Decididamente, o melhor dia para ir à Feira do Livro é o primeiro. Ainda as melhores pechinchas estão disponíveis, ainda está tudo arrumadinho, cheira a novidade...
Como habitualmente, fui cheia de vontade de honrar o compromisso de não comprar nada - não faz sentido, com tantos livros ainda por ler e com a quota de espaço para os arrumar já esgotada há muito... Como habitualmente, não resisti e trouxe dois da Cotovia (ambos da Simone de Beauvoir) e dois da Quetzal (um da Alexandra Lisboa e outro da Ali Smith), a preços muito simpáticos. O namorado trouxe um traduzido, também da Quetzal, do Irvine Welsh.
Numa nota sentimental, achei a menção aos 20 anos do Nobel do Saramango demasiado pequenina e breve perante o gigantismo do génio (para mim o maior de todos os tempos).
[Eu sei que a minha visão não é imparcial, que eu sou daquelas que acha que Saramago devia ser celebrado diariamente, exultado incessantemente. É que na literatura, há histórias bonitas, há palavras bem colocadas e personagens profundas. Há exposição além de todos os sentidos da beleza e da fealdade do mundo. E depois, além de tudo isso, há obras que nos mudam, como viagens a sítios desconhecidos dentro de nós, fazem-nos reponderar algumas verdades que achávamos inquestionáveis, fazem-nos mudar de lentes. Foi com o Memorial do Convento que me apaixonei irremediavelmente pelo Saramago, mas a cada novo romance a paixão ficou confirmada, reforçada, tatuada em mim. Saramago será sempre o meu gigante literário, as palavras dele terão sempre o poder de me comover de maneiras que poucos conseguem. E eu serei sempre um bocadinho Blimunda, avessa a normas e a ver mais do que devo, aventureira e voadora assente nas muitas vontades que moram em mim.]
Mais para ler
[Boicotando descaradamente a ordem da longa lista de posts inacabados (em rascunho ou nas notas do telefone há meses!), hoje é que é, não vou adiar para comentar um assunto na ordem do dia.]
Opinião honesta de pessoa que até tende a ser conservadora em relação à literatura, quiçá a forma de arte em que é menos eclética (apesar de confessar gostar de Dan Brown, lá na categoria do entretenimento):
Gostei da decisão do comité Nobel. Aplaudo. Gosto das letras do Bob Dylan, reconheço-lhes qualidade poética, embora esteja longe das minhas preferências - o Cohen para mim é superior e até tem um romance absolutamente fantástico, e o Nick Cave ainda mais e - desculpem se ofendo a universalidade do inglês - o Ary dos Santos, o Zeca e o Jorge Palma não se ficam abaixo do Nick.
Obviamente que os poemas (cantados ou não) são indiscutivelmente Literatura. Só os velhos do Restelo e os míopes da cultura se chocam porque este autor hoje galardoado não escreve livros. E então? Num país que ainda não se deu conta que produz uma quantidade incrível de génios literários per capita é simplesmente ridículo ver a elite "erudita" a contorcer-se de aversão (e inveja?) com a atribuição deste Nobel. Estavam todos a torcer pelo Lobo Antunes, não é? Eu estava e estarei a torcer pelo Kundera, agora que Saramago e Alice Munro já viveram a justiça do seu mérito reconhecido.
Concorde-se ou não, a Academia tomou uma decisão audaz que tem, se não muito mais do que isso, a vantagem de ter provocado celeuma, espanto, colocando temas seculares no centro da discussão por algum tempo, arejando conceitos. Por exemplo, está agora mais uma porta aberta para agitar a discussão literária quanto à banda desenhada (graphic novels é um termo tão mais elegante), e só isso já é uma lufada de ar fresco bem necessária nas montras de livrarias rendidas ao fast food das letras, que só provocam fastio.
O confronto de cada um com a notícia forçou-nos a reflectir, a formar opinião, provocou-nos o espírito crítico. Se isto não é o melhor que a Academia Sueca podia fazer pela Literatura, digam-me então como seria fantástico que Murakami finalmente ganhasse o Prémio e o quanto a arte literária seria novamente subvertidaà sua mera vertente comercial. Pois. Bem me parecia.