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Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

Ventania

Na margem certa da vida, a esquerda.

origem

 

A palidez das emoções é-me insuportável, as palavras suaves e delicadas, névoas vazias de fogo, de pujança e de vida. Rendas debruadas a ouro, com minúcia na forma e vazias de conteúdo, não me servem, repelem-me o toque. São desperdício, diluem-se nos tempos rotos e nas costas voltadas, na erosão das lonjuras. São ofensivas as delicadezas que pairam sem se atravessar, por gentileza, a mendigar raspas do ar que é necessário para viver.
Não sei ser dos murmúrios a meia luz, das meias verdades e das paixões mornas, em lume brando, hesitantes. Sou inteira de tudo ou de coisa nenhuma; dos dilúvios no deserto que ofusca, árido, ou do granizo no verão alagado. Não sei ser sem sal que me tempere, sem gritos que me calem, sem orgasmos que me abandonem à deriva em mim. Sem apertar demais os tais nós que se eternizam ou quebram, ou sem soltar os laços já lassos, para que fique só quem queira estar, de corpo presente, invasão possante e pertinente. Não quero ser um quarto, um terço ou metade. Sou todos os avos minha e partilho-me toda em sobressalto, em enxurrada, avalanche de verdade; não dou migalhas, restos ou aperitivos, ou o banquete é farto de lamber os pratos ou é jejum. O amor em part-time não é o meu lugar. Amo-te nas ausências e nas fugas, nas pausas e nos silêncios e mesmo quando tapas, com força, os olhos e ouvidos à passagem da minha sombra, mesmo quando me procuras noutras bocas e nos colos que não te chegam, que não te calam, não te sabem matar por dentro, de fome, de choque, na vertigem do toque. Deixo-te ir e nunca corro atrás porque te quero sempre comigo, porque de ti não fujo mais, subo a paredes caiadas em vácuo que caem no mar, arrasto redes na ilusão de te captar as sedes, num cheiro, num sopro, quase num estrondo o verbo que desisto de contornar.
Uma vida sem sal, de contenções e convenções, de limites e regras, de cuidados exacerbados, a que sabe? Sabe a coisa nenhuma, a frustração, sabe a dúvidas e receios, a espartilhos e a cintos de castidade. Sabe a papel velho e mortiço, sabe a planos engelhados, a brasas apagadas e esterilizadas emoções. Que não se poupe no sal da vida, no sentir e mostrar. Modere-se tudo menos os sentimentos em erupção, a apatia insossa nunca será opção. Mesmo que a sede se instale, que assim se multiplicam os prazeres, o do sal e o da água fresca em resposta, a acicatar. Qualquer doçura com uma pitada de sal ganha volume e delícia, espessura, a sensualidade dum pó de malícia. Sejamos volúpia de línguas e de lábios, sejamos oceano na imensidão, peito aflito da cor opaca do infinito. Sejamos protagonistas de beijos sedentos, gelados, na pele salgada, nas bocas carnudas de paixão.
Não me peçam para ser brisa obediente e contida. Sou vendaval, sou Ventania. Sou alvoroço sem rédeas nem gaiolas. Sou aquela que abre todas as jaulas e que liberta os prisioneiros dos grilhões de si próprios. Não me peçam a paz enquanto houver tiranos, eu serei a que degola os amos. Não esperem que consigam domar ou dominar-me, só eu sou dona de mim. Sou a mais doce que vira fera, com tanto de calmaria como de revolução, com igual dose de mel e de bagaço, embriagada e ática incógnita à toa na imensidão. Sei que tanto é demais, incomportável, que todos preferem açúcar puro, veneno maduro oculto, embrulhado em algodão.
Sou sal, sou cristal de vida e fogo, saio fora dos riscos e ignoro os mandamentos. Mesmo sem aqueles a quem pertenço ainda sei voar; sigo sozinha se preferem ficar, mas sigo triste, órfã de lar. Sou o fumo de que troçam, o carvão que os ensombrece, sem vaidade, o chiste que ninguém soube decifrar. Sou o supérfluo excesso dispensado, à cautela, para não entornar. Sou aquela que derrete o gelo, aquela que nunca esquece, a que arde nas feridas, cardápio de dores da alma. Sou a impossível de amar.

