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Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

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Muitos trazem cravos pendurados no peito aberto, cheio de orgulho do que não chegou a ser, murchas pétalas de uma liberdade tímida que se encolheu e resignou.

Desbotados, cravos murchos, cansados de uma luta que se venceu mas não medrou.

Outros empunham cravos ao alto como tochas, que de luz se vestem as flores quando os olhos estavam já acostumados a uma escuridão sufocante. Contra o azul do céu, um cheirinho de ousadia, palavras de ordem a romper décadas de silêncios mais fortes.

Eu carrego um cravo às costas. Não como fardo, mas como desígnio, desejo, propósito maior. Destino e rota incontornável, que canta o som de grilhões caídos e alvoradas por estrear nos sonhos de muitos olhos, nas lágrimas de muitos mares.

Não é mais bravo o meu cravo do que os outros, rubros heróis que fizeram de espingardas jarras. O cravo que carrego, que me empurra e me sustenta é hoje, é agora, é urgente. Os cravos da madrugada mais antiga do que eu, os cravos que já foram, esses são eternos. São os cravos das canções e da História, de um final quase feliz que podia ter sido um princípio de tudo, tivesse criado raízes.

O meu cravo negro e triste, traído, posto de parte, adiado, não se resigna a esperar mais, não cede e não cai. É cravo novo, viçoso, a cada manhã regado com lutas, com povo e materializadas utopias. Cravo poema, esperança em flor, com pressa de crescer e ser erguido vitorioso. Branco paz, branco puro, branco futuro. Negro noite, negro tormenta, definitivo luto. Meu cravo vivo, pulsante, vermelho sangue, vermelho liberdade, vermelho punho erguido, vermelho grito.

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Publicado originalmente no Repórter Sombra, no dia 29/04/2019.

Foi Salgueiro Maia, capitão de Abril, que o disse há quarenta e cinco anos. A ditadura foi derrubada e a democracia teve, depois de quarenta e um anos, as portas finalmente abertas.

 

Desobedecer a leis de regimes opressores, ditaduras, ou quando as leis não servem ao povo mas a quem o explora, é um direito e um dever de quem tem a justiça como ideal.

 

O sistema judicial é feito para proteger a classe dominante e manter os poderes. Não nos iludamos, as leis só servirão o povo quando o povo mais ordenar efectivamente. Até lá, a lei é burguesa e protege o poder, ou seja, o capital, ou seja, os ricos, patrões e empresas.

 

A noção de legalidade não é em nada paralela a uma mensurabilidade do que é certo face ao que é errado (em termos de justiça e não em termos morais). Disso mesmo são evidências históricas as inúmeras validações legais de atentados contra a humanidade. A escravatura era legal, o holocausto foi legal, o apartheid na África do Sul era legal. A segregação racial nos Estados Unidos da América era perfeitamente legítima perante a legislação então em vigor, da mesma forma que o voto às mulheres era negado ou o trabalho infantil de doze horas diárias na Inglaterra em plena Revolução Industrial era prática corrente. Hoje mesmo, o casamento entre pessoas do mesmo género é duramente condenado em muitos pontos do globo (como se de um crime horrendo se tratasse), ou o adultério da mulher, por exemplo. Fica claro, portanto, que legalidade e justiça são conceitos afastados e só vagamente relacionados.

 

Os actos de desobediência civil podem ser tão pouco confrontativos como não pagar impostos, como fez Henry David Thoreau (o pioneiro a teorizar sobre o conceito) no século XIX, contra a escravidão e o financiamento da guerra contra o México, ou faltar às aulas como forma de protesto, ou ocupação de espaço público sem comunicação prévia às autoridades, bloqueando o trânsito, ou à ocupação ou danificação de propriedade privada. Por norma, a desobediência civil pauta-se por acções não violentas (embora o conceito de violência possa ser discutível), mas o seu impacto tem um efeito ampliado e provavelmente mais capaz de alertar e mudar mentalidades, sobretudo em tratando-se de acções massivas, repetidas, insistentes. Quando se sabe que se luta por justiça, por igualdade, por um mundo melhor, não há argumentos legais que demovam quem acredita; não há medo ou repressão capazes de calar a razão.

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Desobedecer é preciso. Num mundo repleto de injustiças, de violações de direitos humanos, de exploração dos mais fracos por parte dos mais fortes e de iminente colapso climático e ecológico, o problema maior é obedecer. É compactuar, pela inacção, com o sistema que causa e se alimenta das discrepâncias. Não é cumprindo ordeiramente as exigências dos mais poderosos que se muda alguma coisa do tanto que está errado. Não é com petições e abaixo-assinados que se alteram políticas ou que se revertem os efeitos do capitalismo selvagem que deixam tantos na miséria para muito poucos se tornarem cada vez mais ricos. Muitas vezes, nem sequer os protestos públicos, palavras de ordem e faixas se fazem notar o suficiente nas casas do poder, que continuam o seu caminho seguro de cilindrar as vidas de milhões de pessoas a troco de mais uns milhões nas contas bancárias, mais uma negociata bilionária a ser paga pelo bolso de quem já pouco tem. O agente de mudança real na sociedade, colocando de parte as opções violentas (que também só estão ao alcance das mesmas entidades políticas e económicas com meios para as concretizar e para sustentar uma organização robusta) ou, concedendo, com excesso de boa vontade, que as eleições democráticas possam realmente carregar um poder em que é natural e legítimo ser ou estar profundamente descrente, é a contestação massiva e organizada, a disrupção.

 

A desobediência é uma arma contra a opressão. A desobediência militar de um grupo de bravos derrubou a ditadura em Portugal em Abril de 1974. A desobediência civil é uma arma política de enorme potencial de mudança, que tem conseguido vitórias surpreendentes, desde as sufragistas aos movimentos pelos direitos civis americanos. Atente-se no exemplo de Greta Thunberg, a activista adolescente que fez da greve às aulas uma forma de unir meio mundo em torno da maior causa comum, ou o movimento internacional Rebelião de Extinção (Extinction Rebellion), na mesma luta pela justiça climática através de múltiplas acções directas não violentas de desobediência civil, em dezenas de cidades pelo mundo fora. Até onde se poderá ir se existirem inúmeras acções de desobediência civil, por todo o mundo, em sintonia em relação às suas reivindicações, a chamar à responsabilidade decisores políticos e poderes económicos, a alertar e despertar os cidadãos comuns para se juntarem às causas? Pequenas rebeliões locais, a multiplicarem-se a uma escala crescente, a crescerem e a deixarem de ser pequenas e locais para serem a grande escala e internacionais, a engrossarem as massas de uma mesma grande rebelião, serão um dia capazes de implementar uma autêntica revolução?

 

É difícil prever o que o futuro pode encerrar, mas é com esperança renovada nas vitórias dos movimentos sociopolíticos que se estão a erguer confiantes a exigir um mundo mais justo para todos que reside hoje a esperança na humanidade. Venceremos!

 

Crónica publicada originalmente a 16/04, no Repórter Sombra.

“Dizer mentiras é feio!” - ensinamento incontornável dos adultos às crianças pequenas, tentativa de reprodução dum parâmetro moral nas mentes dos mais pequenos. Contudo, fá-lo em simultâneo com a instalação de uma série de mentirinhas aparentemente inofensivas, a bem de um imaginário fantasioso comum, ditado pelos costumes de narrativas vagamente educativas, como a existência de um Pai Natal que premeia crianças bem comportadas (mas que no fundo premeia as privilegiadas), fadas dos dentes e bichos papões. De seguida ensina-se as crianças a não dizer todas as verdades, que podem ser incómodas, embaraçar os adultos ou chocar os interlocutores: “isso não se diz!”, “mostra respeito!”

Portanto, sob o escudo da retórica moralista defensora da verdade, desde pequenas as crianças são ensinadas, pelo exemplo e pelas inúmeras mensagens contraditórias, que devem omitir e mentir para se encaixarem na norma, para não serem malcriadas, para não serem confrontativas e como sinal de respeito.

A mentira é uma constante da vida. É mais cómoda do que verdades inconvenientes, evita diferendos e atritos, faz promessas impossíveis, ganha eleições. Como uma capa de camuflagem que esconde a verdade feia e protege das verdades alheias.

Mais do que uma arma, a verdade desarma os outros. Incomoda, porque é, muitas vezes, inesperada. Outras vezes, demasiadas, porque magoa, e magoa os mais próximos, os que mais se deseja proteger. Ser brutalmente honesto pode ser uma maldição. Ser adepto da verdade absoluta a todos os momentos pode entrar em contradição com o conceito útil, que se vai adquirindo com as tareias da vida, de verdades desnecessárias. Opiniões que ninguém pediu, informações supérfluas, se só vão servir para magoar ou perturbar alguém, ou considerações que não trazem nada de positivo, são mais benéficas mantidas em silêncio.

Mas as mentiras, essas são corrosivas, qualquer que seja a sua envergadura. Fétidas e de pernas curtas, vão arrastando pelo caminho os que se aproximam, vão-se encrustando cumulativamente, camada sobre camada, como sujidade que se acumula ao longo do tempo, de tal forma que já não se consegue ver a superfície real. Uma mentira fininha por educação, outra mais espessa para não ficarem com a ideia errada, outra pequenina porque nos pediram segredo, outra camada mínima para evitar o confronto…

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Mesmo sem má índole ou segundas intenções, a verdade torna-se tão distante e inverosímil que chega a ser divertido que tantas pessoas tenham dificuldade em acreditar nas verdades que lhes são atiradas a sangue frio. As verdades inesperadas, que chocam, aquelas que são frequentemente maquilhadas com mentiras, são tantas vezes recebidas com gargalhadas nervosas, inseguras, incrédulas, como piadas e como falsidades. Quando se reforça e assegura que não há nada de falso nas inéditas afirmações, assume o lugar o espanto, o receio, eventualmente a consternação. E fica a verdade como um incómodo que é preciso explicar, justificar a fundo. Fosse uma qualquer balela evidente e seria aceitável com tranquilidade.

No fundo, o que falta não é só a exposição da verdade sem tabus. O que falta acima de tudo é capacidade de encaixe, de lidar com o confronto com algumas verdades, com a distância entre as expectativas e a realidade. Não somos (especialmente os povos latinos) formatados para lidar com a frustração ou para reagir racional e friamente, mas antes a evitar causar frustrações aos socialmente próximos. Mesmo que para isso seja necessário suavizar a verdade com as universalmente aceitáveis little white lies, aparentemente inofensivas, mas que contribuem para uma realidade assente numa pilha de máscaras globais.

O desconforto da mentira fica só com quem mente para não ofender os restantes, que se sentem ofendidos com a dívida de verdades. Será a mentira um gesto de sacrifício, abnegação ou indulgência? Ou talvez seja o comodismo que faz perpetuar as mentiras e a aceitação social das mesmas. Talvez seja demasiado difícil, exigente, cansativo, penoso ser sempre inteiramente fiel à verdade absoluta. Mas para quem? Para quem fala verdade ou para quem prefere viver num mundo de faz-de-conta a lidar com verdades que magoam e desarranjam os lugares das coisas?

As verdades, mesmo as mais difíceis, só doem uma vez. As mentiras são matreiras, mas sempre descobertas. E aí doem múltiplas vezes: pela mentira em si, pelo acto de quem mentiu, porventura por todos os cúmplices que assentiram, e torna a doer de cada vez que se confronta o que se sabia como verdade e deixou de ser. Dizer mentiras é feio, viver mentiras é indigno.

Aceita-se traições, duas caras e cenários idílicos de paredes falsas a troco de uma paz superficial, de uma aparência esquizofrenicamente divergente do que é real. Aceita-se tolher quem somos e queremos a bem de manter longe os limites de normas que ajudamos a definir. O que temos a perder vale assim tanto a pena? Para que se quer um mundo, relações ou quotidianos impregnados de floreados inúteis e sorrisos falsos, apenas para colher uma ou outra facada nas costas, uma ou outra desilusão e tempo perdido? Tenhamos a coragem de ser objectivos, de ser assertivos, de abrir à luz os lugares de sombras e de enganos.

Qual é o custo da mentira e, mais importante, qual é o custo da verdade?

 

Crónica publicada originalmente no Repórter Sombra, a 03/04.

Dia 8 de Março é o Dia da Mulher e está convocada uma Greve Feminista Internacional. Tendo em conta os comentários que se vêem e ouvem todos os anos como reacção ao Dia da Mulher e, ultimamente, como reacção específica à greve, ou muita gente não faz ideia da realidade em que vivemos, ou o feminismo ainda é um bicho papão que mete muito medo ou é ostensivamente incompreendido por parte de muita gente. Vou então endereçar e tentar desmistificar, um por um, os comentários mais representativos ou caricatos sobre o tema.

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Feliz dia da Mulher! Toma lá uma flor!

Não se macem, homens, patrões, sindicatos. Algumas pessoas até podem gostar de flores, algumas mulheres até podem achar que este dia é uma oportunidade de celebrar alguma coisa, mas estão... Como dizer isto?... Errados! O Dia da Mulher é um dia de luta política, não é um dia festivo com o propósito de agradar as mulheres com uma florzinha condescendente. Não precisamos de flores ou de festas, precisamos de ser tratadas como pessoas plenas, em igualdade de circunstâncias e direitos com as pessoas que não são mulheres, todos os dias.

 

Se há o Dia da Mulher, porque é que não há Dia do Homem?

