Morreste-me nos braços num dia igual aos outros, antes de o sonho começar a ser real. Quando me sentia ainda excepção pontual, de inseguranças feita e pernas a tremer. Quando ainda eram os teus olhos irreais demais para os saber de cor.
Não sei dizer-te saudade, não sei chamar-te amor.
Não te vejo a meu lado, não te oiço o respirar, os silêncios reticências sombras suspiros. Nem de ti sei, das tuas noites abertas de dúvida, das manhãs chuvosas que interrompem a música do teu sono.
O fio condutor que te trazia a mim cortei-o com os dentes. Memórias não sustentam ninguém, não retiram do ferro o peso acre ou do vazio no peito o sabor dos beijos. Afago os teus dedos sabendo que nada sentes e consumo esta estética da morte lenta que tece frases cinzentas a meia luz, como cicuta.
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É-me difícil escrever ou falar sobre este assunto. Não lido lá muito bem com a morte, mas tendo ideias claras sobre a soberania das decisões de cada um sobre a própria vida, lido pior com a aceitação da decisão legítima de uma morte "prematura". Porque é que é tão fácil validar a decisão em caso de doenças terminais e sofimento físico, mas tão complexa a aceitação da mesma decisão face a um sofrimento emocional, muitas vezes ligado a doenças psiquiátricas? A resposta ronda a possibilidade de recuperação, cura, melhoria, talvez, mas provavelmente radica inteiramente numa desvalorização injusta (tão injusta!) das doenças mentais e do sofrimento não palpável.
Há dores que não se exteriorizam. Há doenças que não se vêem. Há sorrisos gloriosos em pessoas massacradas com dor, com percepções tão erradas de si próprias que lhes parece que a sua vida não vale nada. É desesperante essa dor, esse sentimento de invalidez permanente, de uma sentença perpétua de angústia insuportável. É desesperante o sentimento de impotência perante uma pessoa que nos diz que quer morrer.
As pessoas não são, nem têm de ser, fortalezas o tempo todo. Ninguém é. Mesmo as pessoas que parecem ser, que aparentam estar sempre bem ou ter uma vida perfeita, que parecem felizes, podem estar a travar batalhas gigantes sem que ninguém se aperceba. Por favor, perguntem aos vossos amigos se estão bem; oiçam; não julguem. Se estão deprimidos e já tiveram ideias suicidas, por favor falem com alguém, com um profissional ou um amigo de confiança.
Linhas de ajuda e apoio ao suicídio em Portugal
Caso tenha pensamentos suicidas ou conheça alguém que revela sinais de alarme, fale com o médico assistente. Se sentir que os impulsos estão fora de controlo, ligue 112.
Outros contactos:
SOS Voz Amiga Lisboa (atendimento das 16 às 24h)
21 354 45 45 91 280 26 69 96 352 46 60
SOS Telefone Amigo Coimbra 239 72 10 10
SOS Estudante Coimbra 808 200 204
Escutar - Voz de Apoio Gaia 22 550 60 70
Telefone da Amizade Porto 22 832 35 35
A Nossa Âncora Sintra 219 105 750 219 105 755
Departamento de Psiquiatria de Braga Braga 253 676 055
Não é a unanimidade que atesta o valor de alguém ou da sua obra. Não é por ter sido um ícone musical da sua geração que o Zé Pedro deixa um generalizado sentimento de perda em, arrisco dizer, toda a gente. A morte do Zé Pedro comove toda uma nação, independentemente de se gostar ou não da música dos Xutos. [Eu gosto, muito, e perdi a conta ao número de concertos dos Xutos a que assisti, em tantas ocasiões e palcos diferentes, da Festa do Avante a concertos privados, a cantar cada refrão.] A morte do Zé Pedro não precisa de artigos nos jornais a recordar os seus feitos ou a limpar as suas nódoas, porque o seu valor - sobretudo humano - não deixou margem para dúvidas em vida. O Zé Pedro ganhou-nos o respeito e admiração de cada vez que falava em público, com sinceridade e sem peneiras, como um amigalhaço de toda a gente, como um de nós, com as suas merdas, com dias maus, com bondade e alegria, com erros e com sonhos; de cada vez que falava dos seus problemas de saúde, dos vícios que deixou para trás, da música ou do amor, cada um de nós era um bocadinho Zé Pedro.
A comoção nacional com a morte do Zé Pedro não se pode fingir, não se pode contornar, não é passível de indiferença. Não há qualquer margem para polémicas e divergências. Qualquer homenagem que se lhe faça é merecida porque todos temos o Zé Pedro num cantinho do coração. Qualquer pequena manifestação de pesar pela morte do Zé Pedro tem de sobra aquilo que falta em outras, movidas por interesses, pelo politicamente correcto, por tentativas de limpeza de vidas cheias de podridão opressora e exploradora: honestidade.