 

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Primeiro, as palavras. As que nunca ninguém antes havia dito. O respeito e a certeza que se foi instalando. A seguir a confirmação de que te esperava desde sempre. A Luz, a resposta passa pela luz que és, que acendeste em mim.

 

 

 (Feliz Aniversário, Amor. )

 

O problema dos lugares é que ficam tatuados nas memórias, acoplados aos cheiros, às emoções [coração no túnel, fora do peito], ao tacto, ao som de cada palavra [tuas dentadas, bochechas salgadas]. Não se consegue dissociar o lugar das memórias fortes, felizes ou infelizes, e isso gera toda uma expectativa inconsciente de que os lugares, só por existirem, asseguram para a eternidade os sentimentos que outrora testemunharam. Por isso se recomenda não voltar aos sítios onde já se foi feliz. O cérebro adora encontrar padrões na realidade que apreende e espera a reprodução daquela outra felicidade [os beijos de nuvem, boca macia de volúpia]; claro que o mais certo [o amor não é física, não se reduz a explicações nem a fórmulas matemáticas] é a realidade não encaixar na expectativa. Se a História se repete é por falha no guião, alheio à natureza mutável do mundo e dos homens [podia bem ser a tua mulher]. Culpa da memória que vai lapidando e erodindo as recordações, às vezes forjando algum pormenor [as tuas mãos nas minhas mãos, o meu nariz aninhado] ou submergindo-o por inteiro.

Insisto na teimosia [camarada]. Lugares há em que deambulo todos os dias, vão massacrando pela repetição da ausência, raspando ao de leve a pele com uma lixa suave e meiga [a tua barba negra, os caracóis], mais e mais, até a ferida aberta já não ter pele nem carne nem osso nem sangue nem vazio [fome de ti]. Comprarei um seguro contra desgostos. Uma mezinha para me untar, inteira, loção de aço, à prova de corações partidos e promessas de poesia [Teresinha]. Não tenho como atravessar os mesmos lugares de primeiros beijos [tão doces] e joelhos no chão, com os cacos espalhados, enterrados.

Como é que se esquece, como é que se cala, como é que se ignora que estamos a ir no sentido oposto - e não era nada disto que eu queria [à nora]? Caramba, como é que se respira?!

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Um nome não é nada além de um aglomerado de sons, não tem significado intrínseco até lho atribuirmos. Ninguém deixa de ser quem é por ser chamar João ou José. Mas é quando ouves o teu nome ser dito por outra boca que o nome faz toda a diferença. Na entoação dos outros podes ouvir todos os discursos da história, se escutares atentamente. Os meus instintos sanguinários, que deixei de reprimir por ter permitido o espírito ser adulto e assumir a paixão pela destruição, gritam o vosso nome com paixão e faíscas, gratidão e doçura. Com vontade de dinamitar cada sílaba desse nome que dá e tira sem pedir permissão, de lançar ácido no acento e transformar em nada o desvio que vive em mim. Gosto que digas o meu nome. Completo ou não, com diminutivos palermas ou fofinhos, mas gosto que me chames pelo nome. Que saibas que sou eu e mais ninguém. Nem Alexandra nem Maria, sem margem para equívocos. Gosto que o sussurres baixinho, em súplica, ou que o digas com esse tom sério de sobrolho franzido, como quem quer repreender mas só me quer prender, chamar à razão, colar-me ao chão. Sabe que não podes! Eu só sossego quando quero, se me tentas agarrar eu vôo em vendaval. Desfaço-te em mil folhas de papel, as letras alvoraçadas, borrões de notas graves aos trambolhões. Todos os nomes são poesia se uivados à lua, soltos à toa. Que nomes tens, que nomes me dás? Incendeia-me o sangue, dobra-me, esmaga-me, estala-me os ossos, derrete-me. Escreve o meu nome nas paredes da rua, trarei a picareta para as fazer ruir. Destroços de ti nas minhas mãos, todo pó, todo ilusão.