Porque dia do homem é todos os dias. Sem excepção, nem mesmo a 8 de Março. Porque é o homem o privilegiado na sociedade patriarcal, porque as relações de poder estão desequilibradas e o domínio ainda pertence (incrivelmente!) aos homens. Olhem em volta. Olhem para as pessoas em posição de poder, para a Assembleia da República, para ministérios e secretarias de Estado, para as Assembleias Regionais, para o poder municipal, para o poder judicial, para as forças de segurança, para as mesas de accionistas, para as listas dos mais estupidamente bilionários da Forbes, para as direcções de ONGs, colectividades e associações de estudantes; olhem para as televisões, para os jornais, para os oradores em congressos, simpósios e conferências. Olhem para a representação de géneros na ficção, filmes e livros, na publicidade, nas embalagens de fraldas a iogurtes. É por isto que não há nem deve haver mais um dia especial, além dos 365 do ano, para celebrar a masculinidade. Porque não é o homem que está oprimido, sub-representado, reduzido a elemento utilitário ou decorativo, condicionado. Porque não é o homem que é vítima de mutilação genital em mais de 27 países a bem da “tradição” de controlar e reprimir a sexualidade, porque não é ao homem que são imputadas as principais tarefas de cuidados e trabalho reprodutivo, porque não é o homem que sofre violências múltiplas sobre o seu corpo, desde os ideais de beleza a que é esperado que corresponda até às agressões sexuais e à violência no parto, porque não é o homem que está, estatisticamente, mais sujeito à precariedade no trabalho, porque não é o homem que tem um fosso salarial de cerca de 20% para superar, porque não é o homem que é constantemente julgado e avaliado pela sua aparência ou pela sua conduta íntima, porque não são os homens que são apalpados em sítios públicos vezes incontáveis ao longo da vida, porque não são os homens que constituem 86% das vítimas de violência doméstica, porque não é o homem que culpabilizado pelas agressões que sofre. Porque aos homens tudo é permitido e desculpável, porque a cartilha moral é muito mais permissiva para os homens. Porque as mulheres são todas umas putas, mas o pior que um homem pode ser é filho da puta.

 

O machismo já não existe, isso era dantes!

Claro que não existe. As mulheres portuguesas de hoje são umas sortudas! Já podem votar, conduzir, trabalhar fora de casa (além da jornada dupla e tripla na gestão do lar e enquanto cuidadoras da família - já lá vamos) e ganhar 80% do que ganham os machos! Uau! Já podem viajar sem autorização escrita do seu amo, marido ou pai. Até já se podem divorciar e, heresia, interromper uma gravidez indesejada sem terem de recorrer a serviços clandestinos sem condições de higiene ou segurança. A não ser que residam em um dos muitos países em que esta realidade ainda é uma miragem! Mas nós por cá já temos esse incrível avanço há séculos - não, afinal é só desde há menos duma dúzia de anos.

Só no século XVIII é que era possível morrerem doze mulheres às mãos de maridos, ex-companheiros e pais em pouco mais de dois meses. Foi obviamente na Idade Média que a justiça portuguesa deliberou que o adultério da mulher era um gravíssimo atentado à honra do homem, e que isso seria uma atenuante face à agressão violentíssima (com uma moca com pregos, em jeito de Neanderthal!) da mulher “pecadora” por parte do seu ex-companheiro e do ex-amante, numa bonita união da masculinidade tóxica despeitada. Foi há pelo menos quinhentos anos que o mesmo juiz misógino, que se sente lesado por quem diz que ele é misógino, retirou a pulseira electrónica a um homem que agrediu ao soco a sua companheira porque ele nem sequer usou de qualquer arma contundente, e afinal só provocou hematomas, escoriações e um tímpano destruído, mais agressões verbais que já nem contam (afinal ela já estava surda do lado esquerdo, provavelmente nem ouviu).

 

Mas a igualdade já está garantida por lei!

Está sim, na Constituição e tudo. E está muito bem, só que entre o que está escrito nas leis e o que acontece na realidade vai um bocadinho, coisa pouca (ver ponto anterior).

Por um lado, a paridade é uma ficção. Era excelente não serem necessárias quotas para garantir o equilíbrio de géneros nos cargos de poder, é claro que o acesso devia estar reservado a critérios de meritocracia. Só que a meritocracia é um mito e a paridade espontânea outro. Numa sociedade patriarcal e intrinsecamente machista, se isto não for regulamentado e efectivamente aplicado, a mudança que se prevê (diz um estudo) que demore cinco gerações a lograr demorará ainda mais. E convenhamos, já ninguém tem paciência para esperar mais para sair da Idade Média.

Por outro lado, a lei pode ser interpretada e usada em sentidos diversos, de acordo com o juízo dos que têm poder de fazer exercer a lei, como Portugal tem sido tão eficiente a demonstrar.

 

Até já há mulheres que ganham mais que os maridos! O que é que querem mais?

O drama, o horror. Como assim, ousam perverter uma relação de poder típica e trocar os tradicionais papéis de género? Isso não é natural! Na volta, lá em casa mandam elas e eles, coitadinhos e emasculados, ainda têm de cozinhar, passar e lavar o chão, que é uma tarefa que se sabe tipicamente de fêmea, enquanto as patroas vêem a bola ou saem com as amigas. E as que nem querem ter filhos, renunciando ao desígnio divino e à sua função primordial (única não, porque alguém tem de lavar a loiça)? Mais as que dormem com quem entendem, as que são mães solteiras por opção, as lésbicas, senhores! Hereges! É natural que as mulheres ganhem menos do que os homens, porque afinal dedicam-se menos ao trabalho, não é? É. As mulheres têm esse terrível handicap de não ter genitais masculinos e toda a gente sabe que a “dedicação ao trabalho”, ou a capacidade, ou a competência, residem no falo. Ou a capacidade de exercer trabalhos mais pesados fisicamente, que as mulheres são todas fraquinhas, como se sabe… Não deixa é de ser curioso que o trabalho intelectual também seja díspar nas retribuições, apesar de as pessoas com mais formação serem… as mulheres.

 

Eu ajudo a minha mulher em casa e quando é preciso até troco a fralda ao bebé!

Ah, esta belíssima constatação que normalmente se faz acompanhar da expectativa de elogios e palmadinhas nas costas, como se de um acto heróico ou extraordinário se tratasse. Homem: se também vives lá em casa, não se chama “ajudar”. Se comes todos os dias, fazer o jantar em dias de festa não conta como partilhar tarefas. Se és parceiro, trocar uma fralda quando a tua companheira está ocupada não é ser um excelente pai; é nem conseguir chegar ao mínimo indispensável. A partilha de tarefas domésticas significa que elas são, efectivamente partilhadas, de acordo com possibilidades, disponibilidades, energias. Partilha de tarefas domésticas é qualquer um fazer o que houver para fazer, simples como isso.

As inúmeras tarefas domésticas, os cuidados da família e de casa, da prole aos mais velhos, são trabalho fundamental à sustentação da sociedade como a conhecemos, mas tipicamente, trabalho não remunerado e invisibilizado, a cargo sobretudo das mulheres. Aparece feito, como por magia. E mesmo as funções de cuidados que são assalariadas, estão tipicamente associadas às mulheres: limpezas, refeitórios, educação infantil, geriatria. E estão também tipicamente associadas a condições contratuais precárias, a baixos salários… Até quando?

 

Agora qualquer desentendimento entre o casal é logo violência doméstica...

A naturalização da violência doméstica precisa de ser banida. A violência doméstica precisa de ser erradicada, ponto! Num país onde mais de metade dos jovens já sofreu violência no namoro e 67% acha normal alguma forma de violência (física, psicológica, sexual ou atitudes de controlo), onde a escalada de femicídios está a atingir proporções absolutamente assustadoras, onde 85% das queixas não seguem para acusação e as queixas serão uma pequena parte das situações de violência, onde as vítimas são sistematicamente culpabilizadas e os culpados são deixados em liberdade, não pode haver a mais pequena chance de assobiar para o lado e ignorar o problema. Decretar dias de luto não faz nada pelas vítimas. Violência doméstica é crime público, já não pode haver cabimento na máxima “entre marido e mulher não se mete a colher”! Basta! Quem cala ou tenta escamotear a verdade está a compactuar com o crime e isto não pode ser tolerado!

 

Mas nem todos os homens!…

Claro que nem todos os homens são agressores, claro que nem todos os homens são machistas e nenhuma feminista em usufruto de plenas competências intelectuais acusa todos os homens de serem agressores ou machistas. Mas obrigada por frisarem o óbvio, não acrescentando rigorosamente nada ao tema e ocupando o espaço público com a vossa indignação inédita, desviando a atenção do que realmente interessa. Esta coisa do #notallmen é uma flagrante questão de ego. Tão acostumado que está a achar-se no direito de ter algo a dizer, a interromper, a ter a atenção e a palavra ainda que o assunto não lhe diga respeito, o pobre macho sente-se ameaçado no seu privilégio se alguém fala da sua tribo masculina sem criar a excepção em seu nome. O que a esmagadora maioria dos homens não entende é que é o seu lugar privilegiado na sociedade enquanto homens (sobretudo se forem ricos, brancos e heterossexuais) que os faz cair no ridículo de se sentirem melindrados com acusações justas para com os homens agressores e machistas. Senhores, para o “nem todos os homens” (#notallmen) é que já não há pachorra! Já muito ajuda quem não atrapalha, portanto queiram fazer o favor de se absterem quando não têm nada a acrescentar.

 

Vestida daquela maneira/à noite sozinha/estava a dançar com ele, o que é que ela queria?

Queria divertir-se, queria beber e dançar como as outras pessoas sem ser assediada, apalpada ou violada, sem ser agredida. Queria ser tratada com respeito, queria não ser alvo de juízos de carácter por fazer com o seu corpo o que bem entende, queria não receber assobios e propostas sexuais de desconhecidos, queria não ser assediada no trabalho, queria ter o mesmo salário e oportunidades que têm os homens seus colegas. Queria andar sozinha de noite sem ter medo de ser atacada. Queria não viver numa sociedade em que a cultura do estupro é dominante. Queria só ser respeitada e ter o mesmo tratamento que é genericamente dado às pessoas sem vulva. Queria não ser alvo do anedotário nacional que relaciona uma derrota do clube de futebol do agressor com a consequente surra na esposa, como se a correlação fosse aceite tacitamente como justificação. Queria não ser parte das estatísticas que apontam as mulheres como 80% das vítimas de violência doméstica e 90,7% das vítimas de crimes sexuais. E é também por causa deste flagelo que é muito necessário ter um Dia da Mulher e fazer uma Greve Feminista. Repitam comigo: as mulheres não são objectos, são pessoas.

 

Greve?! As greves só podem ser convocadas por sindicatos!

Esta Greve sustenta o nome por ser um evento internacional e que pretende ser uma expressão massiva de contestação social. Há países em que a mobilização em anos anteriores já juntou nas ruas milhões de pessoas (com e sem vulva)! Em 2018, só em Espanha foram sete milhões. Vejam bem que até cá no burgo da retaguarda da Europa, já há (poucos, poucochinhos e tão insuficientes) sindicatos temerários que foram buscar coragem política onde os seus pares não a vislumbram e fizeram o pré-aviso de greve. Os restantes continuam, aliás, a perpetuar o status quo e a “premiar” as trabalhadoras com flores, como se houvesse lugar a algum tipo de celebração ou como símbolo de uma espécie de fragilidade decorativa das mulheres nos locais de trabalho, o que rejeitamos com veemência. Poupem-nos a semelhantes manifestações de “solidariedade”, que aliás são utilizadas precisamente pelas entidades patronais - sim, as mesmas que cavam o fosso salarial que coloca as mulheres a laborarem sem remuneração por 58 dias anuais em comparação com os homens.

Se é esta fraca colaboração que a grande maioria dos sindicatos tem para oferecer às mulheres trabalhadoras, não são parte da solução, mas são indubitavelmente parte do problema - que é como quem diz, do sistema.

 

Mas não se pode convocar uma greve só para mulheres!...

Obviamente que não. Numa greve contra a discriminação, não são só as mulheres que devem lutar pelos seus direitos, mas todas as pessoas que acreditem que as pessoas que não se identificam como machos não são pessoas de segunda categoria. (A sério que é preciso explicar isto?!) Não existe guerra dos sexos, o movimento feminista quer acabar com o patriarcado, não com os homens. Aliados são bem-vindos e necessários. Os aliados que recusam perpetuar o sistema que lhes confere o privilégios múltiplos e lutam lado a lado com as mulheres, sem se sobreporem à sua voz, por um mundo mais justo para todos, são valiosos e bem-vindos.

 

Como é que posso juntar-me à Greve Feminista?

A greve almeja um abalo suficientemente forte nas opressões sistémicas para que o sistema mude de facto, e assenta em quatro eixos: greve ao trabalho assalariado, greve estudantil, greve aos cuidados e trabalho doméstico e greve ao consumo de bens e serviços.

Há várias formas de colaborar, sendo que fazer greve é a que encabeça a lista. A segunda melhor forma de ajudar é sair à rua e engrossar a massa humana das manifestações que vão ocorrer em vários pontos do país - quantas mais pessoas na rua a reivindicar os direitos de todas nós, melhor. Depois, é ainda fundamental o apoio dos homens à greve, não só engrossando os espaços de luta como também substituindo as mulheres nas suas tarefas domésticas e de cuidados, porque há muitas pessoas dependentes dele.

Se as mulheres param, o mundo pára.

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Olá. O meu nome não é Sofia e eu sou poliamorosa.

Não sou uma extraterrestre, não sou uma pervertida ou tarada sexual. Sou só alguém que, como provavelmente a maior parte das outras pessoas, ama mais do que uma pessoa mas, ao contrário da maior parte das outras pessoas, vive várias relações afectivas e sexuais com o conhecimento e consentimento de todos os envolvidos. Está dito. De seguida, vou explicar um pouco mais. Vamos por partes.

 

Poliquê?

O poliamor é uma das formas relacionais que se enquadram na não monogamia ética e distingue-se por existirem sentimentos românticos por mais do que uma pessoa em simultâneo. Uma imensa panóplia de outros formatos existem, desde as relações abertas à anarquia relacional. A diversidade é tanta que se torna complexo atribuir definições estanques e rótulos. O ponto fulcral de todas as não monogamias éticas é o desejo de manter relações afectivas ou sexuais com mais de uma pessoa ao mesmo tempo, em que existe consentimento de todas as partes. Podem existir parceiros preferenciais numa hierarquia clara, ou não, parceiros ocasionais, tríades, diferentes graus de envolvimento emocional, com ou sem co-habitação, com ou sem co-parentalidade.

