transportes, restaurantes, mercado... You name it.). Não tenho, nem sinto muita necessidade de ter, carro. Os horários fora das horas de ponta são uma merda, mas é verdade que temos várias alternativas de transportes públicos até à capital e até aos confins onde trabalhamos. A nossa cidade tem paisagens deslumbrantes, tem o melhor dos cenários para fazer desporto ou só passear à beira rio. Está pertíssimo de praias várias (que por acaso até dispensamos, no Verão) e da Serra. Não há prédios altos nem ruídos de trânsito caótico. Vivemos num sítio onde, se alguém deixar a chave do lado de fora da porta a noite toda, vem um vizinho tocar à campainha para avisar. Arranjar consulta no Centro de Saúde está à distância de um telefonema. Os clubes desportivos e sociedades filarmónicas são, ainda, ponto de encontro para todas as gerações. Tenho um diploma de 25 anos de sócia de uma delas, já há uns anos. As bandas saem à rua nos dias de festa. A sirene dos bombeiros toca todos os domingos, às 13h. Todas as famílias da terra têm alcunhas (entre o hilariante e o indecifrável). Os reformados pescam à linha. O senhor do talho conhece-me desde que nasci. E o senhor da drogaria, e a cabeleireira, e a médica de família, e a farmacêutica, e a padeira, e muitos outros também. As senhoras que vendem vegetais no mercado incluem sempre ramos de ervas aromáticas, de oferta, nos sacos, e as que vendem peixe e marisco guardam o melhor e mais fresco debaixo da bancada, até chegarmos. A senhora do laboratório de análises clínicas conhece toda a gente pelo nome e sabe qual é o melhor braço de cada um para a recolha de sangue. Os velhotes cumprimentam-se com um típico e familiar "Aaa-tão?" É aqui a melhor biblioteca que conheço. Ninguém fica por demais chocado se alguém sai à rua de robe ou pijama para despejar o lixo ou passear o cão. O lago dos patinhos que me recordo tão bem de adorar visitar quando ainda nem sabia andar (mesmo que fosse todos os dias, era sempre uma excitação) ainda está lá, no mesmo sítio de sempre. E se ainda me lembro de como isto era dantes, antes dos "prédios novos", quando havia uma azinhaga ali ao cimo e a fábrica aqui neste lugar, com uma enorme amoreira logo à entrada (a mesma que alimentou gerações de bichos-da-seda de todos os miúdos da minha geração), das fogueiras dos santos no quintal grande da vizinha e mil recordações de infância, não gosto menos desta terra agora, tão diferente e tão igual, sem algumas das personagens que fazem parte da história, mas cheia de caras novas, de todo um novo século e distanciamentos naturais, e das coisas boas que ainda estão para vir. E eu, se puder, cá estarei também.

 

 

 

Pois, nada a fazer. Sou suburbana e adoro!