Estou com problemas de expressão. Ora porque me faltam as palavras, ora porque sobram as tantas coisas que queria dizer-te. É que as palavras são pequenas, são poucas e indignas do que te quero dizer. Queria dizê-lo com olhares e sorrisos pendurados ao peito, queria que os lesses com avidez e te lambuzasses em cada sílaba. Nem todas doces, algumas mais amargas, como o tempero que nos traz de volta ao inverno, que te permite comparar as realidades que tens e os sonhos que podem ser teus, nossos.

A incerteza move-me, sabes que adoro aquela adrenalina da descoberta pela descoberta, a dúvida e as possibilidades exponenciais que me significam sonhos sem rédeas. Pesadelos e dores, também tenho encontrado. Mas não me queixo senão quando a escuridão não me permite ver mais além. E tu és a luz. Iluminas e arrepias, calor doce e pura ventania.

Queria dizer-te que sei. E que estou dentro de ti. Que quando te sentes a perder o fio condutor, sou eu. Que quando a lógica impera, também sou eu. E que quando sentes a minha falta, não sentes apenas a falta da companheira de aventuras. Queria que fosses tu a reconhecer a capacidade que tens de fazer alguém feliz. Queria que te entregasses ao sabor dessa maré que tens dentro, que pousasses esses remos obstinados. Os planos antigos que traçaste eram bonitos, eu sei. Aconteceu como não devia. Faz as pazes com o passado, com os erros e as razões. Começa de novo, planos novos, que nunca poderão ser iguais... mas serão planos onde cabes tu por inteiro, onde nenhuma dimensão tem de ser vergada. Onde possa caber todo um mundo além do teu.

Queria dizer-te que gostava que me desses flores. Que cometesses uma daquelas loucuras anunciadas, tão tuas. Que me convidasses para um passeio. Queria contar-te da vontade que tenho de te oferecer presentes de Natal todos os dias, de levar-te sumo de laranja à cama e de nunca mais ter saudades tuas.

Queria que pudesses apagar algumas palavras, que as quisesses retirar para sempre. Queria que pedisses desculpa.

Queria dizer-te para perderes esse medo. Queria ensinar-te a amar de novo, melhor. Queria mostrar-te o que me comove no nascer do sol e queria aprender todos os teus risos e olhares. Queria caminhar lado a lado contigo, de dedos entrançados nos teus.

Sei que te encontras nas minhas palavras, sei que a perturbação também chega a esse lado. Queria dizer-te para não resistires... Para arriscares. Para experimentares. Queria que, se no futuro houvesse lugar para arrependimentos, que os houvesse pelo momento em que valeu a pena e não pela ausência duma estória.

Queria dizer-te que há dias em que um beijo vale tudo. E que há beijos que me dão vontade de chorar.

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(publicado inicialmente a 26.12.2009)

Agora nas palavras da ursa-musa blogosférica, Pólo Norte, que explica, com metáforas e muita pinta, porque é que a Ventania se borrifa para o glamour dos saltos e quer é que as patinhas traseiras estejam felizes e confortáveis nos seus ténis, fiáveis e amigos de todas as horas.


 


Um ex-namorado é como um sapato que deixou de nos de servir (e algumas actuais namoradas Cinderelas confusas)






Toda a gente sabe como é reconfortante estrear uns sapatos acabados de comprar. Coloca-se no pé e ficam lindos de morrer, ainda que ao princípio nos pareçam meio desconfortáveis, nos possam apertar um bocadinho e nos façam sentir desejosas que se moldem aos nossos pés e nos dêem um melhor andar. Mas é, nesta fase de habituação, que eles nos parecem mais bonitos, mais vistosos, que achamos que mais inveja causam nas outras mulheres (e como queremos, à força, sermos invejadas...). 

Depois, há uma altura em que os sapatos já se moldaram aos nossos pés tanto o quanto se poderiam moldar. Nesta fase, em que já não nos parecem tão tcharan e alvo de cobiça, o que mais queremos é que nos dêem bom andar, que continuem bonitos e em bom estado mas que nos permitam andar, correr, dançar e usar os nossos pés com eles calçados.