 

O meu percurso

Durante muito tempo achei que era monógama. Não conseguia conceber que tivesse espaço emocional para mais do que um Amor profundo, denso, absorvente, ou acreditava que pelo menos um seria sempre mais importante, mais bonito, mais pesado e, em comparação, a existirem sentimentos por outra pessoa, não podia ser amor, pelo que teria de fazer uma escolha e manter-me fiel ao “amor verdadeiro”. Quer dizer, não concebia isto especificamente para mim, já sabia o que era o poliamor, já apoiava desde sempre todos os formatos de relações abertas e de não monogamia ética, mas apesar do interesse político e social que me despertava, não me via a mim em tal situação. Até que aconteceu. De repente e sem pré-aviso, entrou na minha vida alguém que me abalou uma série de certezas, que me suscitou sentimentos muito fortes e impossíveis de ignorar, e isto sem colocar em causa ou alterar os sentimentos que existiam pela pessoa com quem já mantinha uma sólida relação íntima, a quem nunca escondi rigorosamente nada em nenhum ponto e que, sendo a pessoa absolutamente extraordinária que é, apoiou que explorasse livremente os meus sentimentos e desejos, num processo cheio de dificuldades e complicações particulares que superámos e com o qual aprendemos e crescemos muitíssimo.

 

Ao longo das contínuas incursões analíticas de auto-conhecimento, fui percebendo que já me tinham surgido vários outros interesses amorosos que não os meus parceiros durante o curso de todas as relações em que tinha estado, e que sempre tinha reprimido esses interesses, cortando qualquer hipótese de aprofundar o conhecimento da outra pessoa, porque isso se afigurava como um “risco”, um potencial atentado contra a estabilidade da relação. Tinha condicionado a minha liberdade sentimental a escolhas sucessivas, porque estava profundamente convencida que apenas uma pessoa poderia merecer o meu amor, todo o meu amor, como se de um recurso finito e escasso se tratasse.

 

Percebi finalmente o quão ridículo era deixar passar a oportunidade de deixar entrar na vida pessoas fantásticas, com o potencial de se tornarem muito importantes, por receio de gostar delas e, ao mesmo tempo, depositar toda a pressão de encontrar em todos os momentos o que se necessita de dar e extrair de uma relação emocional em apenas um outro ser humano, com personalidade, gostos e ritmos próprios, com falhas, erros e momentos complicados, e toda a miríade de particularidades individuais que têm direito a existir muito para além, e por vezes em contradição, da esfera da relação entre duas pessoas. Percebi que não só os modelos relacionais não-monógamos fazem muito mais sentido, como as próprias relações, cada uma delas, se torna muito mais saudável, com expectativas mais realistas, com comunicação mais fluida, com mais partilha e, ao contrário do que possa parecer à primeira vista, muito mais segurança. Percebi enfim que, tendo percebido tudo isto, não havia a menor hipótese de voltar a conceber plausível para mim a monogamia, que agora se afigura como restritiva e desadequada.

 

Como se gere?

Na não monogamia ética todas as relações (emocionais e/ou sexuais) são consentidas entre todos e existe um grau variável de liberdade para explorar afectos e desejos com outras pessoas. Isto é ponto assente. Depois, cada relação tem as suas dinâmicas, regras e hábitos próprios, que os intervenientes vão construindo e desconstruindo, ajustando, desejavelmente na óptica da confiança e transparência e com muita comunicação. Os formatos são múltiplos, não existem conceitos de relações “certos” ou “errados”. Há relações abertas (em que os intervenientes têm liberdade de explorar outros interesses afectivos ou apenas sexuais), há relações poliamorosas (em que as ligações implicam um envolvimento sentimental), podem existir relações com hierarquia distinta (com parceiros primários distintos dos secundários), ou no caso da anarquia relacional, sem regras estanques, e mais uma panóplia de variações. Há quem faça “contratos” ou estabeleça regras vinculativas e há quem vá acordando e decidindo o que é melhor e mais confortável para todos à medida que as situações e desafios surgem. As pessoas e as relações não são estanques, evoluem e adaptam-se. E acontecem problemas, crises, zangas e rompimentos, bem como fases excelentes e momentos fabulosos, como em todas as relações.

 

E o ciúme?

Na minha perspectiva, o ciúme é apenas um reflexo da insegurança ou do desajuste de expectativas. Não posso dizer que nas relações não monógamas não há ciúme. É claro que pode haver, porque a insegurança pessoal não se ultrapassa com passes de mágica, mas é vivido de outra forma. A comunicação aberta e constante é um imperativo, pelo que o cenário mais provável é que as pessoas inseguras deixem claras as suas inseguranças ou expectativas frustradas, e os seus parceiros façam o melhor que sabem e podem para as aplacar. Além disso, o mindset de uma pessoa não monógama é, à partida, capaz de resolver grande parte do problema na sua génese. A liberdade é a maior prova de amor. Se temos e damos aos nossos parceiros liberdade para estar com quem escolhermos, sem amarras ou condições, sabemos que quem está connosco só está porque quer e enquanto quer, e não para manter uma promessa ou contrato de fidelidade exclusiva.

 

O próprio oposto do ciúme é sentido frequentemente pelos poliamorosos. Chama-se compersão à alegria e felicidade que se sente quando um dos nossos parceiros encontra uma nova pessoa que o faça feliz - e não, asseguro que não é um mito.

 

Porque é que a monogamia é a norma?

A monogamia é o tipo de relação exclusiva (normalmente, em termos emocionais, sexuais, estruturais e sociais) entre duas pessoas. É a norma cultural vigente, dado que a presunção implantada colectivamente é a de que a relação romântica ocorre apenas entre duas pessoas. O conceito de monogamia está intrinsecamente ligado ao conceito de propriedade privada - e mais concretamente à ideia de, numa relação heterossexual, a mulher ser propriedade privada do homem. Na família monogâmica patriarcal, surgida com o advento da agricultura e do sedentarismo das populações, o homem é o centro do poder e tem um direito inquestionado de “ser infiel” (nos machos a líbido é apenas uma manifestação de virilidade, como é sabido), mas uma vez que precisa de garantir que os seus herdeiros são filhos legítimos, a mulher não aufere do mesmo direito. A (o)pressão acrescida que se atribui às mulheres verifica-se em todo um código de conduta subentendido que as obriga à monogamia e à fidelidade. Uma transgressão da mulher ao elo do matrimónio monógamo é, ainda hoje, vista como "um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem", citando o célebre – pelos piores motivos – acórdão do juiz Neto de Moura.

 

Como resultado desta opressão histórica propagada de forma quase universal, e reforçada pelo clero, as normas sociais vigentes impõem sobre o amor romântico uma série de regras e mitos sem fundamentos plausíveis.

 

A mononormatividade é incutida e reforçada socialmente de forma transversal. A ideia de que só se ama uma pessoa, de cada vez ou na vida toda, que quando se encontra “aquele alguém especial” se sabe, porque esse amor é tão único e irrepetível que só há um cartucho para gastar durante toda a vida, a noção de que ter sentimentos por outra pessoa além do parceiro já existente é uma espécie de falha ou poluição que invalida a veracidade do amor, está presente em todas as facetas da vida no mundo actual. Está presente nas narrativas romantizadas do amor idílico em filmes, romances e demais ficções em que os triângulos amorosos e outras alterntivas à ideia de amor perfeito único são apresentadas como obstáculo a superar, dilema a resolver. Está presente em toda a lógica dos mercados orientados para a vida a dois, em casal (e, já agora, em casal heterossexual e binário). Está presente na religião, na lei, na justiça, e está presente nos casamentos e ainda em grande parte das famílias divididas.

 

Quantas relações monógamas actuais são destruídas porque alguém sente interesse, atracção, amor por outro alguém e o reprime, causando desconfortos e desequilíbrios em si e na dinâmica relacional, ou persegue um novo interesse de forma escondida, sem assumir a verdade perante a relação já existente, como se a atracção ou o amor fossem algo de feio, sujo ou ilícito? Onde está escrito que só se pode ter uma relação, um amor, um companheiro?

 

Curiosamente, muito pouca gente parece parar para questionar esta ideia tosca e tão pouco sensata do amor romântico único. Em mais nenhuma relação emocional a sociedade interfere de forma a limitar a um o objecto de afecto. Não tem cabimento para ninguém obrigar as pessoas a escolher apenas um filho para amar, apenas um irmão, ou o pai ou a mãe, que os dois é demais. Ninguém fica boquiaberto perante o facto de alguém ter mais do que um(a) amigo(a) com quem gosta de passar tempo. O moralismo pequeno-burguês marca a natureza distinta das relações pela presença de intimidade carnal. Novamente, é a ideia fundada nas raízes da cultura judaico-cristã e reforçada pelo feudalismo de que o sexo é uma coisa pecaminosa (sobretudo para as fêmeas, já sabemos) a destrinçar o que é aceitável do que é um atentado aos bons costumes.

A monogamia enquanto norma social é, assim, uma opressão difícil de contornar.

 

Falar da não monogamia a pessoas monógamas

Não é fácil assumir e viver publicamente sem vínculos às expectativas do que é a norma social. O que existe em contra-regra é olhado como estranho, como anormal, é caricaturado e conotado com uma série de ideias pré-concebidas sem qualquer fundamento. No caso das não monogamias, a desinformação abunda e a desconfiança e o preconceito também. Falar da não monogamia a pessoas monógamas é um desafio e muitas vezes torna-se frustrante. Dizer e viver a verdade parece ser mais estranho do que encobrir com mentiras que tornam tudo muito mais normalizado. Na sociedade actual, em que o adultério é perfeitamente normalizado e até, em certa medida, expectável porque não só não questiona a norma da monogamia, como a reforça e reproduz, são as vivências amorosas e sexuais múltiplas com consentimento de todas as partes que são percepcionadas como transgressões sociais e morais. É curioso, não é, que a transparência e a verdade sejam consideradas imorais, mas que as opressões, mentiras e traições sejam corriqueiras e banalizadas?

 

Fazer uma saída do armário (“coming out”) pode ou não fazer sentido, consoante o contexto social e familiar, a personalidade e estrutura mental e emocional de cada pessoa. Não estando a fazer nada de errado ou que seja motivo de vergonha, pode ser esquisito fazer esforços para esconder o modo de vida; contudo, assumir perante o mundo formatado para a visão oposta e informar inusitadamente os outros pode também significar abrir a porta a preconceitos, a incompreensão, a tensões e a lutas que, muito francamente, podem aportar muito pouco além de desgaste emocional e turbulências desnecessárias.

 

Não pretendo fazer a apologia da não monogamia ética versus a ridicularização da monogamia. Não há certos ou errados no que diz respeito às relações pessoais íntimas. Cada qual sabe de si e o que funciona bem para uns não tem de funcionar para outros. Pretendo, sim, desmistificar as construções fictícias em torno da monogamia como modelo desejável, recomendável e caminho único para a felicidade amorosa. Pretendo, sim, fazer a apologia da liberdade, da aceitação, da tolerância. Acima de tudo, quero evidenciar aquilo que toda a gente, no fundo, já sabe. O amor não é um bem precioso que se deva guardar num cofre e dar a um receptor único. O amor é infinito, é plural, contagioso. O amor não se divide, multiplica-se.

Como é que se perde um amigo? Falo de uma perda de amigos vivos, falo do fim da amizade, de uma árvore seca, sem seiva ou lume; falo de ficar um vazio, seco e frio, onde antes estava uma super-cola imaterial a unir duas pessoas. Perder um amigo é diferente de um afastamento, de um desgaste, de uma fase mais complicada, de um amuo ou zanga; nestes casos tudo pode voltar naturalmente ao que já foi, ou pode só manter-se esta distância feita de indulgência mútua, sem nunca se ter passado pela ruptura, pelo sentimento de perda. Há amizades que se diluem no tempo, nas distâncias, nas circunstâncias da vida, nos desencontros, nas diferenças, nos desânimos, nas derivas lentas. Mas falo de ter algo raro, bonito e precioso num momento, e de repente não mais o encontrar. Falo de faltar um chão que era sustento seguro, de se ser dispensado do lugar de presença constante e incontornável. Falo de uma dor repentina como um trovão, insustentável, dilacerante, paralisante.

 

Perder, diz-nos o dicionário, é “deixar de ter alguma coisa útil, proveitosa ou necessária, que se possuía, por culpa ou descuido do possuidor, ou por contingência ou desgraça.” E amigo é “quem sente amizade por ou está ligado por uma afeição recíproca”. Perder um Amigo é, portanto, uma afecção disruptiva da reciprocidade de um afecto, por culpa ou descuido, contingência ou desgraça.

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Confesso que sou nova nisto de perder amigos e talvez por isso me custe tanto a compreender. Já deixei ir alguns amigos, quedei-me passiva perante as imposições de algumas distâncias ou permiti que desgastes e frustrações alargassem os elos, por negligência ou circunstâncias várias. Também já coloquei em pausa Amizades importantes, por motivos de força maior, mas os elos não quebraram e estas uniões retomaram o seu lugar ou retomarão um dia. O afecto e todo o muito que nos unia continua a existir, intacto. Na hora de recomeçar, pega-se no ponto onde se ficou, basta sacudir e desempoeirar as marcas do tempo, a cumplicidade retorna e a partilha também.

 

 

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[Crónica publicada no Repórter Sombra]

A indústria farmacêutica é uma das mais lucrativas do mundo, e um dos tentáculos mais cruéis do capitalismo. Mercantilizar um direito fundamental como é o acesso à saúde é uma opressão brutal sobre todos os que não têm condições económicas para se proteger, tratar ou curar. Este é um ponto basilar de toda e qualquer discussão sobre saúde e que não pode ficar arredado do pensamento. O capitalismo mata gente, ponto. Mata muita gente. Mantém doente e incapacitada e em sofrimento agonizante muita gente. Limita a liberdade, a mobilidade, a capacidade de trabalho (logo, a subsistência) e o bem-estar de ainda muito mais gente.

Posto isto, não deixa de ser espantoso que se criem resistências patetas, baseadas em ignorância, medo, mitos e desinformação, talvez laxismo, a soluções preventivas que são acessíveis. A corrente New Wave de anti-vaxxers que coloca em causa não só a própria vida como a saúde pública é um perigo global que já trouxe de volta doenças que tinham sido dadas como erradicadas (como o sarampo) e vai permitindo à selecção natural actuar de formas que já deviam estar em desuso.

