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Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

origem

A perfeição do céu lilás e laranja enquadra um cargueiro ao largo e algumas gaivotas embriagadas, seguramente vindas de um tasco que lhes permitiu o serviço de tinto em copos de três pela noite fora, vêm dizer "bom dia", estridentes, troçando dos que não têm asas, ou desconhecem que as asas, não podendo crescer-lhes das omoplatas, podem ser criadas com o engenho recto e simples de cortar as amarras que não se vêem, e portanto acreditam que não podem voar. Os passageiros dormentes e condenados à vida rasteira de horizontes míopes deslizam rumo à cidade que amanhece, fresca e solta, sem darem conta de viverem num cenário pintado a óleo com a minúcia delicada e a realidade difusa dos mestres impressionistas. Figurantes de um todo desinteressante, com receio de assumir protagonismos em cada um dos seus filmes, consumidos pelo desígnio da sobrevivência, da subsistência dos seus, chamuscados por paixões interrompidas, por sonhos de que os outros riram, por asas que foram arrancadas com violência logo à nascença, seguem de arrasto, mudos em cacofonia. 

A comoção pela beleza que um apaixonado encontra em cada flor murcha é um luxo de quem não tem úlceras dolorosas no coração. Olhar um momento pela janela dos olhos dos outros, adivinhar os sabores que lhe amargam o palato e os que incendeiam um sorriso, um privilégio de quem não se deixou cegar pela brancura falsa e suja da espuma dos dias que rodam, em sucessão estonteante, até à náusea. Deixar cair uma lágrima roliça de saudade é quase um pecado na cartilha moral. E a inércia, essa puta que desgraça epopeias com borrões de tinta seca, que dá o braço à pálida coragem que se traz de origem e finca os pés na terra, minando qualquer impulso, qualquer pequena fagulha que prometa lábios colados a quem se quer, é movida a medos insuportáveis. De onde se conclui, a cada abordagem, que o medo é o próprio inverso do amor.

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Odeio o medo que te finca ao chão, odeio o meu medo da rejeição, odeio o medo de sermos loucos juntos, odeio o medo que tens de cair se te levar a voar comigo, odeio as amarras que nos prendem, povo de submissões e de ombros encolhidos.

Odeio que os verbos te oprimam, odeio que não saibas de ti, odeio que não saibas onde me encaixar a mim.

Odeio a indefinição, odeio a imprecisão, odeio as regras que não sigo, odeio que não queiras estar comigo.

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O ano passado escrevi este texto para assinalar o Dia Internacional da Mulher. Passados 364 dias, a minha visão de mulher adulta num país europeu no século XXI não se alterou um milímetro, o que me entristece profundamente.

 

O meu texto continua, um ano depois, a estar ali em cima nos "destaques" do blogue. O tema parece-me muitas vezes só ser recordado a 8 de Março, perdendo fôlego no resto dos dias. Os direitos fundamentais das mulheres continuam a ser atacados e, parece-me, com maior leviandade, ou menor pudor, neste mundo desfasado em que os radicalismos imbecis ganham terreno um pouco por todo o mundo. O líder democraticamente eleito do mais poderoso país do mundo vangloria-se de poder "agarrar as mulheres pela rata", enquanto na casa-maior da democracia europeia (que não tem consagrado o direito a licença de maternidade nos seus estatutos) o eurodeputado polaco Korwin-Mikke defende que as mulheres devem ganhar menos do que os homens porque, segundo ele, são "mais fracas, mais pequenas, menos inteligentes"

 

 

Tudo isto não é "só" absolutamente execrável e ofensivo para todas as pessoas dignas desse nome, como é uma absoluta falta de vergonha na cara destes anormais e de todos quantos não se insurgem contra a propagação do ódio. É a glorificação da estupidez. É a João-Braguização do mundo (este nem link merece, toda a gente sabe do que estou a falar).

 

É, no fundo, um terrorismo tacitamente aceite, institucionalizado, quase um dado adquirido, de tão presente que está em todo o lado, nas nossas casas, nas nossas empresas, na Assembleia da República, nos jornais e televisões, nos Tribunais, nas Forças Armadas...

 

Nada do que digo é novidade, certo? Então, o que faz falta para mudar o mundo, para começar a equilibrar as diferenças e desafiar o status quo?