Mas há, por fim, um altura em que já não suportamos a dor de pés. Que sentimos pena porque cristalizámos a imagem dos sapatos na montra da sapataria, porque tentámos tanto habituarmo-nos à biqueira estreita, à altura vertiginosa do salto e ainda assim nunca nos conseguimos sentir confortáveis com a porra dos sapatos calçados. E quando desistimos de forçar, viramo-los do avesso e verificamos que trouxemos o número abaixo e que, por mais que tentássemos, nunca nos serviriam convenientemente. A culpa não é do sapato nem da sapataria, a culpa foi da compra por impulso. 

E aí temos duas hipóteses: ou insistimos e, para não chorarmos o dinheiro despendido, usamo-los tanto que os alargamos em demasia, gastamos a meia sola do salto e eles ficam absolutamente gastos e espatifados; ou firmemente anunciamos que "fica assim" e colocamo-los de lado, sem arrependimentos nem lamento. 

Um dia, por mero acaso, pisando a mesma calçada onde outrora andámos com eles calçados avistamo-los nos pés de outra pessoa. Que, contente, passeia os seus sapatos que, para si, estão a estrear. 

E não deixamos de achar genuinamente graça ao seu ar vaidoso, orgulhoso, com os seus sapatos nos pés. E sorrimos, desejando verdadeiramente que lhe continuem a servir, sem sentir lamento, nem inveja (embora a nova proprietária, que sempre calçou o número abaixo e cega pelo desejo que lhe cobicem os novos sapatos, acredite que sim) porque só nos vem à memória as bolhas, os calos, os dedos colados pelo aperto e a transpiração ao fim do dia, quando os descalçávamos, enfim. E, embora não deixemos de sentir pena que a nova proprietária se sinta indignada por passearmos na mesma calçada, que acredite que nós sentimos mesmo inveja por ela ter ficado com os sapatos que já foram calçados por nós, em boa verdade, já nada disso nos importa. 

Porque os sapatos novos dela são velhos para nós pois, se lhe assentam bem a ela, a nós castravam-nos os pés, e porque, mais uma vez, sabemos que os sapatos não era bons nem maus: a questão é que não eram o nosso número.
E seguimos, sobranceiras, porque finalmente acertámos nuns sapatos do nosso número e estamos solidárias com o bem estar ortopédico da Cinderela, porque- cúmplices- partilhamos do mesmo alívio. E porque não nos importa os sapatos dos outros quando, com os nossos calçados, praticamente só não conseguimos voar.
Fundamentalmente porque, com a idade, ter os pés bem tratados, sem calosidades nem joanetes é coisa que vale milhões.


 


 

Escrito há algum tempo, quando não havia fresta de dúvida. É o teu presente de aniversário. Parabéns.



  • Não mais ter de traduzir as metáforas.

  • Os beijos. Únicos. Os mais doces.

  • Duas mãos que buscam incessantemente as minhas (independentemente do onde e do quando).

  • Os sorrisos em que os olhos enfrentam e contemplam os meus.

  • O sentimento de igualdade. Não melhor nem pior em nada.

  • A descoberta, de assuntos e canções e planos a cada duas frases.

  • A vontade de estarmos presentes em cada momento. Nem só nos bons, nem só nos maus.

  • Sentir-me bonita aos olhos dele.

  • A sensualidade não se esgotar à superfície da pele.

  • Fazer descobertas no outro não implica necessariamente fazer concessões.

  • Nunca haver espaço para duvidar que aquele amor é todo meu.


 


Apetece-me cozinhar-te em lume brando. 