Tomemos o exemplo da vacina da gripe. Em Portugal, esta vacina é disponibilizada gratuitamente para uma parte das pessoas consideradas grupos de risco e é uma protecção eficaz contra um vírus muito mutável, que causa uma doença extremamente comum, potencialmente debilitante e mesmo mortífera se existirem complicações. Mas proliferam vários mitos sobre a mesma e a maior parte das pessoas dispensa a vacina, mesmo podendo adquiri-la sem esforço ou gratuitamente. Já ouvi desculpas como “as vacinas são para os velhinhos” ou “se apanhar a vacina é certo que fico doente a seguir”. Não, as vacinas não são só para os velhinhos. São indispensáveis a todos quantos fazem parte de grupos de risco (pela fraca imunidade ou pela exposição acrescida, por exemplo), de todas as idades, mas são também úteis a todos os outros, já que não é raro os surtos de gripe tomarem características epidémicas. E não, a vacina da gripe não contém vírus activos, pelo que não vai provocar gripe a quem a toma. Não vai é a tempo de evitá-la caso o contágio se tenha dado antes (o período de incubação varia entre um e cinco dias).

É também comum, em Portugal, empresas de média ou grande dimensão facultarem aos seus trabalhadores a vacina contra a gripe (não porque sejam beneméritos, mas porque pretendem evitar o absentismo e quebra de produtividade dos trabalhadores doentes). Mas graças aos mitos e desinformação, grande parte dos trabalhadores recusa esta protecção. Destes, a maioria está, pouco tempo depois, a tossir e a espirrar nas salas e corredores (que ficam passíveis de confusão com um sanatório), para cima dos equipamentos comuns, a usar as mesmas maçanetas e torneiras que toda a gente. Ou seja, a potenciar o contágio. E isto também porque ninguém quer perder o salário de uns dias “só” por causa de uma gripe. Ao contrário do que alguns patrões e chefias pensam, os trabalhadores não vão trabalhar doentes por “amor à camisola” e extrema dedicação, mas porque precisam do salário.

A falta de civismo também é um dos factores de propagação da doença. Seja numa sala de espera de um hospital ou centro de saúde ou em qualquer transporte público, é quase um milagre não apanhar uma doença contagiosa. Pessoas de todas as idades a espirrarem alarvemente e a tossirem sem taparem a boca, além de uma tremenda falta de maneiras (não no sentido de etiqueta, mas no sentido de respeito pelo espaço individual) é um cenário comum que demonstra um desprezo generalizado pelas mais básicas regras de higiene, que se junta ainda à falta de hábito de lavar as mãos e à pouca vontade quando só há água fria nas torneiras e está um frio de rachar. As normas sociais que impelem aos apertos de mãos e beijinhos são o golpe final para concluir o cenário de surtos de gripe uma ou duas vezes por ano.

O investimento da Direcção Geral da Saúde em prevenção da gripe existe, mas sem particular notoriedade, pelo menos do ponto de vista do cidadão comum. No Sistema Nacional de Saúde, a falta generalizada de equipamentos suficientes e eficientes para cobrir as necessidades das populações (hospitais e centros de saúde com serviços de atendimento permanente, para começar) levam a salas de urgências a abarrotar e a tempos de espera intoleráveis, em que a exposição a agentes infecciosos aumenta consideravelmente. Um apontamento muito positivo é aqui devido à Linha Saúde 24 (808 24 24 24), que disponibiliza de forma gratuita aconselhamento cuidado e encaminhamento dos utentes.

Quem ganha com tudo isto? A indústria farmacêutica de que estamos reféns, que vende a solução preventiva e vende uma miríade de remédios para tratar cada um dos sintomas (um para a febre, um para a tosse, um para as dores de garganta…). Depois do enorme embuste que foram as vacinas contra a Gripe A (vírus H1N1) há nove anos, para responder a um alarmismo sobredimensionado, mesmo os mais ingénuos já perceberam que não estamos a falar só de uma relação económica simples entre procura e oferta. Estamos a falar de um negócio multimilionário assente num complexo sistema de interesses que joga com dinheiros públicos, privados e com a saúde das populações. Faz-nos pensar, por exemplo, se terá sido só coincidência que num inverno como este, em que o pico esperado do surto de gripe tardou mais do que o habitual, as vacinas contra a gripe tenham estado genericamente esgotadas até ao final de Dezembro...

A saúde das pessoas, que deveria ser prioritária ao longo de todo o processo (da informação à prevenção, do diagnóstico ao tratamento) é uma espécie de efeito secundário neste enredo em que cada um de nós é apenas mais um consumidor. Deixar a saúde nas mãos gananciosas do grande capital significa que são as leis do mercado que controlam tudo. As soluções que curam não são rentáveis para as farmacêuticas, pois estariam a anular rendimentos futuros. Assim, o interesse da indústria não é produzir curas; é manter os doentes dependentes de medicação a longo prazo com drogas “cronificadoras” das doenças. Por outro lado, as doenças que afectam sobretudo populações com pouco poder de compra vão sendo negligenciadas e o investimento em investigação e desenvolvimento de medicamentos foca-se nas maleitas do mundo ocidental e desenvolvido. Não é por mero e infeliz acaso nem por inépcia da ciência que doenças devastadoras como a SIDA, malária ou tuberculose não tenham ainda curas definitivas e vacinas completamente eficazes conhecidas, ou que as populações dos países em desenvolvimento só pareçam ser apelativas para a indústria do ponto de vista dos ensaios clínicos.

Entre a ignorância que rejeita a vacinação e empola surtos de doenças erradicadas ou ‘apenas’ de gripe, e a ignorância da alienação e passividade perante o controlo da civilização por parte do poder económico, há pontos comuns e é nestes que devemos, colectiva e individualmente, reflectir. A ignorância, como o vírus da gripe, é contagiosa, propaga-se rápida e facilmente e não se cura com antibióticos. Além disso, inicialmente aparenta ser uma perturbação sem grandes consequências, passageira, mas abre a porta a complicações muito maiores e gravosas. Mas ao contrário do vírus, infelizmente, não há vacina que nos proteja contra a “infecção”. Cabe a cada um de nós fazer a profilaxia individual (informação, raciocínio crítico e higiene intelectual) e estimular os outros a fazerem o mesmo.

Da mesma forma que as doenças são incuráveis só até se descobrir a cura, também os poderes só são invencíveis até serem derrotados.

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[A minha mais recente crónica publicada no Repórter Sombra.]

Dar desinteressadamente é das atitudes mais louváveis do ser humano. A generosidade para com o outro não é necessariamente traduzida em valores materiais, mas é dar afecto, o seu tempo, o seu carinho, a sua atenção, dar uma mão para ajudar a levantar ou para amparar uma queda, ou também dar apoios palpáveis para concretizar um sonho ou suprimir uma necessidade. Pode traduzir-se de milhares de formas diferentes, das mais complexas às mais singelas. Pode ser apenas uma companhia, uma boleia, uma frase, um incentivo ou um abraço, ou qualquer outra demonstração de zelo pelo bem-estar do outro.

Dar abertamente o que se tem e pode, sem agenda, sem ulterior interesse ou sem sentimento de dívida ou expectativa é uma manifestação de altruísmo genuíno. Talvez seja empatia, talvez seja solidariedade, ou muito mais do que isso, amizade.

Não confundir a generosidade com a caridadezinha, com a esmola, que de altruísta tem muito pouco, movendo-se antes pelo culto do ego, da imagem externa, de uma pretensa superioridade moral ou religiosa. Quem dá de boa vontade não informa o mundo que o faz, dispensa bem a publicidade, a exibição e o elogio.

Quem recebe, se não sofrer de complexo narcisista ou não tiver capacidades emocionais ou intelectuais afectadas, sentir-se-á grato por ser alvo da ternura ou bondade de outro. Mas quando o sentimento de gratidão se transforma num balancete entre o deve e o haver, numa medida calculista que atribui valores quantitativos e materiais a cada acto, o sentimento é desvirtuado. Chega mesmo a ser um pouco ofensivo que aqueles a quem se dá façam questão de retribuir “em igual medida” ou excessivamente, para saldar uma dívida que não existia. Chamei em tempos a esta forma calculada de agradecer "gratidão de contabilista".

Quem dá de coração aberto, porque quer e gosta, não mantém um livro de contas em que regista o que dá, quando dá ou quanto vale o que deu. Quem dá com amor, dá porque sim, para despertar uma alegria do outro lado, nunca para formalizar uma dívida, jamais para ficar numa situação de superioridade ou de poder em relação ao outro.

Repito amiúde “a amizade não se agradece, retribui-se”. No entanto, quando a retribuição surge como uma obrigação, forçada, contida em moldes formais, pensada ao detalhe para não defraudar eventuais expectativas, porventura trabalhada ao exagero para manifestar uma gratidão que até pode ser real, soa a falso. Normalmente até são gestos que traduzem uma gratidão bem real, mas tão demasiado pensada, tão equilibrada ou abundante no seu retorno, que fica constrangida e diminuída até caber nos moldes do socialmente aceite e conspícuo. Tanto, que é desconfortável e intimidante.

Para saber dar, é necessário saber receber. Quem tem dificuldade em aceitar elogios, afecto ou um mimo, seja porque nunca o teve de forma sincera, porque tem a auto-estima desfeita, porque tem uma imagem desfigurada de si próprio ou por outro motivo qualquer, não tem padrões nem referências aos quais se comparar, fica perdido, muitas vezes com medo, aterrorizado de que este afecto lhe seja cobrado de formas a que não pode corresponder. Não sabe como receber essa dádiva estranha, acha que não merece, crê que fica em dívida para com quem dá e tenta colmatar o défice logo que possa, atabalhoada e exageradamente.

Quem não está habituado a sentir-se amado fica de tal forma espantado com demonstrações abnegadas de afecto que pode confundir o amor com uma benesse ou uma espécie de favor. É uma visão deturpada dos afectos, mas é comum quando a visão do próprio é, também ela, deturpada. Assim, tem maior probabilidade de ter uma forma calculista de reciprocar, o que muitas vezes cai no exagero, na subserviência, numa hipérbole que não toma toda a extensão que aparenta. Contorce-se em agrados, capaz de sacrifícios que ninguém quer e que se tornam até incómodos.

O amor (seja em que forma for) não é uma concessão, não é um prémio que se atribui mediante atributos ou provas de esforço, até aí todos sabemos – por muito difícil que seja a sua definição, a natureza ambígua dos afectos será consensual.

Quem gosta do outro só o quer ver bem. Quem gosta do outro quer e precisa de retribuição. Somos animais sociais e carecemos de validação, dependemos do suporte emocional de uma rede de proximidade. A expectativa depositada nessa retribuição não é cobrança, é perfeitamente legítima e contradiz o desapego, reforça os laços que permitem o crescimento e aprofundamento das relações humanas. Quem gosta quer ser gostado de volta.

Não se agradece a amizade ou o afecto. Não se compra, nem com géneros nem com gestos magnânimes. Merece-se. Conquista-se. Respeita-se. Retribui-se a seu tempo, quando a ocasião se proporcionar, se houver vontade e reciprocidade. Ninguém quer beijos falsos. Ninguém gosta de abraços forçados. Ninguém precisa de poemas e odes que não sejam verdadeiros. Basta aceitar e acender um sorriso.

(Crónica publicada no Repórter Sombra)

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A propósito de uma reflexão acerca das manifestações em França e na Bélgica dos “coletes amarelos” (gilets jaunes), despoletadas por uma crítica massiva ao aumento dos preços dos combustíveis e que fizeram o governo francês recuar na medida que havia proposto, poderia falar do poder da união e da mobilização, um dos temas que na vida particular trago sempre próximos e a postos para desembainhar. Poderia ainda apontar o dedo, em termos demasiado latos, vagos e generalistas, ao analfabetismo político que reina, elege e glorifica líderes, ao mesmo tempo que vai dando continuidade ao descalabro ambiental e social do planeta. Mas mais profundo e gravoso do que o desconhecimento histórico (que é um privilégio mais do que uma obrigação), ou que um pequeno ou nulo repertório de literatura política é o estado generalizado de acrisia, da ausência de pensamento crítico sobre o mundo que nos rodeia e que integramos. Portanto, em vez de optar pelo discurso fácil e permeável a demagogias, prefiro fazer o papel de advogada do Diabo e falar do lado obscuro da coesão consensual em torno de uma causa comum, com dois exemplos muito concretos e próximos da actualidade portuguesa e causas que me são particularmente caras.

A mobilização das massas faz-se facilmente com fórmulas populistas, pouco rebuscadas, de consumo rápido e sem exigências de palatos refinados ou técnicas de mastigação dos factos. Além das já célebres 'fake news' em que meio mundo embarca sem questionar fontes ou validar a veracidade das informações, a outra receita simples e de resultados quase infalíveis é a angariação de apoios em torno de uma causa comum, exacerbada e embandeirada na linha da frente de movimentos políticos, sejam partidarizados ou inorgânicos. Em qualquer dos casos, os aparentes “consensos inquestionáveis” podem ter agendas escondidas à partida, ou podem ser cooptados por grupos com intenções questionáveis.

Vejamos o exemplo das touradas. Recentemente, pouco antes da votação do Orçamento de Estado para 2019, vimos o tema da redução da taxa de IVA para espectáculos culturais (o que inclui espetáculos de canto, dança, música, teatro, cinema, circo e também "espectáculos tauromáquicos") ser deturpado e reduzido a uma bifurcação simplista (a tal “tinderização”) entre ser-se contra ou a favor das touradas. A ministra da cultura afirmou, e bem, que a questão das touradas é uma questão civilizacional. Daqui gerou-se uma onda de "apoio à ministra da cultura" nas redes sociais. Atentemos: não se tratou de uma onda de apoio à manutenção do valor máximo do IVA para "espectáculos tauromáquicos", não se tratou de uma exigência generalizada da diminuição da taxa de IVA para todos os espectáculos e bens de índole cultural, nem tão pouco se ousou exigir a abolição da tauromaquia; o movimento gerado foi de “apoio à ministra” do Partido Socialista. A mesma ministra que defende um orçamento paupérrimo (inferior a 1%) para a cultura. Este apoio é, no mínimo, estranho, porque a cultura é também, incontestavelmente, uma questão civilizacional.