 

Faz falta perder o medo! Faz falta fazer voz grossa para nos fazermos ouvir e não termos pudor de exigir o que merecemos. Faz falta mudar as regras, a começar por cada uma de nós. Se o colega homem faz o mesmo trabalho que tu e recebe mais, é teu direito e tua obrigação lutar por um vencimento igual. Se o teu marido se senta no sofá e espera que o jantar apareça na mesa é teu dever mostrar-lhe que está em falta e gritar se for necessário para que ele faça a parte dele das tarefas domésticas. Se és mais qualificada para falar dum tema mas o jornal contactou o teu chefe para participar do debate, chega-te à frente e diz-lhes isso mesmo! Faz falta desafiar o mundo a ser melhor! Faz falta educar para ser justo e correcto. Faz falta varrer o preconceito! Faz falta boicotar todas as representações falocêntricas do mundo actual! Faz muita falta deixar de encolher os ombros perante as desigualdades.

 

Vamos lá quebrar as amarras, sem medo. Todos os dias!

A política do medo instalou-se por todo o lado. A comunicação social tornou-se ainda mais perversa e vale tudo para vender, vale o título gerador de conflito e de pânico, vale adiantar factos não confirmados, vale desinformar em vez do que devia ser a sua missão primeira, o oposto disso.
Vale a mentira.

A mentira é sempre a pior política, a meu ver. A nível individual, seja nas relações pessoais ou laborais, sigo desde sempre a minha regra da verdade acima de tudo. Traz dissabores, sim. É difícil de gerir, por vezes. Tem de se usar de diplomacia extra para dizer algumas verdades mais penosas (de dizer ou de ouvir). Mas vale a pena, porque não há nada que magoe mais do que a mentira. E é uma ofensa, seja por colocar aquele a quem é dita a mentira num patamar intelectual ou emocional inferior, no mínimo fraco. Ou acham que nunca irás descobrir a mentira, ou que não és capaz de lidar bem com a verdade.

A mentira é, ponto assente e repetidamente comprovado, o modo de viver das classes políticas mais fortes, porque é através dela que chegam ao poder. A mentira vale os votos dos mais distraídos, crédulos, ignorantes, interesseiros e cínicos. O interesse comum e público é cilindrado em prol de alguns interesses pessoais e materiais. É por esse motivo que a educação e a ciência são inimigos do despotismo encapotado, esse sim temível e mortífero e devastador.

Como é que nos habituámos a viver assim, a ser (des)governados assim, e sem muito fazer para trazer a verdade ao de cima?! Vivemos realmente num mundo fabricado, numa matriz para consumo imediato e superficial.

 

Até quando iremos tolerar esta deriva no nevoeiro?

A Carolina admite, tem medo. 

 

Não sinto o mesmo.

 

Posso dizer-vos que já se tornou quase uma anedota cá em casa e entre as pessoas mais próximas, sempre que vou para algum lado, parece suceder-se uma desgraça em grande escala pouco depois. Quase me apanhando de raspão. Desde atentados terroristas (nunca me vou esquecer que as imagens que foram divulgadas dos atentados em Mumbai, na estação de comboios Victoria Station, tinham um plano da cadeira onde estive sentada na cafetaria, dias antes), golpes de estado (Tailândia), explosões violentas, aviões a cair, sismos, you name it. Costumo dizer, como uma graçola, que a CIA deve andar a vigiar-me há anos, mas que sou absolutamente inocente (e sou!).

 

Não tem graça. Claro que já me cruzou o pensamento umas dúzias de vezes "e se (...)?". E se eu estivesse naquele avião, e se eu estivesse ali naquele dia, e se fosse comigo? Seria hipócrita dizer o contrário. Mas isso muda alguma coisa do que faça? Não. Claro que há riscos que podemos, e devemos, evitar. Mas só se vive uma vez, até prova em contrário. E todos morremos. E é quase sempre imprevisível o quando e o como. E não temos grande controlo sobre o curso das coisas.

 

 

 

 

Não tenho medo. A verdade é essa. Pode acontecer qualquer coisa, em qualquer canto do mundo. Tudo é um risco. Deixar de viajar seria uma morte lenta. O que não admito, jamais, é deixar de ir onde posso e quero por medo de qualquer coisa. Seria como deixar de viver, por ter medo de morrer