Estás cru. Seguro-te com as duas mãos, retiro-te da embalagem com os meus dedos a colher-te como pinça, sinto-te a textura fresca, tensa, sinto o teu peso, cheiro-te em ânsia e confirmo perdida de vontade que me vais saber bem. Inalo nano- partículas até encher o peito de de ti, chegas-me ao palato espessas-me a saliva pelo tanto te querer provar, molho-te com a língua, e sinto-te o gosto. Aliso-te de mãos espalmadas e redefino-te formas enquanto as moldas a mim. 
Tempero-te comigo. Deixo-te depositado o meu sal e o meu óleo e adejo-te ramos de tomilho embebidos em calda de citrinos. Não te deixo repousar sob meu corpo, besunto-te a carne e humedeço-te os sulcos, rolo redondos, daqueles rosa pimenta, que incorporas. Aperto-te e escorregas como êmbolo que
inebria num casulo ao meu toque. 
Vou-te virando enquanto te aqueço a fogo e sinto escorrer os sucos que recupero sobre a tua pele tostada. Contenho-me a não te devorar
al dente. Com fome. 
Estalas agora,
crepitas, oiço-te, estás tão quente, tentas-me... 

Estás pronto. Vou-te comer.


 


 


Phoebe, Na Terra dos Lalás

E se com o “Fazes-me falta” (que faz, todos os dias) a engrenagem emocional é oleada e catalisa o processamento da perda, “Fica comigo esta noite” é um pedido a que agora sim, acedo, porque me diz, aí da prateleira debaixo do telefone o mesmo que me dizes na voz, no olhar e no toque, todos os dias. Todos os dias. E, um dia, vou ficar contigo todas as noites.


 


 



 


 

Your presence still lingers here e eu de chávena na mão, olho para o lado e ainda te admiro os traços. É chá de menta. Os teus caracóis ainda nos meus dedos, a tua pele ainda, sempre, em comunhão com a minha. O teu dulcíssimo beijo que me impele a fechar os olhos e ver-te. Diz-me que vai ser sempre assim.


 




Aprendi the hard way, the hardest way, e demorei a aprender, porque sempre soube e sempre quis tanto não ser eu na minha pele. Quis fugir a mim e negar-me quem sempre fui, para ser outra, capaz de moldar-se a ser o sonho de alguém. Não, eu não tenho vocação para ser o que querem que eu seja; tão seguro como não ter vocação para “amizades coloridas”, sequer para a novel versão de “amizades floridas”, para literalmente, dar umas voltas. Muito menos com requintes de malvadez e regras absurdas que se espera que antecipemos. Não, não é para mim, que gosto de tudo tão preto no branco, com todos os contornos definidos e assumidos. Não é para mim, que sou mulher inteira e não desejo por perto quem não o saiba ser. Nunca soube encontrar um lugar na indefinição de algo entre o tudo e o nada, nunca me comovi com amizades de conveniência, nem relações em part-time. Não quero quem não se dê ao trabalho de ir mais longe, alcançar um fruto mais doce. Não tem de ser um esforço. Não deve, nunca, ser um esforço.


Já sabia que só gosto de quem gosta de si. E a seguir aprendi a gostar de mim e de quem gosta de mim.


“De nenhum fruto queiras só metade”, diz-me o Torga todos os dias. E eu ouço. Não, não quero metades, nem fracções, nem fatias. Não quero só um aperitivo nem uma amostra do que poderia ser. Quero tudo a que tenho direito. Quero tudo por inteiro, porque mereço, porque só sei dar-me por inteiro, sem reservas nem hesitações. Quero ser merecida até à última gota, amada com loucura e paixão, com a alma exposta a nú e a vulnerabilidade ao colo. Quero cada sílaba de cada palavra, cada beijo todo, toda a primavera no canto dum pássaro e todo o degelo num só dia. Quero querer sempre mais, quero que aconteça por força de querer. Quero o arrepio na espinha e a expectativa de ganhar por ter arriscado tudo.