Um povo inculto, árido de lazer e de conhecimento, é um povo embrutecido, mera engrenagem das máquinas de produção de riqueza para outrem. A cultura deve sim, ser acessível a todos, estimulada, disseminada e exultada! O problema das touradas não é a taxa de IVA que se aplica na venda de bilhetes para esse "espectáculo" bárbaro e asqueroso; o problema das touradas é existirem e serem consideradas espectáculo ou património cultural. O problema imediato e flagrante é, de facto, uma questão civilizacional e ética. O problema secundário das touradas é serem parcialmente subsidiadas pelo Estado, serem divulgadas em canais públicos de televisão, ou serem um sumidouro de fundos dos orçamentos do poder local. O sofrimento de animais numa arena para gáudio e diversão de mentes rudimentares e violentas é perfeitamente alheio à taxa de IVA que lhes é cobrada, até porque é uma classe economicamente privilegiada a que se predispõe a assistir a esses eventos de sangue e uma espécie de supremacia de fulanos de collants em cores berrantes e casacos de brilhantes sobre animais torturados. Nada menos do que a abolição de todos os eventos tauromáquicos é aceitável sob o ponto de vista civilizacional. E quem olha para este aspecto só poderia congratular os votos dos deputados que viabilizaram a redução do IVA nos espectáculos culturais, não estivesse distraído e esquecido de pensar um pouco antes de embarcar na capitalização governamental do seu oposto.

A "causa animal" é um filão excepcional para manipular as opiniões das massas e colher o seu apoio (moral e material). Neoliberais, sociais democratas, comunistas e apolíticos conseguem facilmente entrar em acordo na causa comum da defesa do bem-estar animal, contra os maus-tratos e o abandono de animais de estimação. Ainda bem que assim é, de facto, pois só criaturas desprovidas de empatia e humanidade podem conseguir direccionar a sua maldade para quem não se pode defender, sejam humanos ou outros animais.

O potencial mobilizador da causa é de tal ordem que o PAN, um pequeno partido político, relativamente recente, conseguiu ser catapultado para a representação parlamentar, feito que outros partidos mais antigos e com uma base eleitoral bastante sólida parecem longe de alcançar, como o PCTP-MRPP, o MPT, o PPM, etc. O partido de André Silva conseguiu eleger o próprio enquanto deputado precisamente embandeirando a “causa animal” como prioritária, esquivando-se a uma definição política mais concreta em relação às tradicionais questões fracturantes entre quadrantes políticos. O PAN define-se como “nem de esquerda nem de direita”, o que toda a gente com dois dedos de testa sabe significar uma posição à direita (se dúvidas houvesse, bastaria observar o sentido de voto de orçamentos e propostas de lei várias). Mas nem é isso que coloco em causa. O que me cumpre dizer e alertar é que qualquer suposta ‘neutralidade’ deve ser sempre questionada. Os eleitores do PAN são pessoas de esquerda, de direita ou apolíticos, cansados do sistema e da desgovernação do centrão, ou são habituais abstencionistas que (pensam que) fogem da política, e que gostam de animais. Ali encontraram a identificação com algo em que acreditam e isso bastou-lhes para associarem o partido à diferença por que anseiam e para lhes conquistar a confiança, apesar da própria noção de neutralidade política ser absurda.

Quem também já percebeu há muito o potencial do cavalo de Tróia da defesa dos animais (em particular, os domésticos) parecem ter sido grupos com ligações conhecidas a membros de grupos nacionalistas e neo-nazis. A mera suspeita destas ligações perigosas torna evidente até que ponto os defensores das causas estão dispostos a fechar os olhos a comportamentos duvidosos e incoerências como hipotéticas utilizações indevidas de fundos doados, por exemplo. Estes apoiantes acérrimos, quase fanáticos militantes (alguns não se inibem de fazer ameaças explícitas à integridade física de pessoas que apresentam indícios suspeitos ou opiniões que lhes são contrárias), podem efectivamente estar a defender grupos fascistas, nacionalistas, racistas e xenófobos. Mas isso não significa necessariamente que sejam fascistas, nacionalistas, racistas e xenófobos. São só uma massa popular que se deixa manusear e empodera os alegados benfeitores dos animais, ainda que isso possa implicar apoiar o populismo ou o fascismo.

A luta pela defesa e pelos direitos dos animais é muitíssimo válida e meritória, mas não nos podemos deixar iludir pela nobreza da causa quando esta é usada para escamotear agendas políticas potencialmente perigosas. Não pode valer tudo para fortalecer um único propósito. Não basta a bandeira da causa comum para justificar tudo o resto. O argumento do desinteresse pela actividade política não isenta o cariz político das acções individuais e colectivas. Um voto é um acto político, um donativo a uma associação é também um acto político, os apoios materiais e morais a algumas organizações e não a outras são acções políticas. E sim, a tomada de posições políticas requer análise crítica ou carrega consigo uma irresponsabilidade com consequências potencialmente devastadoras.

Encontrada que seja uma causa comum que sirva de mote, de preferência com forte carga emocional, de forma a possibilitar uma mobilização acrítica, capaz de reunir simpatia e apoios concretos, com poder de gerar choque mediático, basta agitar as massas com alguns slogans e aguardar para capitalizar este poder. Na eleição de Trump, o mote foi o nacionalismo concentrado na imigração e a construção de um muro na fronteira dos EUA com o México. A eleição vincadamente anti-petista de Bolsonaro fundamentou-se no ataque à corrupção (com um empurrãozinho de vitimização pessoal para justificar a absurda ausência de debate). E o mundo vai mudando, vai cedendo, vai-se tornando mais violento, inseguro e injusto.

Assim se faz política no século XXI. A informação é uma arma e está ao nosso alcance fazer uso dela. Que tal começar hoje?

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Há mais de duas décadas a escrever insistentemente sobre o amor, colecciono mais questões do que certezas, mas em ocasiões fortuitas surge-me uma ou outra epifania. A mais recente foi esta: o amor nasce da liberdade. Nasce da aceitação e admiração de outra pessoa, na ousadia máxima de ser exactamente quem se é. O amor não tolhe vontades ou desejos, aceita-os e dá-lhes alento. O amor não obedece a fórmulas ou a listas de requisitos, acontece por alguma espécie de cocktail misterioso de hormonas, neurotransmissores, instintos e uma insubstituível pitada de alguma coisa indefinida a que podemos chamar, a bem do romantismo, magia. O amor faz-se, cresce e cimenta-se na verdade, na nudez de ver o outro sem máscaras, sem subterfúgios ou dissimulações, no seu todo. Isto inclui os maus-humores, as doenças, fragilidades, crises existenciais, surtos de raivas e erros, palavras mal ditas, insensibilidades e arranhões no ego. Abarca a discórdia, a diferença, a oposição, o “lado lunar” de outra pessoa, ser-se por vezes ferido pela outra pessoa, e ainda assim não saber como impedir ou controlar avalanches de ternura na sua direcção, a vontade incontrolável de proteger com a própria pele a pele de outro para que nada lhe doa.

Amar pode nunca ser muito fácil, mas parece ser mais fácil (ou comum, vá) amar o semelhante, aquele com quem se partilham gostos, opiniões e formas de estar. É mais fácil se concordar for algo natural, se o destino desejado for o mesmo. É um conforto apaziguador não nos sentirmos sós no mundo, aves raras e enjeitadas, quando encontramos uma “alma gémea”, que nos compreende e comunga de prismas idênticos, com quem se comunica com fluidez, em sintonia.

Apaixonamo-nos por duas coisas: ou pelo que se vê no outro, do outro e de cada um de nós com o outro, ou pelo que o outro consegue ver em cada um de nós. Acrescento, se o que nos atrai noutra pessoa é só a forma como nos vê, o espelho aumentado que faz festas no ego, isso é apenas vaidade e não amor. Facilmente se poderia extrapolar daqui para verdades de bolso como "todo o amor é egoísta" ou "ninguém ama senão a si próprio". Esse amor do semelhante não será realmente uma espécie de amor virado para dentro, de gostar do que se vê reflectido do próprio em outra pessoa? Amar alguém igual a nós, em quem nos revemos, é aconchegante. Há o sentimento de identificação, de partilha, de comunhão, de aceitação. Há entendimento. Não há discrepâncias, não há extremos opostos, não há antagonismos.

Pelo lado reverso, as expectativas de nos vermos sempre espelhados na outra pessoa, quando saem goradas (porque ninguém é sempre e exactamente igual a ninguém), são usualmente fontes de atrito e de cisão.

É injusto corroer um amor pelas diferenças, pois são precisamente estas que completam o que falta a cada um, que trazem equilíbrio às dinâmicas, que apaziguam tumultas interiores. É claro que todos erramos, é claro que todos arranjamos maneira de perdoar as maiores cretinices, é claro que a perfeição é um mito e é óbvio que a gestão das relações pessoais é sempre complexa, complexos que são os sentimentos dos seres humanos. Naturalmente, há divergências intransponíveis e que tornam o amor impossível, mas essas são as que se dão a nível de valores, de carácter, de pilares fundamentais. Perdi a conta às relações que vi terminarem ou nem chegarem a começar por conta de diferenças superficiais, de um ser a noite e outro o dia, como se não fossem ambos essenciais e complementares, como se pudessem de algum modo existir sem o seu oposto.

Amar em tensão entre visões, idealizações e caminhos opostos sem a pretensão de alterar o ponto de vista do outro, sem aquilo a que Saramago chamava colonizar a vontade do outro, será a teimosia de fazer frente aos opostos que se anunciam como amores impossíveis, ou será um amor mais puro, mais indefinível, mais maduro, isento de razões com laivos onanistas e imbuído de uma aceitação e admiração que transcendem em muito o comodismo da partilha fácil?

Se não se admira a outra pessoa no próprio avesso e no contraste, se não é um espanto maravilhado com a lucidez ou poesia ou mundividência das coisas que pensa e diz ainda que nos choque, ou precisamente porque nos dá a conhecer o inverso do que é a nossa norma, se não se rebenta de orgulho desmedido no que a outra pessoa é, se não se lhe acha qualidades únicas em tanto do que faz, gosta-se do quê afinal? Da ausência de risco, de atritos e desafios? Da serenidade das conversas sempre concordantes? Da estagnação de sempre seguir o caminho mais batido? Da conformidade com os limites conhecidos, sem ímpeto para avançar, crescer e ousar mais além?

Amar a diferença é um desafio íntimo e talvez uma forma purificada e autêntica de amar. O mais verdadeiro amor. Dizer ao outro “amo-te, apesar das nossas diferenças” é amar condicionalmente, com constrangimentos e fragilidades. É uma constatação de que as diferenças são um factor negativo e que desgasta o afecto, uma espécie de aviso, como se uma agudização das divergências colocasse o amor em risco. É tolerar a oposição que o outro constitui. Dizer a quem está nos antípodas de quem somos “amo-te, exactamente como és” é amor incondicional. O amor nasce da liberdade porque o amor é, só pode ser a liberdade extrema de não necessitar de escudos protectores, regras ou limites. Tão simples. Tão complexo. Tão perfeito.

A minha mais recente crónica publicada ontem no Repórter Sombra.

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Estamos na era da informação rápida, da Internet, da acessibilidade quase imediata a todos os conteúdos possíveis e imaginários com a facilidade de sacar de um smartphone do bolso e fazer uma pesquisa ou aceder a uma aplicação. A tecnologia permite facilidades e pequenos luxos como ir ao banco às duas da manhã, falar com a família do outro lado do mundo a custo quase zero, encomendar livros, queijo e detergentes enquanto estamos numa viagem de comboio entre casa e o trabalho ou criar afinidades e amizades com pessoas do outro lado do monitor, na rua abaixo ou do outro lado do mundo. Contudo, com o poder de alcance quase ilimitado da Internet e o imediatismo e potencial de dispersão das tecnologias, chegou também uma vasta panóplia de fenómenos perturbadores, para usar um eufemismo.

 

O potencial de dispersão de conteúdos digitais passíveis de ganhar destaque de forma exponencial (ou “viralizar”) é notável, nomeadamente através das redes sociais. A facilidade de expressão e de acesso veio democratizar o espaço anteriormente reservado apenas para uma elite privilegiada e poderosa e isso é extraordinário e uma das maiores virtudes destas novas formas de comunicação. A visibilidade possibilitada a todas as opiniões, teorias, correntes e contra-culturas marginais pode ser bastante positiva, uma vez que a verdade é que escasseiam os meios de comunicação idóneos, fiáveis, sérios, abrangentes e, convenhamos, que não estejam a soldo de uma agenda política neoliberal, centralista e que serve os propósitos dos poderes instaurados. É preciso procurar, muitas vezes em nichos específicos, sem expressão popular ou comercial de monta, mas as alternativas existem. Isto é válido tanto para informação noticiosa quanto para grupos de interesses específicos que jamais chegariam ao mainstream (do ambientalismo anticapitalista a talentos literários sem meios de autopromoção).

 

Contudo, com este recém-descoberto poder de influência ao alcance do comum mortal e, sobretudo, a que o comum mortal se torna susceptível, surge também a possibilidade de disseminação de conteúdos que representam perigos sérios, por propagarem falsidades com impacto social e político, teorias sem credibilidade científica ou apenas enormes embustes, alimentados pela ignorância e pelo ódio. Sem o efeito de megafone universal da Internet, teriam os anti-vaxxers ganho expressão suficiente para colocarem riscos sérios à saúde pública, com o despertar epidémico de doenças que estavam quase totalmente erradicadas há umas décadas? E os crentes na “terra plana” e as pseudociências (homeopatias, medicinas quânticas e afins) e os negacionistas das alterações climáticas e os criacionistas que querem a religião equiparada à ciência nas salas de aulas? O crescimento de movimentos de extrema-direita, um pouco por todo o mundo, teria dimensão suficiente para eleger democraticamente quem quer acabar com a democracia?