Tomara que quando eu morra, me recordem assim, pelo sorriso e por nunca ter traído a minha classe em palavras ou em actos, por ser igual para todos, por igual.
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Não tenho particular afeição a monumentos nacionais (tenho afeição à natureza, à beleza e à arte, mas isso é outra conversa) e penso que já falei por aqui do inexistente sentimento nacionalista que me assiste. Além disso, tenho uma relação muito particular, pouco consensual e nada pacífica com a morte. Sou contra o culto dos mortos, as homenagens póstumas, os lutos de roupa negra feitos, as flores nas campas e toda a cultura de coitadinhização de quem deixou de existir. Faz-me afronta que os mortos passem todos a ser respeitáveis e bonzinhos na boca de tanta gente, nomeadamente os calhordas, fascistas e crápulas em geral. Isso e a exibição da dor para a sociedade ver, estabelecer empatia e consumir até ao mais ínfimo pormenor, a par do meu entendimento pessoal que os mortos não são nada nem ninguém (são só matéria orgânica, não são feitos, nem obras, nem memória), que o respeito e afecto se demonstra em vida e que os rituais ligados à morte são uma farsa, dão-me motivos de sobra para preferir não compactuar, de todo, com os folclores de funerais, cremações, cemitérios, etc.
Posto isto, a jantarada no Panteão também me causou alguma repulsa. Sem ligação alguma com um eventual respeito pelos mortos que contém, nem com o local em si. Compreendo que seja encarado como um desrespeito por pessoas com um entendimento diferente do meu, que serão a maioria, e não me faz sentido encetar discussões por via desse argumento. O que me incomoda é a mercantilização de tudo. Tudo tem um preço, até o aluguer de um espaço que por muitos pode ser considerado semi-sagrado ou merecedor de uma honorabilidade ou simbolismo particulares. O Estado pode e deve encontrar fontes de receita em património público emblemático, nomeadamente através da sua utilização para fins turísticos, não me choca rigorosamente nada, desde que seja dentro de limites de razoabilidade e de decoro. Não é o caso. Estou em crer que a maior parte das pessoas que manifestaram algum espanto e desagrado com o evento o consideraram indecoroso. É quase uma prostituição da dignidade pública a atribuição de um preço a certas actividades e abrir precedentes pode chegar a extremos ridículos. Estou a imaginar convenções da IURD nos Jerónimos, estou a imaginar uma festa dos vinhos e enchidos na Torre do Tombo, ou uma exposição automóvel na Sé. Divago, bem sei. Mas no limite, é possível e talvez não devesse ser. Não vou estar a discutir culpas e cores políticas, parece-me desnecessário neste ponto. O dinheiro não pode comprar tudo, não se pode converter toda a oportunidade em capital, o Estado não pode colocar a lógica capitalista acima da defesa dos interesses do Povo.
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Se acreditasse em alguma dessas fábulas que põem os mortos nas estrelas ou no céu ou inferno, acreditaria que a "blackstar" que hoje se juntaria ao firmamento encantaria as demais com as suas cores, como nos encantou e encantará a nós, há décadas e para sempre.
Fazer o que se quer e gosta até ao fim, não deixar ninguém indiferente, nisso sim, acredito e respeito enormemente. Um gigante, este homem. Um gigante.
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Chamava-o, entre a ironia e alguma simpatia, de Mariano Gagá. Na altura em que a Educação era a "paixão" do Governo Guterres (lembram-se?), andava eu a ser educada no ensino superior, na Ciência que escolhi, minha paixão de sempre, que me deu quase tantas alegrias como amarguras.
Era ministro da Ciência e Tecnologia Mariano Gago, falecido hoje. Nos governos de Sócrates foi igualmente ministro, acrescendo à pasta a tutela do Ensino Superior. Cientista (engenheiro electrotécnico pelo I.S.T. e doutorado em Física pela Universidade de Paris), um dos poucos que considero verdadeiros socialistas e com "Técnico" escrito na testa. Foi bolseiro, portanto sabia com propriedade da vida de investigação científica e da via académica.
Tendo em conta que a maior parte dos ministros não percebe um boi da pasta que ministra, Mariano Gago era a excepção. Não fez tudo o que havia para ser feito e que podia ter feito, mas fez algumas coisas muito boas (entretanto desfeitas e reduzidas a pó). Vendo o estado degradado, degradante e lastimável da Ciência em Portugal actualmente, recordo os seus tempos até com alguma nostalgia. A opinião é unânime, a Ciência sofreu hoje mais um desfalque.
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"Escrever é fazer recuar a morte, é dilatar o espaço da vida."
Jornal de Letras, Artes e Ideias, Lisboa, nº 50, 18 de Janeiro de 1983 In José Saramago nas Suas Palavras