 


 



 

Fiquei a ver-te. Descansado. Perdido nas horas que passam sempre depressa. Afaguei-te o cabelo. Perdi-me nas sombras que te marcavam o rosto a cada vez que mudavas de posição. Descobri-te uma pequena cicatriz no sobrolho. Apaixonei-me outra vez. Fiquei, vagarosamente, a olhar para ela. Depois descobri-te um pequeno sinal,quase imperceptível, debaixo do olho esquerdo. Como é que nunca o tinha visto antes? Voltei a apaixonar-me. Perdi-me uma imensidão de tempo, que são sempre minutos apressados, na pequena cova que tens no queixo. Decorei-te o desenho dos lábios. São perfeitos,foram, por certo, desenhados à mão. Toquei-te a barba que começou a aparecer no avançar da noite. Farta. Forte. Semeada com exactidão. Apaixonei-me. Enquanto tinha a mão aberta sobre o teu peito, e te sentia o pulsar do coração na palma da mão, reparei, acho que pela primeira vez, na tua maçã de Adão. Fiquei outros tantos minutos vagarosos, dos que passam a correr, a olhar para ela. Para ti. E ali estavas tu. Sem roupas. Sem máscaras. Sem nada que disfarçasse o que és ou do que és feito. Tu. Simplesmente tu. Desprotegido mas sem um rasgo de fragilidade. A nu com a luz que se agitava no quarto, a cada vez que mudavas de posição. E voltei a apaixonar-me.


 




 



Vai-se tornando importante com o tempo. A segurança económica, a social, a da saúde. A idade adulta traz disto. Fazemos PPRs, pagamos 11% do que ganhamos para, se um dia for preciso, na doença ou desemprego, termos algum apoio. Fazemos seguros de vida, de acidentes, seguros do carro, da casa, anti-incêndios, de bens. Tudo é “segurável”, até partes do corpo. E da segurança emocional, ninguém ainda se lembrou?


“Eu queria fazer um seguro contra desgostos, se faz favor.”




Quando a cabeça e o coração ainda estão na adolescência, atiram-se de cabeça, não viveram ainda o suficiente para saber que dói muito mais do que se vê nos filmes, que têm sempre finais felizes, ou pelo menos justos. Não se sabe o quanto a puta da vida custa, que as perdas deixam crateras enormes e para todo o sempre. Na adolescência do coração, não se conhece limites. Tudo o que se tem, dá-se, que não há fantasmas nem esqueletos no armário nem cicatrizes. Assim, sem ponderar nem equacionar nada. De peito aberto, convicto que aqueles instantes vão durar para sempre e nunca vai existir um lado B. Não se avistam finais, nem distâncias, tudo é forever e 200%. Depois, invariavelmente, vem a dor. Vem a perda. Vêm incêndios da alma que roubam tudo quanto foi alegria, que apagam em cinzas os sorrisos. Aprende-se que o forever pode afinal não durar sempre e o absoluto pode afinal ser tão relativo. Aprende-se que a reconstrução é lenta, penosa e pode nem ser sólida para aguentar-se às tempestades. Porque se sabe então que vão abater-se mais tempestades e a estrutura vai ter de resistir, sob pena de se ficar com a alma desalojada. Às vezes fica-se e a alma, penada, deambula longamente sem sair do mesmo sítio.


 


Quando a cabeça e o coração se tornam adultos, à custa dumas valentes quedas da cloud number nine, desconfiam. Não significa que deixem de ser puros e de sentir com a mesma verdade. Tornam-se renitentes. Não sucumbem de imediato  às vontades, sequer às provas de que vale a pena dar um mergulho no vazio. Precisam de garantias e certezas e tornam-se medricas, tremem de medo das nódoas negras (mais as facadas) sentimentais. Não cedem se não estiverem muito certos do que querem. Precisam de atingir um ponto, entre a tentação e a segurança, que lhes permita deixarem-se ir, e a tentação tem de ser enorme. Tem de valer a pena os possíveis danos que dantes se desconhecia. O risco de perder o juízo e aniquilar os remendos nas cicatrizes versus a felicidade sonhada. Só quando vêm no fundinho do seu imaginário, o desejo, o sonho (o tal que comanda a vida), promessas de oásis no deserto árido da solitude, estrelas cadentes e fogo-de-artifício, a rendição acontece. Entrega-se a alma dentro do coração, de bandeja, como uma aposta de tudo ou nada. E não havendo seguro contra desgostos, é mesmo isso. Ou se perde tudo, ou só se ganha.