 

Desde os inócuos apócrifos de autores sobejamente conhecidos, às abjectas "fake news" criadas intencionalmente para deturpar a opinião pública num sentido que está longe da inocência, ou desde a idolatria de famosos que tantas vezes o são sem talento outro do que o de angariar seguidores, visualizações, likes e afins à elevação de analfabetos funcionais aos cargos mais poderosos do mundo, o fenómeno está disseminado. E o perigo, esse é assustadoramente real, actual e alastra como fogo, enquanto os mais informados e razoáveis se mantêm a observar passivamente, boquiabertos de incredulidade de como podemos ter chegado ao expoente máximo da acrisia generalizada. Encolhendo os ombros porque não há argumentos para contrapôr pensamentos sem qualquer substrato, alucinações baseadas em coisa nenhuma. Virando costas porque a discussão se torna tão imbecil que “não vale a pena” perder tempo.


A popularidade exponenciada pela tecnologia dos
social media cria heróis e vilões, constrói presidentes e culpados universais, uns na antítese dos outros, em extremos opostos, e na ânsia da simplificação, da análise imediata para consumo rápido, reduz os factos (reais ou “alternativos”) a memes, a hashtags e chavões. Como se só existissem duas opções, como se só as oposições absolutas tivessem lugar neste modo de raciocínio simplório, como se tudo fosse redutível ao preto e ao branco, sem matizes de complexidade ou profundidade. A esta bipolarização simplista e inconsequente só me ocorre comparar o Tinder: análise à queima-roupa, às aparências, ao que é visível à superfície, ou melhor, ao que nos querem mostrar, e daí segue o veredicto: sim ou não, swipe à esquerda ou à direita, serve ou não serve. Olhemos em redor e vejamos se não é esta tinderização de tudo que alimenta celeumas, escândalos, polémicas, opiniões populares e ódios. Em toda e qualquer clivagem ou onda de indignação da opinião pública a regra parece ser a escolha binária, contra ou a favor, embate de opostos. Noite ou dia, vai ou racha, ganhar ou ficar em último, santo ou criminoso, republicanos ou democratas, Brexit sim ou não, Haddad e PT ou qualquer coisa que seja anti-PT, ainda que seja o fascismo. Vale tudo até e além da mentira descabida para criar um falso sentido de escolha única e o caminho mais fácil e eficaz é a diabolização dos opositores, é a força do medo e do ódio, é o incitamento à eliminação dos que não são semelhantes ou ameaçam os privilégios próprios. Não falo contra a radicalização de posições, que a aversão aos extremos, tão válidos como qualquer posição intermédia, é frequentemente ignorância ou medo. Falo de assumir a complexidade dos temas, de debater com sensatez e sem negar e respeitar a existência de todos os naipes de opções, matizes e posições ambíguas, de conhecer a verdade, que é material e objectiva, e pensar sobre ela antes de tomar posição.

 

A validação da idoneidade dos veículos de informação tornou-se acessória. Se há umas décadas a falácia consistia em alguma coisa aparecer escrita num jornal ou divulgada na rádio para se tornar verdade perante o escrutínio do grande público, hoje em dia esse lugar parece ter sido substituído pela internet. É imperativo aguçar o espírito crítico para a validação de tudo o que se vê publicado e é necessário educar para a verdade, para questionar as fontes, para unir os pontos, para apurar os factos antes de cuspir veredictos inflamados pela indignação. É preciso aprender a ver, mais do que a olhar; a não julgar os livros pelas capas; a não aceitar ou rejeitar tacitamente pelo que é aparente e superficial. É preciso conhecer por dentro as coisas e pessoas antes do fanatismo e da rejeição, é preciso explicar, debater, argumentar, interrogar. É preciso ousar sair da caverna de onde só se conhecem sombras e enfrentar a luz, perder o medo que nos empurra e se nenhum dos caminhos que vemos nos servir, encher o peito de fôlego fresco e trilhar um caminho novo.

 

A cultura do estupro não é apenas um conceito abstracto usado no discurso feminista; pelo contrário, é uma das mais violentas e conspícuas manifestações do patriarcado vigente e, ao que tudo indica, é a norma que prevalece na sociedade portuguesa, que oportunamente, se vê a braços com um momento de depuração mais do que de clivagem.


Provocando, apesar de tudo, choque e indignação suficientes para que se tenham organizado manifestações de repúdio em vários pontos do país, o Tribunal da Relação do Porto continua a liderar, de alguma forma, uma espécie de vanguarda do serviço público reverso. O ano passado, o juíz Neto de Moura permitiu-se redigir um acórdão indigno e asqueroso, que trouxe inspiração bíblica para a justiça do século XXI, apontando o adultério como atenuante para a extrema violência de que foi alvo uma mulher a quem o ex-companheiro e o ex-amante decidiram raptar e agredir com uma moca com pregos, quais Neanderthais, bem como condenando moralmente a vítima pela humilhação do marido traído. Cito: “Ora, o adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem. Sociedades existem em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte. Na Bíblia, podemos ler que a mulher adúltera deve ser punida com a morte. Ainda não foi há muito tempo que a lei penal [de 1886] punia com uma pena pouco mais que simbólica o homem que, achando a sua mulher em adultério, nesse ato a matasse.


Ainda se aguarda o resultado do processo disciplinar instaurado aos dois signatários daquele acórdão e já este ano nova decisão do Tribunal da Relação do Porto mostra inequivocamente de que lado está a justiça burguesa em casos de estupro. Uma jovem foi violada por dois homens na casa-de-banho de um bar em Gaia enquanto estava inconsciente, mas os Tribunais decidiram que, não só não se teria tratado de violação (!), apesar de ter sido provado a existência de relações sexuais com penetração e ejaculação por parte de pelo menos um dos agressores, como ainda que os agressores não representam perigo para a sociedade e devem, portanto, cumprir apenas pena suspensa. Neste caso juntam-se agravantes como o presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP) ser co-signatário do acórdão que alega "um ambiente de sedução mútua" como atenuante para a ocorrência do crime, considerando que "a culpa dos arguidos se situa na mediania" e a "ilicitude é baixa".

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Na semana seguinte, vem a público uma investigação do Der Spiegel acerca do caso em que o craque futebolista Cristiano Ronaldo é acusado por uma mulher de a ter violado analmente. A mulher, uma professora chamada Kathryn Mayorga, fez queixa às autoridades no dia seguinte, foram documentadas lacerações e hematomas no seu corpo e foi posteriormente assinado um acordo de confidencialidade, em que recebeu uma verba para não revelar a identidade de Ronaldo. Curiosamente, daquelas coincidências que acontecem tantas vezes quando pessoas com muito dinheiro estão envolvidas, parece que a roupa que Kathryn usava aquando da ocorrência e que fora entregue à polícia como prova, bem como o seu depoimento original, desapareceram


A presunção de inocência é, obviamente, devida, e é aos tribunais que cumpre julgar as acusações, por muito pouca fé que depositemos na justiça. Mas aquilo a que se assiste em quase toda a sociedade está no extremo oposto, que é, além da defesa acérrima da suposta inocência do herói nacional, a culpabilização da alegada vítima, o desdém pelos eventuais danos sofridos e uma espécie de contra-ataque, apontando o dedo a um suposto oportunismo por ter sido aceite uma verba mediante um acordo.


Cultura do estupro é precisamente esta tradução da misoginia por entre homens e mulheres na sociedade civil e pelos órgãos soberanos; os casos supra-citados são apenas três exemplos evidentes e bem conhecidos por todos daquilo que se passa, em menor (menos mediática) escala, todos os dias, nas ruas, nas escolas, nas empresas, nos tribunais, nas nossas casas.


Cultura do estupro é assumir que é expectável que uma mulher que saia para se divertir e dançar numa discoteca seja um alvo fácil para violadores. É assumir que os violadores são apenas homens decentes, “bem integrados na sociedade e na vida familiar” que agiram comandados por impulsos sexuais. É assumir que os criminosos não têm de ter discernimento para controlar a sua conduta, mas que são as potenciais vítimas que devem comportar-se de forma a evitar suscitar os impulsos dos violadores. É assumir que o consumo de bebidas alcoólicas serve para atenuar o comportamento dos violadores ao mesmo tempo que serve para culpabilizar a vítima. É assumir que é natural que uma mulher desmaiada na casa-de-banho seja vista, não enquanto pessoa que necessita de cuidados médicos que salvaguardem a sua integridade física, mas como um corpo à disposição para o usufruto de quem quiser. É considerar natural que os homens que conversaram com esta mulher e lhe pagaram bebidas se sintam no direito de fazer do corpo inerte dela o seu recreio, que se pode bater com violência suficiente para causar hematomas vários, que se pode apalpar, que se pode penetrar com preservativo, que se pode penetrar sem preservativo, em que se pode ejacular. É dar estes factos como provados em tribunal e afirmar-se, ao contrário do descrito na lei (que foi alterada em 2015), que não houve violação, mas antes “abuso sexual de pessoa incapaz de resistência". É a sentença ser fruto de todos os possíveis atenuantes para os criminosos e de rigorosamente nenhum agravante a pesar na decisão (nem o facto de os violadores serem funcionários no local do crime, nem a coordenação entre eles, nem a ausência de arrependimento). É tornar quase irrelevante um crime que tem repercussões traumáticas e potencialmente insuperáveis para a vítima. É saber que enquanto um dos funcionários da discoteca em questão "se servia" do corpo de uma mulher indefesa o outro estava ausente e, em coordenação com o primeiro, a esperar a sua vez para também usufruir do mesmo "direito" e ainda assim decidir que o crime foi fortuito e sem premeditação. É desconsiderar a violência do não socorro a uma pessoa desmaiada, a violência que provocou múltiplos hematomas, a violência da inexistência de consentimento, a violência da exposição a uma gravidez indesejada e fruto de estupro, a violência da exposição a inúmeras doenças sexualmente transmissíveis, a violência do trauma potencialmente permanente e devastador imposto à vítima. É a permissividade da pena suspensa para que estes criminosos, considerados culpados, permaneçam em liberdade e possam reincidir neste crime, que não foi considerado grave o suficiente para que os seus autores estejam a cumprir pena efectiva. É com este exemplo apaziguar todos os violadores que permanecem em liberdade, e incentivar outros potenciais violadores, desprezando o impacto dos seus crimes. É normalizar, não punindo com prisão efectiva, dois homens que tiveram relações sexuais não consentidas com uma mulher desmaiada na casa-de-banho do local de trabalho dos violadores. É culpabilizar a vítima, atribuindo a uma suposta “sedução mútua” a ideia de que a expressa vontade da mulher não tem importância, tão pouco a sua consciência aquando dos actos sexuais. Esta projecção da ideia de mulher como um objecto a serviço dos impulsos e desejos masculinos está presente, transversalmente, em toda a sociedade. Da mesma forma, o desejo e prazer sexual das mulheres é algo secundário, como confirma um outro acórdão da justica patriarcal: "aos 50 anos, a actividade sexual não tem a importância que assume em idades mais jovens" e "à medida que a idade avança, a importância do sexo vai diminuindo". Cultura do estupro é também naturalizar o medo incutido desde que somos meninas de andar sozinhas à noite, de expôr o corpo com roupas curtas, decotadas ou justas, de irmos onde quisermos, quando quisermos e com quem quisermos porque assumimos que somos presas que têm de se acautelar contra os predadores. Cultura do estupro é ver a esmagadora maioria da sociedade portuguesa (nomeadamente as "feministas" liberais brancas e burguesas, o Presidente da República e o Primeiro-ministro) a sair em defesa do seu herói nacional, homem cis, branco, poderoso e milionário, quando ninguém sabe ao certo o que se terá passado naquele quarto de hotel em Las Vegas e é ver essa mesma maioria sem qualquer pudor de fazer um linchamento público sobre a alegada vítima, acusando-a de oportunismo.


Neste país em que o número de mulheres assassinadas em contextos de violência doméstica, às mãos de companheiros e ex-companheiros, aumenta ao invés de diminuir, em que a violação é o único crime violento que regista aumento, em que a esposa espancada após uma derrota do clube de futebol do marido faz parte do anedotário nacional, em que a discrepância salarial representa, em média, 58 dias de trabalho sem salário para as mulheres, em que a discriminação de género continua a não ser levada a sério sequer pela franja política que se diz dedicar a lutar pela igualdade,
vigora a cultura do estupro sim. Vigora um paternalismo medieval que reproduz e reforça o desequilíbrio de poderes entre géneros. Vigora a forma refinada de capitalismo em que os pobres, oprimidos e silenciados favorecem o patrão e sobrepõem o poder do dinheiro a qualquer valor ou integridade. Vigora a moral acusatória do dedo apontado, sem hesitação, à vítima, porque vestida daquele jeito, a beber daquele jeito, a dançar daquele jeito, a sair sozinha à noite, a ousar querer ser uma pessoa de plenos direitos, “estava a pedi-las”.


Não pode ser aceitável, não pode ser nada menos do que gritantemente chocante, que com a maior naturalidade se atire a palavra "puta" como uma condenação a uma vítima de violação ou violência sexual. Ela é uma puta porque foi dançar, é uma puta porque bebeu, é uma puta porque usa mini-saia, é uma puta porque traiu o marido ou namorado. É uma puta, logo, estava a pedi-las. Pôs-se a jeito. Mas um homem que faça exactamente o mesmo é só um homem a ser homem. Ele, o que a perseguiu, o que a intimidou, o que a tentou comprar, o que a silenciou, o que a descredibilizou, o que lhe bateu, o que a espancou com uma moca com pregos, o que a regou com gasolina e lhe pegou fogo, esse é só, na pior das hipóteses, um filho da puta. E é, demasiadas vezes, só um homem a ser homem, a fazer o que se espera dele.


