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Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

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Viajar é preciso. É absolutamente essencial para aprender a vida, para reconhecer a humanidade em todos os rostos, para perceber que somos todos feitos do mesmo, de matéria mortal e de sonhos, de medos, de risos e de dor. Viajar é a única forma de compreender a filosofia, a inutilidade da religião, a globalização, a ecologia, a finitude dos recursos e o propósito de existirmos, de unir todos os saberes com uma visão menos parcial e incompleta do que somos - que é nada além do acaso material da vida e da consciência.

Como entender um mundo tão grande e diverso e realmente reflectir sobre os “desafios globais” de que nos falam livros e debates, se permanecermos toldados pela visão pequenina e eurocêntrica do mundo? Viajar não é passar uma semana de reclusão num qualquer resort com tudo incluído, que isso é pior do que não espreitar para a rua desde o abrigo quente das quatro paredes. Viajar é conhecer o resto do mundo com outros olhos, é correr riscos e confrontar cada preconceito, questionar as necessidades que pensamos que temos e o conforto a que estamos habituados, é conhecer a realidade de forma mais isenta, é saber onde vivem os trabalhadores dos outros países, quanto pagam por um litro de leite e que transportes apanham para o trabalho, o que cantam quando comemoram alguma coisa, de que riem e o que fazem ao Domingo. Viajar é viver na pele dos outros, é fazer um esforço para virar a cultura e a sociologia ao contrário quando é preciso, e perceber que afinal todas as diferenças não são mais do que manifestações ímpares daquilo que é comum a todos. Viajar abre horizontes em múltiplos sentidos, mas talvez o mais importante seja calejar a tolerância. Tudo o que pode chocar com o que normalmente tomamos por adquirido encerra um potencial de aprendizagem espantoso que vale por si só, e ainda potencia a empatia para com os outros seres humanos. A empatia é a pedra basilar para fazer um mundo melhor, para revolucionar verdadeiramente o mundo feio e egocêntrico que tritura vidas e esvazia almas em troco do lucro máximo de quem já lucra tudo.

Viajar é preciso, mas não é preciso percorrer os quilómetros para sair de quem somos. Conheço muita gente com inúmeros carimbos no passaporte mas que nunca foi capaz de sair da sua pequenina bolha impregnada de preconceitos e amarras. Felizmente conheço também quem tenha saído pouco do seu país e seja cheio de mundo (respeito imensamente quem se expõe ao desconhecido propositadamente, com um devir consciente e não sem um esforço insistente). Era Bernardo Soares, heterónimo de Pessoa, que dizia, certeiro: “Para viajar basta existir. (...) Se imagino, vejo. Que mais faço eu se viajo? Só a fraqueza extrema da imaginação justifica que se tenha que deslocar para sentir.

Viajar é um acto humanitário, de rebeldia e revolucionário. É cortar amarras de preconceitos e aprender que todas as verdades podem ser discutidas. É também por isto que viajar é muito diferente de ser turista. Ao turista importa ir aos monumentos que o guia da excursão diz que são imperdíveis e tirar uma selfie em cada um para poder atestar que cumpriu os mínimos obrigatórios. Ao viajante importa misturar-se na multidão, fazer compras no mercado e comer nas tascas onde o povo come. Ao viajante importa regressar mais rico, mais duro e mais maduro, porque nunca é o viajante que partiu o que regressa. O viajante não traz respostas no bolso para distribuir pelos outros, recolhe perguntas e confronta-se com elas diariamente. O viajante não sossega, porque a inquietude corre-lhe nas veias e faz reacção alérgica ao conformismo. Quem viaja nunca dirá que está satisfeito, que já viu e viveu tudo o que tinha para ver e viver. Quem viaja tem uma sede insaciável de fazer parte do mundo todo, tem noção da sua pequenez, insignificante presença efémera, e vive atormentado com quaisquer amarras que lhe queiram impor.

Já há bastante tempo que costumo usar uma questão, quer num exercício contínuo de auto-análise, quer quando aconselho outras pessoas: o que é mais provável, és tu que estás errado(a) ou é o resto do mundo (que faz/pensa o contrário de ti) que está errado?

 

Não é suposto a resposta ser sempre a da concordância com a maioria, porque as maiorias nunca foram garantia de sensatez ou de razão (a única falha da Democracia?), mas apenas dar o mote para uma reflexão descentrada do próprio umbigo. É que muitas vezes basta colocarmo-nos na pele de outra pessoa para perceber que aquilo que achamos óbvio pode não ser nada claro para outros, para perceber que os interesses pessoais conflituam muitas vezes com os interesses da maioria, ou até para aceitar contrariedades inevitáveis da melhor maneira possível. É, no fundo, o exercício elementar de nos colocarmos na posição dos outros, ou da mudança de perspectiva. Faz pela tolerância e compreensão do mundo e dos outros o equivalente à psicoterapia sobre o próprio. Experimentem, é grátis!

 

A minha wishlist das coisas materiais (que não é a wishlist a sério) é curtinha e tem há anos e anos seguidos (mais de 20, garanto) os mesmos itens*.


Não pelo valor material ou preços proibitivo (que não têm), não que sejam assim tão raros de encontrar. Pelo significado que têm, em crescendo.


Globos terrestres, mas de quando ainda existia União Soviética, Jugoslávia, de quando Myanmar ainda era a Birmânia.


 


Da outra wishlist, de imaterialidades que até podem ser conseguidas com cartão de débito, não vale a pena escrever, eu aponto no globo.


*Já risquei da lista o Monet e o Klimt. Venha um Dali.

Eu tenho uma confissão a fazer. Que só é confissão neste fórum, porque na minha "vida real" toda a gente sabe, há décadas, do que é que a casa gasta. O meu vício, o único, é uma paixão desmesurada, uma vocação inusitada, um chamamento. Viajar. É o que consegue dar-me ânimo se tudo o resto correr mal, alegria genuína, excitação, orgulho de estar viva e a aprender tantas coisas, restaura-me uma inocência pueril, inunda-me de ambições gigantes.


Se morresse agora, neste momento, levava fantásticas memórias de aventuras em muitos lugares, que guardo como se de amigos se tratasse, daqueles íntimos, com quem partilhámos alguma coisa profunda, mesmo que durante pouco tempo. E levava comigo uma angústia sufocante de não ter embarcado em mais aventuras, de não ter feito amigos entre outros sítios que me povoam os sonhos desde sempre.


O mundo é tão esmagadoramente grande e intenso, infinito, e tão pequenino. Do mundo que carrego comigo, não como um fardo, mas antes um tesouro fechado na palma da mão, o meu mundo, egoistamente só meu, faço biografia com mapa de memórias. Este mundinho infinito provoca-me, seduz-me. - caraças, que privilégio estar viva e ser testemunha de tanta e tão extraordinária beleza! Que bom, estar apaixonada pela vida.