Os responsáveis somos todos nós, que permitimos que a misoginia esteja tão imbuída e normalizada. Estamos, colectivamente, a promover a cultura do estupro e somos muito culpados. De cada vez que juízes machistas deixam violadores em pena suspensa, estão a dar o seu aval para que estes continuem a violar impunemente e a transmitir a outros potenciais violadores que violar não é um crime assim tão grave, que se tiverem emprego e família mas beberem uns copos estão perdoados. De cada vez que se culpa e enxovalha uma vítima de violação, com mais ou menos eufemismos para dizer que "estava a pedi-las", diz-se a milhares de outras vítimas que o melhor para elas é não denunciar, sofrer em silêncio, sozinhas, e que foram alvo de um crime hediondo porque, no fundo, mereceram. De cada vez que corre uma corrente virtual para "as mulheres demonstrarem o seu apoio a Cristiano Ronaldo" está a dizer-se que os homens brancos, famosos, ricos e com bom ar serão sempre inocentes ou perdoados e que valem mais do que qualquer mulher. De cada vez que se chama puta a uma mulher que vai dançar ou que usa um vestido curto está a dizer-se que o corpo da mulher é pecaminoso e deve ser coberto, porque o desejo sexual dos homens é perigoso, incontrolável, e não deve ser atiçado, porque não são os homens que devem controlar os seus impulsos, são as putas das mulheres que não devem tentá-los. De cada vez que se chama oportunista a quem tem a coragem de enfrentar o mundo para denunciar uma ofensa sexual por parte de um homem poderoso está a dizer-se que o dinheiro vale mais do que a integridade física e emocional. De cada vez que um homem diz "ela disse que não mas não se mostrou indisponível" está a dizer que se acha no direito de abusar sexualmente de quem quiser e que a responsabilidade de o evitar é da vítima, ainda que, como quase sempre, do lado mais fraco da relação de poder ou da força física. De cada vez que alguém faz uma piada (de péssimo gosto) a dizer que por trezentos mil euros não se importava de ser violado(a) está a ser ignorante e cruel e a dizer que o dinheiro isenta qualquer crime. Tudo isto é reforçar a opressão, a misoginia e o machismo. Tudo isto são golpes duros na luta pela igualdade.

 

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Quando digo que o momento é mais de depuração do que de clivagem, o que significa é que assumo a derrota. Significa que quando vejo tantas pessoas que em outras situações lutam pela igualdade entre todas as pessoas, e que até se afirmam como aliados do feminismo a vociferar autênticas barbaridades, na senda do "até pode ter sido violada, mas (...)", não estamos a conseguir passar claramente a mensagem. E a mensagem é que NÃO É SEMPRE NÃO. Sexo sem consentimento é crime. É violação, ponto final. Significa que o que é óbvio, que estes discursos reflectem a cultura do estupro e a reforçam, não é reconhecido. Significa que muitos dos supostos aliados na causa da igualdade são também parte do problema.


Num país (e num mundo) em que é aceitável pensar que o dinheiro compra tudo, até a compensação por uma violação, o feminismo interseccional tem de ser objectivamente repensado, à luz da luta de classes e vice-versa, assumindo uma derrota estrondosa que force a uma estratégia concertada, ou pelo menos a uma estratégia diferente. O que temos nós, feministas, de fazer para evidenciar e derrubar a misoginia crescente patrocinada pela impunidade legal (talvez o mais forte reduto patriarcal), pela opinião pública, pela inacção política? Como podemos converter agentes perpetuadores da opressão machista, sobretudo nestes tempos perigosíssimos de crescimento e disseminação da extrema direita no mundo? Quem tem a coragem política de pegar nestes temas e os incluir activamente como prioridades nos seus programas de governo, com propostas legislativas e com acções? Quem tem a audácia de convocar uma Greve Geral de Mulheres? Quantas mais de nós, mulheres, terão de ser assassinadas, violadas, espancadas, culpadas e enxovalhadas perante a santa inquisição da moral podre burguesa para se perceber que estamos perante um problema inadiável de direitos humanos?

 

Portugal é um país racista.

Incrivelmente, esta verdade é rejeitada por muita gente que provavelmente perpetua a discriminação racial, intencionalmente ou não.

O racismo está presente transversalmente, em todas as áreas da sociedade: na representatividade política, na acção policial, na comunicação social, no acesso à habitação, à saúde e à educação, nas escolas, nos tribunais, na disputa do espaço público, no acesso ao emprego, na cultura, nas conversas de café e no seio da esmagadora maioria das famílias.

Os exemplos são, tristemente, abundantes e mesmo desnecessários para qualquer pessoa que esteja atenta ao mundo em que vive. Como aparentemente há muita gente desatenta, façamos então um brevíssimo resumo.

O período colonial é retratado nos livros escolares e nas obras de historiadores com um distanciamento aflitivo do que foi a realidade, em que Portugal é apontado como um “bom colonizador” (conceito incompreensível) e em que todas as vítimas dos mais atrozes crimes (assassinatos, estupros, tortura e violência sob todas as formas) são, pura e simplesmente, omitidas.

O direito à cidadania para quem nasce em Portugal ainda não está assegurado, graças a uma Assembleia da República que reproduz as opressões, mesmo nas bancadas que dizem defender a igualdade e os direitos das minorias. Já o presidente Marcelo Rebelo de Sousa, que falou na sua campanha do direito à nacionalidade, manteve-se estranhamente calado sobre o tema quando este chegou à votação na A.R.

Os casos de brutalidade policial serão bem mais do que os que vêm a público (o caso da esquadra de Alfragide será o mais mediático) e é fácil perceber que as vítimas do comportamento abusivo e injustificado por parte dos senhores “agentes da autoridade” que defendem um Estado burguês e racista são, maioritariamente, não-brancos.

No passado dia 15 deu-se a Mobilização Nacional Contra o Racismo. Em Lisboa, o evento estava agendado e devidamente autorizado desde há muito, para o Largo de São Domingos, onde foi montado um palco para receber várias intervenções de entre as 60 associações e organizações que colocaram o protesto de pé, música, poesia e outras expressões culturais unidas para dar visibilidade à luta anti-racista e contra a brutalidade policial racista. O primeiro facto digno de nota foi a ausência das televisões, nomeadamente a pública. O dever de informar acerca da actualidade política e social parece ter feito gazeta neste dia. Depois, deu-se um momento, no mínimo, caricato. A organização informou que os espectáculos previstos e agendados teriam de ser interrompidos pelo período aproximado de uma hora, para que o grupo musical Clã, que mais tarde actuaria na varanda do Teatro Nacional D. Maria II no âmbito de um espectáculo promovido pela EGEAC (Empresa de Gestão de Equipamentos e Animação Cultural de Lisboa), mesmo em frente ao palco do Largo de São Domingos, fizesse um sound-check. O ensaio dos Clã foi, naturalmente, recebido com apupos e careceu de uma mensagem (tardia) da vocalista Manuela Azevedo, bem como de um elemento da organização do protesto para apelar à paciência dos participantes. É óbvio que esta situação podia e devia ter sido evitada com algum planeamento e sobretudo, respeito pela luta contra o racismo. Igualmente flagrante foi a desmobilização em alguma medida de quem foi até ao Largo de São Domingos para engrossar a Mobilização Nacional. Não vi referência a este incidente nas publicações que noticiaram a iniciativa, que bem exemplifica que em coisas tão simples como o usufruto do espaço público, dentro dos trâmites legais e burocráticos, seja para algumas franjas da sociedade tão facilmente secundarizado. Fica a dúvida sobre a intencionalidade desta infeliz interrupção.

O facto é que, desde uma pronunciada ausência de pessoas não brancas nas bancadas parlamentares, nos noticiários, na publicidade, até à perseguição de comunidades inteiras por nenhum outro motivo que a sua etnia ou cor da pele, ou à proliferação impune de grupos de extrema-direita, o racismo existe em todo o lado e toda a gente parece conviver bem com ele.

Olhemos em redor nos locais de trabalho das grandes multinacionais, e atentemos depois em qualquer sítio de construção civil.

Quem permite que o racismo subsista na sociedade é seu cúmplice. Sim, eu e cada um dos que me lê também. Por muito que não nos consideremos racistas e sejamos até parte activa da luta anti-racista, quantas vezes não ignoramos uma ou outra piadola sobre “pretos” ou “ciganos” porque achamos que é inócua, que não foi dita com má intenção, porque é mais fácil não dar importância e não entrar em discussões e quezílias? A responsabilidade é de todos: os que atacam, os que perpetuam, os que não educam e os que permitem.

Fingir que Portugal não é um país racista é mais do que tapar o Sol com a peneira, é desvalorizar todas as situações de racismo que presenciamos, é calar as vítimas, é continuar a permitir que seja normal que uma pessoa seja agredida em plena via pública por um segurança ao serviço da STCP e que, mesmo chamando as autoridades policiais, o assunto seja esquecido até a indignação rebentar e escalar nas redes sociais.

O racismo tem de ser erradicado, ponto! Não basta ser criminalizado, se a denúncia é escassa e difícil, se as condenações nos raríssimos casos que chegam aos tribunais não vão além de coimas. O racismo tem de ser punido como o ataque vil aos direitos humanos que é, tem de ser apontado, evidenciado, enxovalhado e derrotado. Nada menos é aceitável.

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A desinformação é uma coisa que me aflige. Aflige-me não se debater os temas importantes, que a informação esteja a ceder espaço ao espectáculo, que o interesse do público seja moldado de acordo com o sensacionalismo barato que se faz valer da velha falácia burguesa de ser "o que o povo quer". O "povo quer" fast food pouco nutritiva porque sabe bem, porque é barata, mas sobretudo porque não tem como aceder ao filet mignon e à santola. O "povo gosta" de música pimba porque as festas da aldeia não têm como pagar o cachet ou presença do Coro Gulbenkian ou da Orquestra Metropolitana de Lisboa e porque nenhum trabalhador que viva do (miserável) salário mínimo pode fazer de ir à ópera ao São Carlos o seu programa de lazer. E não há nada de errado em gostar de música pimba ou telenovelas, cada qual gosta do que gosta. Os gostos discutem-se sim, obviamente, o que é idiota é a sobranceria de julgar que certos gostos traduzem alguma espécie de valor qualitativo das pessoas, quando o acesso à cultura, sobretudo à pretensiosamente erudita, está vedado "ao povo".

O mesmo se passa com a (des)informação. Se os noticiários abrem e dão mais tempo de antena às futeboladas e à polémica do dia em repetição, o consumidor (porque é o que somos todos em capitalismo - não somos cidadãos nem indivíduos, apenas consumidores, importa recordar) só alcança alguns conteúdos se os procurar activamente, se for ao encontro de outras visões que não as amplamente difundidas pelos mass media. E esta procura não é fácil, não está ao alcance de todos, dá trabalho e, como sempre, marginaliza quem não tem “privilégios burgueses” como internet, smartphones e tempo livre para se dedicar quer à procura quer à reflexão.

Temas prementes, de significância local ou globalmente importantes vão sendo relegados para segundo plano em detrimento do espectáculo, da celeuma tantas vezes sem fundamento, dos picos mediáticos estrategicamente seleccionados por quem tem esse poder.

E por favor não nos deixemos cair na ingenuidade de achar, por um momento, que a informação e o entretenimento que consumimos não é manipulador ou não tem uma agenda clara.

"Ai, tu vês política em tudo", dizem-me. Sim, vejo. O motivo é simples: tudo é política! As televisões elegem presidentes (olá Marcelo, olá Trump!), derrubam governos, criam certezas absolutas que não podiam estar mais longe da verdade ("fascismo e comunismo são igualmente maus", "feminismo é o contrário de machismo"). Bebe-se com avidez e replica-se nas conversas de café o que quer que os senhores comentadores debitem, com ou sem propriedade, sobre tudo e sobre nada (creio que em tempos usei aqui a minha expressão favorita para designar este fenómeno: a nunorogeirização da massa acrítica). À falta de oportunidade de reflexão sobre os factos sem artefactos, consome-se uma opinião pré-fabricada, instantânea, pejada de falácias que não convém ao poder instituído serem esclarecidas.

E isto choca-me. E talvez me choque mais que quem possa não ter veículo no mainstream de grande consumo, mas tem oportunidade de ter algum público, algum tempo de antena, o faça em “modo silly season”, em modo light, pronto-a-consumir sem ser necessário um raciocínio crítico. Não falo, naturalmente, de fóruns de entretenimento ou vocacionados para algum tema específico, é óbvio que há espaço para tudo e para todos os gostos. Mas em espaços opinativos, que se pretendem de debate colectivo, de troca de ideias, não compreendo como é que alguém se dá ao luxo de ocupar linhas e linhas, às vezes páginas e páginas, a falar de coisa nenhuma, a abordar temas que são desde logo “não temas”, como relatos na primeira pessoa de eventos particulares sem qualquer tipo de 'mensagem' que faça trabalhar a massa cinzenta. Não há nada de errado em partir de um evento ou episódio pessoal para colocar questões com potencial de relevância ou premência. Só acho um enorme desperdício de potencial interventivo quando esses episódios pessoais são completamente irrelevantes para os leitores/espectadores, só uma pasta insípida para encher chouriços. As publicações em que isto sucede não são caso raro, pelo contrário.

Pergunto: o que fazem os editores se nem conseguem manter uma linha editorial coerente?

Já sei que também só faço perguntas parvas e sem interesse, mas se calhar é essa a linha editorial aqui do blogue.

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Dêem um desconto, a pessoa só dormiu quatro horas e picos e não está em condições.

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Quando era miúda, costumava dizer que não tinha terra. Quando todos os amigos e colegas iam "passar férias à terra", eu sentia que não tinha essa outra terra além daquela em que vivia (e vivo). Tanto pais como avós, todos do mesmo distrito, nunca tive esse património distante das raízes familiares. Sentia-me um bocado triste por não ter as histórias de regressos com conversas à volta do forno a lenha da cozinha, sobretudo triste por não ter as experiências da ruralidade dos animais, apaixonada que sou desde sempre por tudo quanto é bicho, do mato ou doméstico, por qualquer pardal ou lagartixa, burro ou perú, minhoca ou ratazana. Mas ao mesmo tempo sentia-me afortunada por não ter que esperar pelas férias para ter os avós por perto, os meus avós faziam parte da minha vida diária e apesar de disfuncional (não são todas um pouco?), a família não era uma entidade com camadas e fronteiras geográficas, era só aquele núcleo fundamental (porque laços de sangue são uma coisa diferente de família).
O gosto pelas viagens e passeios, muitas vezes sem destino definido, despontou muito cedo. Ansiava por aqueles dias de verão em que partíamos os cinco num automóvel, pelas estradas de Portugal, às vezes Espanha, sem nada marcado, ao sabor da aventura. Chegados a um cruzamento, o meu pai perguntava à minha mãe: "esquerda ou direita?". Que é como quem diz "Norte ou Sul"? Das inúmeras memórias e ensinamentos que o meu pai me deu de herança, essa é uma das melhores. Essa pequena rebeldia de ir para onde quiser ou me apetecer, sem regras ou planos definidos. Nunca sabíamos bem por onde iríamos estar, ou quantos dias íamos ficar. O limite óbvio era o orçamento, que nunca permitiu exuberância de nenhuma espécie. Outra coisa que aprendi com estas viagens foi que nem todas as pessoas gostam ou lidam bem com a ausência de estrutura, horários e planos. O meu avô e a minha mãe, se não estavam sentados para comer "à hora de almoço" ficavam com birra de fome. A minha avó, com muito mais resiliência, também, mas não resmungava, guardava-se para a birra de sono quando de noite ainda não tínhamos alojamento. Muitas, muitas foram as vezes em que almoçámos às quatro da tarde ou à meia noite ainda não fazíamos ideia de qual a residencial de beira de estrada onde podíamos dormir. Assim se faz uma aventureira, com muita descontracção e capacidade de lidar com imprevistos, muito mais fascinada pelos recantos curiosos das aldeias, pelos riachos ou searas, do que interessada nessas coisas mundanas e corriqueiras como comer e dormir.
Foi assim que conheci Portugal de lés a lés e parte de Espanha por dentro, com mil histórias caricatas, incidentes e tropelias para contar. Descobri que a cultura tem diversidades regionais imensas e fascinantes, aprendi que as pessoas não vivem todas com os mesmos confortos ou prioridades, e também aprendi que não importam as diferenças, a língua ou sotaque, a cor, o tamanho ou as roupas que vestem: as pessoas são essencialmente iguais. Nunca mais parei de viajar, tornou-se uma sede incontrolável de aprender, ver e viver na primeira pessoa. Mania burguesa, dirão (não sem razão) os meus camaradas mais puristas. Seguramente que é um privilégio burguês poder viajar para o estrangeiro várias vezes por ano. A seguir ao privilégio é também uma escolha consciente, que implica abdicar de muitas outras coisas que não valorizo tanto. Não planeio abdicar deste privilégio, enquanto o puder manter. Viajar traz-me riquezas que ninguém me pode tirar. Aprendi que um sorriso no olhar é capaz de ultrapassar qualquer barreira linguística e que o mundo, na sua aparente pequenez de distâncias encurtadas e da comunicação imediata, é tão grande quanto estivermos dispostos a ver mais longe.

 

Eu nem ia dizer nada sobre o caso Robles, porque me pareceu à primeira vista uma situação simples de hipocrisia e conflito de interesses, que só surpreenderia os mais distraídos, os que sofrem de ausência de criticismo ou os que acreditam no Pai Natal. Achei que o vereador se encolheria num canto, teria vergonha na cara, pediria a demissão e o BE rapidamente se demarcasse das suas acções diametralmente contrárias ao plano político que o partido diz defender. Afinal não foi assim tão simples, como se pode ver pelas constrangedoras tentativas de defesa do indefensável, metendo os pés pelas mãos e ao largo (muito ao largo) da política. Surpreendi-me eu com a falta de pulso do BE (não com a falta de espinha dorsal de Robles, que já tinha demonstrado enquanto vereador exactamente ao que vinha e de que matéria é feito) e sobretudo com as justificações em jeito de claque que se fizeram sentir por grande parte dos militantes e eleitores do Bloco de Esquerda.

Títulos sensacionalistas à parte, os factos são incontestáveis e o próprio Ricardo Robles não nega: adquiriu um imóvel numa zona onde a forte pressão imobiliária já se fazia sentir na altura (2014), por 347 mil euros, reabilitou (com recurso a um empréstimo bancário no valor de quase 70% dos rendimentos brutos que declara), foi a tribunal por causa da indemnização miserável que ofereceu a um dos inquilinos e colocou o imóvel à venda por um valor muito, muito superior de 5,7 milhões de euros, com o propósito de exploração para alojamento local. O imóvel não foi ainda vendido, mas especulação não é só a concretização de vendas a valor exagerado. É também a pressão sobre o mercado, criando um valor falso de que outros beneficiam. O post do Luís Vicente explica melhor do que eu saberia.

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Não há como dar a volta ao argumento: Robles entrou no negócio que diz querer combater de forma prioritária. A melhor defesa dele é que não fez nada de ilegal e a mana o obrigou? O mesmo Ricardo Robles que tem como primeira mensagem política “mudar a lei, combater a especulação”?! O mesmo Robles que aparece no Rock in Riot (como em todas as outras manifestações com cobertura mediática, aliás) a apregoar a defesa dos moradores lisboetas e contra a especulação imobiliária e a gentrificação?! A sério que isto serve para meio Bloco isentar de responsabilidade política um vereador municipal?! Como a hipocrisia e incoerência não são ilegais, a vergonha na cara também é dispensável?

Coisas engraçadas para reflectir sobre hipocrisia e aproveitamento político:

  • o PSD critica a especulação imobiliária e pede a demissão de Robles (e pelo caminho ironiza, elogiando as suas qualidades empresariais);

  • nazis okupas - o PNR promove o evento “vamos ocupar o prédio do Robles”! E a “esquerda radical”, fica-se? (Na verdade, o PNR também já tinha criticado a agressão ao casal homossexual em coimbra, colocando a perna racista em frente à perna homofóbica, o que não deixa de me preocupar, porque parece que cresceu um neurónio ao José Pinto Coelho.)

  • o principal argumento de defesa do BE e dos bloqueiros acríticos é puro legalismo. “Ele não fez nada de ilegal.” É certo que não. E se fosse Assunção Cristas a fazer exactamente o mesmo, também a defenderiam com o mesmo argumento (apesar de Cristas jamais usar como slogan político “combater a especulação”)? Não há pingo de consciência ideológica ou um pequenino vislumbre de pensamento revolucionário? Sabem o que é que também é legal? A exploração do proletariado, o trabalho precário, os presos políticos da Catalunha, a tourada. Também foi legal a escravatura, o apartheid, a criminalização do aborto. Robles não fez nada de ilegal, mas fez algo de muito criticável, hipócrita e que lesa os interesses daqueles que é pago para defender. 

  • Se todos faríamos o mesmo no lugar de Robles? A maior parte de nós sim, faríamos. Outros de nós não, jamais o faríamos. E importa frisar que a maior parte de nós não acumula o privilégio de poder comprar um imóvel de 347 mil euros numa zona nobre da capital e o privilégio de ser vereador municipal da Educação e Direitos Sociais, eleito por um partido que se diz de esquerda.

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Fico com algumas preocupações políticas à conta de toda esta salganhada. À cabeça, a descredibilização da esquerda; não que alguma vez depositasse grandes créditos no Bloco de Esquerda, mas em alguns militantes que são pessoas de esquerda, de trabalho, honestidade e índole revolucionária. Vê-los a defender publicamente a postura de Robles sem qualquer argumento, mas antes com chavões que colam a crítica da hipocrisia ao “jogo da direita” e ao moralismo e legalismo, o que se traduz numa triste mistura de relações pessoais com estratégia política, vulgo compadrio, faz-me ver os restantes cada vez mais raros, mais isolados e sem capacidade organizativa. Para completar o quadro, falta ver o BE fazer outra purga dos seus elementos arraçados de revolucionários. Preocupa-me também o reducionismo de questões realmente importantes, como a da especulação imobiliária e gentrificação, ou as touradas, ou a eutanásia, a quezílias entre as esquerdas parlamentares, que em vez de darem espaço fiável ao debate sério vão relegando para segundo plano e considerando qualquer argumento como uma mera luta de galos do mesmo lado da arena. É que também aí a esquerda vai cedendo espaço à direita.

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Pouco há a dizer sobre o nacionalismo do "dia da raça", ou seja, a celebração do colonialismo racista e fascista:
1 - Alcindo Monteiro teria hoje 50 anos. Foi brutalmente assassinado num hediondo crime de ódio há 23, devido à cor da sua pele.
2 - Há 40 anos, era assassinado José Jorge Morais e Jorge Falcato ficava paraplégico, numa contra-manifestação anti-fascista, quando a polícia defendia os neo-nazis.
 
 
 
 
 
Safa-se, apenas e só, o Camões.

 

Amor é um Fogo que Arde sem se Ver

Amor é um fogo que arde sem se ver; 
É ferida que dói, e não se sente; 
É um contentamento descontente; 
É dor que desatina sem doer. 

É um não querer mais que bem querer; 
É um andar solitário entre a gente; 
É nunca contentar-se e contente; 
É um cuidar que ganha em se perder; 

É querer estar preso por vontade; 
É servir a quem vence, o vencedor; 
É ter com quem nos mata, lealdade. 

Mas como causar pode seu favor 
Nos corações humanos amizade, 
Se tão contrário a si é o mesmo Amor? 

Luís Vaz de Camões, in "Sonetos" 

Enquanto comunista, esta é mais uma das posições em que não me revejo, de todo, no que já deixou de ser o meu partido. Situações há em que a divergência de posições existe mas os argumentos apresentados até são compreensíveis. Por exemplo, na votação da lei que permitiria às pessoas transsexuais alterarem legalmente a sua identificação no registo civil caso a mesma não tivesse sido vetada pelo Presidente da República dos afectos-quando-convêm (nem outra coisa seria de esperar de um católico da direita empedernida), o PCP absteve-se mas justificou a abstenção com argumentos sólidos. Continuo a não concordar com o sentido da votação, a ter argumentos contrários, mas aceito.

Já a tomada de posição do PCP em relação à eutanásia (ou morte assistida, como pretendem diferenciar) é lamentável, contrária aos pilares ideológicos comunistas, a defesa da liberdade individual e da igualdade de todos, e que por isso engrossa a lista de razões que me têm vindo a afastar do PCP. [Ou como disse há tempos a uns antigos camaradas, o PCP não me representa - eu sou comunista.]

Afirmar que esta legislação "não corresponde a uma necessidade prioritária para a sociedade" é ultrajante. Na verdade, qualquer argumento que se sustente na hierarquia de causas é, no mínimo, arrogante, injusto e a pior desculpa esfarrapada que se pode dar. Nunca durante esta legislatura se viu o PCP reagir da mesma forma em relação a tantas outras votações - porquê agora? Estará em ensaio uma cisão com o parceiro de coligação, PEV, que não só vai votar favoravelmente as propostas como foi um dos partidos que trouxe o tema a discussão na AR?...

Na chamada dos cuidados paliativos a discussão pública estamos em acordo, é um debate muito necessário, porque é absolutamente vergonhosa a escassez de opções de cuidados paliativos decentes em Portugal (a não existência de cuidados paliativos no IPO de Lisboa, por exemplo). Não creio é que esta discussão deva ser imiscuida com a questão da morte assistida porque como é óbvio (para toda a gente menos para a direita e o PCP) uma não invalida a outra. Ter acesso a cuidados médicos universais e gratuitos para todos é um direito de que nunca deveremos esquecer na luta política. Ter a opção de terminar a própria vida com condições controladas quando esta já se tornou Insustentável e sem criminalizar quem seja requerido para ajudar, também. É uma questão de liberdade individual e de dispor da própria vida e do próprio corpo. Só isso. Eu compreendo o receio de se transformar a eutanásia numa 'sugestão' de terminar os cuidados médicos a um paciente, mas parece-me tão infundado como o receio que era apontado na despenalização da IVG desta ser usada como "método contraceptivo" (como, aliás, advogava a direita). E fazendo de advogada do diabo, reparem que no caso da IVG trata-se de uma (possibilidade de) vida alheia e não da própria (obviamente que a minha posição pessoal sempre foi e será a favor da despenalização da IVG desde que seja essa a escolha da mulher grávida, cuja vontade tem de se sobrepor a tudo o resto, mas estou a estabelecer uma comparação de argumentos).

Toldar as minhas opções relativas ao meu corpo e à minha vida, seja em relação à gravidez, à morte assistida, ao consumo de álcool e drogas ou como e com quem escolho ter relações sexuais, é sobrepor uma vigilância do Estado sobre mim. E mais do que um paternalismo ridículo de me fazerem sujeitar a regras de outrem em assuntos pessoais e íntimos é uma afronta à minha liberdade e à minha capacidade de fazer as minhas escolhas. E isso não pode ser tolerado, jamais.

A agravar a situação, grassa uma sensação que não é só minha de que a maioria, ou pelo menos uma grande parte, do eleitorado do PCP é favorável à eutanásia e esperava maior abertura por parte do partido. Se assim for, é mais um tiro no pé do partido que estava mais bem colocado para ser uma opção de esquerda real, mas que mais uma vez não consegue arriscar libertar-se do conservadorismo, seja por falta de estratégia política e medo de perder algum eleitorado católico, ou por real incapacidade de acompanhar algumas das questões fracturantes do momento em coerência com a ideologia, em consonância com as bases e com uma demarcação clara das posições da direita.

As emoções e a racionalidade são dois braços muitas vezes assíncronos e a fronteira entre ambos é ténue, permeável e de contornos espinhosos para todos.

Posto isto, quando as opiniões sobre ideias se deixam inquinar pela emoção perante quem expressa as mesmas não sei o que me desaponta mais: se o facto de não poder dar crédito e analisar seriamente a opinião, ou a fragilidade de uma relação emocional que é aparentemente susceptível de sucumbir a uma condicionante de importância tão relativa.
Não me faz sentido colocar em causa relações pessoais por meras divergências de opiniões. As diferenças podem e devem ser debatidas, com argumentos e com respeito (esse sim, imprescindível às relações saudáveis).

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